Natália Correia, a mulher mais livre de Portugal
Nasceu há quase 100 anos na ilha de São Miguel, Açores, e foi, ao longo dos quase 70 anos que viveu, um ciclone de inteligência e liberdade na vida cultural e política portuguesa. Um vasto programa de celebrações festeja esta mulher que nunca aceitou as imposições da sociedade patriarcal.

Em 1982, o Parlamento português viveu uma das sessões mais inesquecíveis da sua História. Estando em discussão um projeto lei do Partido Comunista sobre a despenalização do aborto, o deputado do CDS, João Morgado, veio recordar ao hemiciclo a posição do seu partido segundo a qual o sexual se deveria destinar apenas à reprodução humana. A reação de Natália não se fez esperar e veio em forma de verso jocoso, muito ao gosto das cantigas de escárnio e maldizer medievais de que a autora tanto gostava: "Já que o coito - diz Morgado -/tem como fim cristalino,/ preciso e imaculado/fazer menina ou menino;/e cada vez que o varão/sexual petisco manduca,/temos na procriação/prova de que houve truca-truca./Sendo pai só de um rebento,/lógica é a conclusão/de que o viril instrumento/só usou - parca ração! -/uma vez. E se a função/faz o órgão - diz o ditado -/ consumada essa excepção,/ficou capado o Morgado."

O coro de gargalhadas não se fez esperar e os trabalhos foram interrompidos para restabelecimento da ordem. No entanto, se esta foi a face mais visível e histriónica da participação de Natália no debate, importa referir que o seu contributo assentava numa reflexão profunda e pessoal sobre o tema da sexualidade, como se pode ler nas atas da sessão: "Pese a intenção prestimosa do projeto de lei do PCP sobre planeamento familiar e educação sexual, impressiona-me negativamente a exiguidade e fisiologismo com que a última matéria é tratada. E é no exaustivo fisiologismo deste capítulo que eu me desvio do meu apoio a este projeto (...). O sexo pelo sexo, como fanatismo da saúde e da higiene, é tão espúrio à natureza humana como o moralismo que lhe põe o estigma de inimigo da pureza da alma. Entendo consequentemente que no projeto do PCP a educação sexual soçobra num mecanicismo e numa concepção puramente sanitária desde que não ministrada em conexão com uma pedagogia do amor que deve ter como instrumentos a poesia, o romance, o canto, os filmes e uma introdução às doutrinas que estudam e dignificam o sentimento amoroso." Natália não viveu para ver a despenalização do aborto no nosso país (só aconteceria em 2007, após a realização de um segundo referendo sobre o tema) mas a energia vital e a inteligência que pôs nesta discussão dizem bem do seu papel determinante na construção da Democracia.


Natália de Oliveira Correia nasceu a 13 de setembro de 1923, em Fajã de Baixo, ilha de São Miguel, Açores. Como escreve Filipa Martins na muito bem documentada biografia que dedica à autora (O Dever de Deslumbrar) acabado de lançar pela Contraponto, a mãe desempenhou papel essencial na formação cultural e cívica da escritora: "Coube a Maria José o magistério das primeiras letras de Natália e de Cármen [irmã mais velha de Natália], mas também a construção dos pilares do universo escolástico e espiritual das irmãs. Educou-as para o paganismo e para a liberdade." Maria José era também mulher forte, que se tornara professora liceal aos 21 anos, que teve de bastar ao sustento próprio e das filhas depois do marido partir para o Brasil e descurar totalmente a família que deixara para trás. No princípio da adolescência de Natália, as três trocam os Açores por Lisboa, e o Liceu Antero de Quental, em Ponta Delgada, pelo Filipa de Lencastre.
Em breve, a beleza das duas filhas de Maria José tornar-se-ia notada nessa capital ainda pequena e que a ditadura de Salazar encerrara ainda mais ao mundo. Muitos anos mais tarde, Natália recordaria esses tempos da seguinte forma: "Lisboa estava cheia de mulheres bonitas. O que me distinguia talvez era um certo brilho, uma alma, um espírito que me animava e que me trazia luz ao rosto. Simplesmente - é aqui que está a perversidade contida nas lendas -, ao empolarem o meu aspecto físico queriam amesquinhar os meus méritos intelectuais (...)" (Citado por Filipa Martins).

Essa percepção seria confirmada pelo poeta Mário Cesariny de Vasconcelos, em entrevista ao Público, em 2003, «A primeira vez que vi a Natália Correia foi no São Carlos. Eu estava na galeria ela no segundo balcão. Quando? Ui! Aí pelos anos 1950. Apesar de já não ter muito afecto a senhoras, ia caindo para o lado do espectáculo de beleza que ela apresentava. Era quase extra-humana, era muito mais linda que a mais bela estátua feminina do Miguel Ângelo. Era uma coisa impressionante. Mas era também uma mulher de um desdém muito grande.»

À imagem das outras mulheres suas contemporâneas, Natália casou cedo, com um funcionário dos tribunais, 11 anos mais velho do que ela. Álvaro Dias Ferreira. Em parte, a jovem correspondia ao que se esperava de si, num modelo social que reservava a esfera doméstica ao sexo feminino, como Filipa Martins muito bem enquadra na biografia: "Esposas, mas também filhas, estavam impedidas de sair do país sem o aval masculino da cabeça de casal, ou, na ausência deste, de um familiar direto, mas sempre homem. Para trabalhar no comércio, exercer advocacia, abrir conta bancária ou comprar contraceptivos também era obrigada a pedir autorização."
Mas este matrimónio precoce não sobreviveu às ambições literárias da noiva (que já trabalhava em rádio) e Natália haveria de casar mais três vezes: com o norte-americano Creighton Hyler (de quem também se divorciou ao fim de pouco tempo), com o empresário Alfredo Machado e, finalmente, com o também poeta Dórdio Guimarães, mas nunca abdicou de si mesma e dos fios condutores da sua vida, que eram a Literatura, por um lado, e a intervenção cívica, de resistência à ditadura, por outro.

Em 1945, começa por publicar um pequeno livro destinado ao público infantil, Grandes Aventuras de um Pequeno Herói. Nesse mesmo ano, começou a escrever poesia, dividindo-se ainda por diversos géneros, incluindo o romance, teatro e ensaio. Na poesia destacam-se, entre outras, obras como Rio de Nuvens (1947), Cântico do País Emerso (1961), O Vinho e a Lira (1966), Mátria (1968), As Maçãs de Orestes (1970), Poemas a Rebate (1975), Epístola aos Iamitas (1978), O Dilúvio e a Pomba (1979), O Armistício (1985), Os Sonetos Românticos (1990, Grande Prémio de Poesia Associação Portuguesa de Escritores) e O Sol nas Noites e o Luar nos Dias I e II (1993). Na ficção publicou A Madona (1968), A Ilha de Circe (1983), Onde Está o Menino Jesus (1987) e As Núpcias (1990) e, no teatro, O Progresso de Édipo (1957), O Homúnculo (1965), O Encoberto (1969), Erros Meus, Má Fortuna, Amor Ardente (1981) e A Pécora (1983).


Mulher de intervenção cívica, deu a conhecer o seu pensamento em ensaios como Descobri que Era Europeia — Impressões de Uma Viagem à América (1951), Poesia de Arte e Realismo Poético (1958), A Questão Académica de 1907 (1962), Uma Estátua para Herodes (1974), Não Percas a Rosa — Diário e algo mais: 25 de Abril de 1974 — 20 de Dezembro de 1975 (1978) e Somos Todos Hispanos (1988). Organizou também algumas antologias de poesia portuguesa, entre as quais Antologia da Poesia Erótica e Satírica (1966), que, como veremos, lhe trouxe problemas sérios com a censura do regime, Cantares dos Trovadores Galego-Portugueses (1970), Trovas de D. Dinis (1970), O Surrealismo na Poesia Portuguesa (1973), A Mulher (1973), A Ilha de São Nunca (1982) e Antologia da Poesia do Período Barroco (1982).
Tal como outras áreas da vida social, também a Cultura era vigiada pelo regime. Com Antologia de Poesia Erótica e Satírica, editada pela Afrodite de Fernando Ribeiro de Mello, Natália foi processada, juntamente com Ary dos Santos, Mário Cesariny de Vasconcelos e Luiz Pacheco, por conteúdo indecente e atentatório dos bons costumes. Estávamos em 1966. No princípio da década seguinte, Natália voltaria a ser constituída arguida, desta feita como responsável editorial da Estúdios Cor, que lançara no mercado a obra Novas Cartas Portuguesas, de Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa.


Com o 25 de Abril de 1974, Natália subiria à tribuna política. Seduzida pelo carisma de Francisco Sá-Carneiro, assíduo cliente do seu bar Botequim, no Largo da Graça (a quem apresentou a editora Snu Abecassis, no que foi um dos grandes casos de amor em Portugal no século XX), torna-se deputada do PSD e a sua verve e cultura fizeram História. Mais tarde, já depois da tragédia de Camarate e da ascensão de Cavaco Silva à direção do PSD, voltará a ser deputada, mas pelo Partido Renovador Democrático, próximo do General Ramalho Eanes, de quem Natália também foi amiga.


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