Diário de uma violação. Entrevista a Tatiana Salem Levy.
A escritora luso-brasileira Tatiana Salem Levy acaba de lançar o seu novo romance, 'Vista Chinesa', sobre a violação de uma amiga em 2014, ano em que o Brasil foi sede das Olimpíadas. Falámos com a autora sobre literatura, feminismo e as diferenças de ser mulher no Brasil e em Portugal

Como descrever as diferentes camadas de dor de uma violação? É, sem dúvida, uma tarefa difícil, principalmente quando a vítima é uma das suas melhores amigas. Foi assim que surgiu Vista Chinesa, o último romance da Tatiana Salem Levy, publicado este mês pela Elsinore, e um dos sucessos de 2021 no Brasil. A premiada escritora brasileira, nascida e radicada há oito anos em Lisboa, fez uma série de entrevistas com a diretora de televisão Joana Jabace, que sofreu uma violação em 2014, enquanto fazia exercício na Vista Chinesa (miradouro no Parque Nacional da Tijuca). Esta foi a base para o romance ficcional que conta a história da arquiteta Júlia, a sua tentativa de lidar com o trauma, seja no seu casamento e subsequente gravidez, alguns anos depois do ocorrido, seja na tortuosa investigação policial, mais preocupada com infinitas burocracias do que em prender o verdadeiro culpado. É uma leitura viciante, dessas que podem ser feitas de um fôlego só, e que permanecem connosco bem depois de virarmos a última página.
O livro passa-se numa época de esperança, logo antes da Copa e das Olimpíadas, e bem antes de Bolsonaro. É impossível ler o livro e não pensar no Brasil atual. Esse contraste foi propositado?
Tatiana: Quando eu tive a ideia de escrever o livro, não imaginava que o país iria chegar a esse ponto. Quem conhece o Brasil sabe que os problemas são tão profundos que não se resolvem de um dia para o outro, a solução nunca foi a Copa ou as Olimpíadas. Mas havia uma euforia no ar que nos fazia acreditar que talvez fosse possível. A profecia que éramos o país do futuro nunca havia estado tão próxima de se realizar. Em 2019, quando fui escrever o livro, o cenário era outro. Literariamente, isso era interessante, eu poderia me apropriar disso para o livro. Não havia possibilidade de ser o mesmo livro que eu teria escrito em 2014, não era o mesmo Brasil.
Como foi esse processo, entre a ideia e a escrita?

Naquela altura, o que me chamou a atenção foi a contradição, o país explodindo, aquela mulher violada no meio daquela euforia. É a contradição latente do Brasil, a violência sempre esteve ali, tínhamos mesmo que duvidar da euforia. Em 2018, veio a comprovação, e eu tinha que trazer isso para a narrativa, por isso achei importante contar a história a partir de hoje, com o país já em decadência.
O que mudou no livro?
A cidade ganhou um peso maior como personagem, deixou de ser apenas um cenário. Eu quis pensar nas marcas do trauma, não só no acontecimento em si. Quando fui entrevistar a Joana, percebi como aquilo ainda era muito presente, e por isso quis abordar as questões das marcas. O passado de um evento traumático não é passado, é sempre presente. São marcas físicas e emocionais que fazem parte do dia a dia.


No fim do livro, há um relato sobre o processo de escrita. Como separou o relato da Joana dos mecanismos próprios da ficção?
Primeiro fiz as entrevistas, selecionei o material, escrevi o romance como qualquer outro romance, uma história que poderia ter sido inventada. Não foi uma diferença tão grande, o romance foi escrito de forma o mais livre possível, o que eu achava interessante reproduzir, eu reproduzia, o que eu achava melhor modificar, eu modificava. A questão é: como vou contar essa história em termos literários? No relato, você não se pode contradizer. A literatura chega mais perto da verdade justamente por isso, a memória não é linear, e por isso fazia mais sentido um texto fragmentado, que vai e volta, que tem contradições. Se contarmos essa história com começo meio e fim, não vamos dar conta do acontecimento. Ninguém descreveria a própria violação de forma tão linear.
E por que o formato de carta?
Isso tem a ver com a minha trajetória como escritora, todos meus livros são sobre herança, traumas geracionais, traumas que não são contados, e por isso passam de geração em geração. Os traumas são sempre herdados, mas se não os colocar em palavras, eles aparecem como sintoma, como um fantasma, sem a palavra, não tem como você dar um significado a eles, e por isso é mais perigoso. Eu pensei: como será que é engravidar depois de ser violada? Afinal, é o mesmo corpo, é o mesmo lugar do corpo. Ela precisava contar isso para as crianças, mesmo que seja uma carta hipotética, uma carta para ela mesma, uma carta que pode nunca ser entregue, uma carta como herança.

O corpo é um tema muito presente, na forma da violação, da gravidez, do parto, do sexo.
Sem dúvida é um livro sobre o corpo porque a violação é o pior crime físico que alguém pode cometer. A violação deixa marcas que são emotivas e físicas, não dá para separar. E há outras dimensões, como é a ditadura do corpo no Rio de Janeiro. A Júlia é violada enquanto estava a fazer exercício físico porque mora numa cidade em que as pessoas olham para o seu corpo. O tempo passa, ela engravida, está linda, há o endeusamento da gravidez, e a sensação de fora é que ela renasceu, mas a personagem não gosta de estar grávida, acha desagradável. E há o sexo, que é muito importante para a história, porque ela precisava recuperar a vida, redescobrir o corpo. Nas férias com o marido em Tulum, a Júlia faz sexo com máscaras de animais salvagens, que ela usa para redescobrir a sexualidade. A violação que ela sofreu foi na floresta, mas é da floresta que vai vir a salvação, a redescoberta de algo primitivo, que a permite ser outra Júlia.
O que existe da Joana, Júlia e Tatiana em Vista Chinesa?
É sempre tudo muito misturado. É como se fosse uma atriz interpretando uma personagem. Se você dá o texto da mesma personagem para atrizes diferentes, você encontra diferentes resultados. A Joana seria a base da personagem, eu emprestei o meu corpo e as minhas memórias, e isso resultou na Júlia. Há coisas do livro que são só Júlia. Mas outras que são só minhas. Por exemplo, eu escrevi o livro grávida, a maternidade entrou por essa razão, era o que eu estava sentindo naquele momento. Acima de tudo, há a linguagem, a maneira como o livro é escrito reflete o meu jeito, e a maneira como vejo o mundo.

Qual foi a influência dos movimentos feministas da última década na escrita?
Antes, talvez eu desejasse escrever sobre isso, porque é a dor de uma pessoa próxima. Mas, se não fossem os últimos movimentos feministas, ou seja, se não houvesse o poder de uma voz coletiva, não sei como seria. Há dez anos, a Joana talvez não desejasse falar sobre sua experiência, e certamente não teria exposto seu nome, porque não teria sentido uma rede de apoio coletiva. Não é um movimento individual, são muitas mulheres a querer romper o silêncio, e isso é muito visível na reação dos leitores.

Joana/Júlia sofre um tipo de violação que existe na imaginação coletiva: o monstro que surge a espreita no meio da floresta. Na realidade, sabemos que a maior parte das violações ocorrem dentro de uma esfera íntima, familiar, de confiança. No entanto, a descrição dos procedimentos da investigação policial são um choque de realidade que não é muito falado. Foi propositado dar ênfase a este aspeto?

Eu segui exatamente o que aconteceu porque o material é muito bom para o romance. Era um setor que eu não conhecia, é um território pouco explorado, é quase inverosímil. A polícia deu importância a este crime porque era uma mulher branca e privilegiada, não seria assim se fosse uma mulher negra, da comunidade. Ainda assim, é tudo mal feito, não há acompanhamento estruturado, não há acolhimento algum da vítima, não há uma psicóloga. Júlia diz que o homem não era negro, mas a polícia continuava a procurar um homem negro. Não havia interesse nenhum em prender o verdadeiro culpado. Durante a escrita, pensei se prenderiam ou não o criminoso, no final, achei melhor seguir como foi na realidade.
Em Portugal a legislação relacionada aos direitos da mulher é mais avançada – no Brasil, o aborto é criminalizado. Como é que a legislação afeta a cultura?
No Brasil, repetimos a toda a hora que o corpo é nosso, mas isso não é verdade, a lei não nos assegura que o corpo é nosso, porque somos proibidas de abortar. Há uma abertura sexual muito grande nos brasileiros, mas isso não significa que o país seja menos machista, porque a mulher continua a ser julgada pela sua vida sexual, mesmo dentro da bolha liberal, de esquerda. Eu fui mãe em Portugal, o meu marido é português, e vejo que os pais são mais machistas no Brasil que em Portugal.
No Brasil, estamos a começar a debater se realmente é verdade essa ideia do "homem cordial". Cá em Portugal, fala-se que é um "país de brandos costumes", o que também tem sido posto em dúvida. Ou seja, nenhum dos dois países se considera violento.

Não há dúvida a respeito da imensa violência do Brasil. Portugal tem uma grande violência histórica, mas com um discurso que não era um colonizador violento, e hoje sabemos que isso é um mito. Hoje, violência em Portugal é sobretudo doméstica, que acontece no privado, principalmente contra a mulher. Tem uma cultura machista que está a começar a ser desafiada, em especial pelos jovens. Eu sou pesquisadora na Universidade Nova de Lisboa, vejo que os alunos têm essa procura, querem uma mudança do foco nos estudos, querem estudar feminismo e questões queer. Eu sinto que os portugueses mais velhos são mais resistentes à mudança que os brasileiros mais velhos, mas isso não importa tanto, o que importa é a nova geração.

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