Crónica A Flor do Cacto

Vamos trazer à luz o aborto

"Perguntei-me genuinamente o que será que incomoda tanto as pessoas neste assunto? Trata-se da liberdade individual da mulher, do direito de decidir sobre o seu próprio corpo e, muitas vezes, da sua dignidade."

Protesto contra o aborto em 1977, Nova Iorque
Protesto contra o aborto em 1977, Nova Iorque Foto: Getty Images
02 de maio de 2022 Cláudia Lucas Chéu

Nunca fiz um aborto. Nunca aconteceu, não calhou. Engravidei apenas uma vez, tive a sorte de desejar muito trazer à luz outra pessoa e dar-lhe um mundo. Repito que nunca fiz um aborto porque não calhou. Na adolescência, com o namorado da altura, tivemos um acidente. O preservativo rompeu durante o coito. Tínhamos dezoito anos. Depois do sexo, percebemos que o preservativo tinha rasgado e ficámos com medo. Com muito medo. Eu fiquei aterrorizada. Não ia ter um filho. Estava fora de questão. Portanto, se tivéssemos tido azar, teria recorrido a um aborto, sim. Não ia ter uma criança não desejada, não estava preparada para ser mãe, tinha muitas coisas planeadas, pessoal e profissionalmente, que eram só minhas, sem filhos, por isso teria abortado, sim.

Recentemente escrevi um conto sobre este assunto, que foi publicado, e deparei-me com comentários insultuosos e reaccionários. Apesar de se tratar de ficção, ainda assim, algumas pessoas não se inibiram de escrever coisas que destilam veneno. Fiquei a pensar. Perguntei-me genuinamente o que será que incomoda tanto as pessoas neste assunto? Trata-se da liberdade individual da mulher, do direito de decidir sobre o seu próprio corpo e, muitas vezes, da sua dignidade. São incontáveis as mulheres que morreram durante um aborto clandestino, porque, mesmo sendo legal, há quem continue a fazê-lo clandestinamente por ter vergonha, por ter noção das mazelas sociais e pessoais que daí possam advir se o fizer de forma aberta e legalmente.

Algumas mulheres da minha família fizeram abortos quando não era legal fazê-lo. Era um assunto sussurrado entre mulheres. Conversas tidas em voz baixa, como se de crimes se tratassem. Lembro-me de temer em criança que tal coisa me acontecesse. Ouvia dizer «fiquei com um peso na consciência» e tinha medo de ficar com uma bigorna dessas na cabeça para a vida. Mas pior do que apanhar clandestinamente as conversas sussurradas das mulheres sobre este assunto, era vê-las quando não verbalizavam nada. Via-as «irem-se abaixo» ou «adoecerem dos nervos», como diziam as pessoas mais velhas da família. Mais tarde, com as minhas amigas, a coisa foi bem diferente. Outra geração mais informada que começou a falar sobre este assunto, não se conformando com críticas e sussurros quanto se tratava do seu corpo e do seu futuro. A Sónia, uma colega da faculdade, foi a primeira pessoa que ouvi falar sem medos sobre um aborto. Ficou abatida fisicamente depois de o ter feito, sim, mas dizia em voz alta, num tom normal, que não se arrependia de o ter feito. Não tinha remorsos nem pesos na consciência. Não queria voltar, obviamente, não tencionava fazer prática recorrente, esperava até que fosse evento único, não queria ter mais acidentes, mas se tivesse de o repetir nem hesitaria um segundo. Abortava e pronto. Lembro-me de ficar surpreendida com a atitude daquela jovem mulher, que não se deixou levar por preconceitos, que não se preocupou com a opinião dos outros quando verbalizou isto num tom saudável e natural à mesa da cantina. Pensei como seria interessante e libertador trazermos estes assuntos para a mesa, em plena luz do dia, durante um almoço, falarmos abertamente. Trazermos à luz o aborto.

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