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Nem numa sala de partos, onde se dá o milagre da vida, estamos a salvo

"Basta de aceitarmos que estamos sempre em perigo desde a infância, e que de certa forma isso é normal."

Foto: D.R
12 de julho de 2022 às 18:56 Cláudia Lucas Chéu

Aconselho as pessoas mais sensíveis a não verem o vídeo em que um médico anestesista estagiário abusa sexualmente de uma mulher sedada na sala de partos. A paciente está deitada na maca, inconsciente. Do lado esquerdo do lençol, a equipa cirúrgica do hospital começa a cesariana. Enquanto isso, do lado direito do lençol, a menos de um metro de distância dos colegas, o médico puxa o pénis para fora das calças e mete-o na boca da grávida. Eu vi o vídeo. Penso que devia ser retirado. Porque além de ser de uma violência atroz, dá protagonismo ao agressor. Não lho darei, nem o nome do criminoso escrevo. Vi o vídeo e não pude evitar a perturbação consequente. Segundo a equipa que trabalha com o dito médico, não foi certamente a primeira vez que abusou de pacientes. As suas acções há muito que eram estranhas e, graças às suspeitas da equipa, o médico foi apanhado em flagrante por se ter filmado o acto. Posso dizer que foi das coisas mais chocantes que vi. Nunca, nem nos meus piores pesadelos, achei que seria possível alguém - neste caso, um médico! - violar uma mulher sedada na sala de partos, com a equipa do outro lado do lençol. O acto é monstruoso, vil, porque além do abuso sexual, aquele homem impediu que a mulher violada assistisse ao nascimento do seu bebé, dando-lhe uma dose cavalar de sedação. A história tem, efectivamente, contornos aterrorizantes. Não há nada, de facto, que supere o terror da realidade.

As notícias anunciam que o médico foi preso. O médico foi preso, e depois? Não chega. São incontáveis as histórias de terror. Eu e milhares de mulheres por todo o mundo dizemos basta. Já chega. Temos de falar a sério sobre este assunto. Continuamos num mundo em que o homem sente que pode abusar, violar, fazer gato-sapato do corpo da mulher, e não é por acaso. Há séculos que nos deparamos com a impunidade destes crimes. É mais do que tempo de consideramos as violações como crimes públicos. Quem comete crimes sexuais tem a expectativa, que corresponde à realidade, de que nada de mal lhe vai acontecer. É bastante óbvio que a impunidade aumenta exponencialmente a probabilidade de quem já tem inclinação para violar e abusar sexualmente de alguém. Hoje no mundo inteiro, e como sempre, nós mulheres assistimos à cumplicidade das leis para com os criminosos.

É preciso falar sobre a cultura da violação que põe em causa as vítimas e não os agressores. Basta de aceitarmos que estamos sempre em perigo desde a infância, e que de certa forma isso é normal. Basta de aceitarmos que a culpa pode ser nossa por usarmos uma saia curta ou, no cúmulo do absurdo, por estarmos nuas e desmaiadas à frente de um médico. A culpa nunca é das vítimas, a culpa não é das mulheres. É muito importante acabarmos com esta sociedade falocrática em que os homens pensam que podem tudo. Não podem, tem de ficar claro — é um crime grave. Nem numa sala de partos, onde se dá o milagre da vida, estamos a salvo.

*A cronista escreve de acordo com o Acordo Ortográfico de 1990.

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