Foto: Getty Images27 de setembro de 2021 às 12:45 Patrícia Barnabé
Uma das qualidades, mas também um dos defeitos, dos tempos modernos é a desacralização de quase tudo o que antes foi intocável, e que hoje se torna mais realista e diverso, ao mesmo tempo mais batido, comum, às vezes até popularucho. Ancestrais pilares sociais como a igreja, a família, o Estado ou a escola têm sido desafiados e repensados, estilhaçando as suas cartilhas de sempre, reinventando-se e multiplicando-se. E se algumas estavam obsoletas, outras eram estruturantes. Se os códigos de sedução social estão cada vez mais diáfanos no advento das redes sociais, ganhando novas fórmulas e protagonismo, outras coisas nunca mudam no verniz social de sempre: só mostramos o bom e estamos sempre óptimos, obrigada. É uma parada de auto-estimas, um desejo de pertença e evasão, um scroll de imagens belas como se a vida se conseguisse emoldurar.
Nas mais variadas artes, tantas quantas cabem na sua vasta definição, as ditas eruditas de museu deram espaço e valor às prosaicas divagações de salão e aos simples rituais do quotidiano. Hoje muita gente brinca aos artistas ou ganha coragem para tentar uma voz? As duas coisas, mas a questão é que algum elitismo não fazia mal a ninguém, mantinha alguma fasquia. O nivelar do gosto e da tradição em prol de uma urgente democratização, diversidade e inclusão nas nossas sociedades, que a modernidade agradece e tanto precisava, acabou por matar, por arrasto, muitas coisas bonitas do passado mais classy. É condição natural de evolução? É, a televisão matou a estrela da rádio, mas levar tudo à frente faz mais sentido nas revoluções sociais. É suposto gostarmos da Cardi B e do seu rabo postiço de stripper? Kardashianswhat? Os likes dizem-nos que sim, nós dizemos que não. Bom, vou ser politicamente incorrecta: toda a gente sabe que o bom gosto nunca esteve nas maiorias.
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O chique e a elegância da Moda de séculos, por exemplo, cristalizados em cartilhas europeias, o que é natural porque foi onde nasceram, pareciam estar mesmo a pedi-las. Aplaudimos a chegada dos ténis às passerelles, até dos hoodies, as calças de fato treino, vá, menos, mas é como uma piada bem metida: ou é sustentada por um piscar de olho, ou depressa se torna banal, pode até ser foleira. Tem graça trazer o guetto para os palácios? Tem muita mesmo, obrigada Demna Gvasalia pela Vetements que depois te levou à Balenciaga, mas ténis a preços astronómicos e twerk? É mesmo a sério? Tik Tok anyone? Se é para cantar em público, é muito mais giro karaoke com os amigos, ao menos choramos a rir juntos e ninguém guarda os nossos dados para algoritmos futuros.
É como tudo na vida, o decoro foi sendo esbatido pela queda do moralismo, mas o que seria da sedução sem uma certa reserva e mistério? Em doses certas, o pudor tem a maior piada. A cultura porno está a depilar completamente as nossas vaginas e nem nos apercebemos que é a estética infantil e patriarcal de sempre, porque nunca pensámos nisso: as mulheres têm de ser as eternas meninas dos seus homens.
Por isso, o meu lado punk e ativista que me fez escolher o jornalismo, dizer o que penso às mesas de jantar, e até escrever estas crónicas, começa a achar que o que é mais punk e ativista é a integridade e a normalização, não os pontapés nas opiniões dos outros ou o show off vazio das grandes tiradas generalistas sobre os temas em moda (dos quais ninguém parecia lembrar-se antes). O punk não morreu só vai para a cama mais cedo? Também, mas os verdadeiros rebeldes, os que levam isto tudo para a frente, jamais alinham em rebanhos, passam é a chatear-se cada vez menos.
Mas o meu grande desgosto chama-se Madonna. Com as outras que a copiaram a seguir em versão mais ou menos bimba posso eu bem. Mas as raparigas que, como eu, um dia viram passar o Like a Virgin na televisão, num daqueles programas de top de vendas de discos, à hora de almoço de um fim de semana qualquer, no tempo em que as pessoas diziam teledisco e se escandalizavam, ainda estão para perceber o que é a Madame X. Nós acreditámos que o futuro estava a chegar numa gôndola em Veneza com uma rapariga a rebolar submersa em rendas. Com’on, ela parecia não ter medo de nada! Era a auto-estima feminina a levantar-se, milénios, séculos, vidas depois, e nós a testemunharmos aquela revolução em directo. Afinal, descobrimos anos mais tarde, Madonna era uma máquina de marketing rodeada por uma equipa escolhida a dedo, agora parece-nos que foi tudo mentira, fomos enganadas! Usou a sedução como um poder e uma arma de liberdade, mas ficou enredada, prisioneira do tempo do seu corpo.
Imagina-se que a fama dispare comuns mortais para outros planetas, mas quem imaginaria a rainha da pop a abandonar o mundo dos humanos e embalsar a sua imagem de perfeição? A mulher-objecto que tanto exibiu em crítica e statement, e que ainda ecoa nas duas gerações de mulheres seguintes, não sabe envelhecer. Não quer, recusa-se, prefere a sua versão cyborg. Mais uma vez, não tem de se ser revolucionário toda a vida, as gerações seguintes que pavimentem o caminho trilhado, mas é desolador. Uma amiga diz que prefere acreditar que a Madonna enlouqueceu.
Agradecemos o fim das divas espaçosas, com a sua pretensão, egomania, sobranceria e mania das grandezas, mas não queremos rabos postiços, por favor! Sobrevivemos às maminhas de silicone, que até se entendem em alguns casos, a uma maioria morena a pintar-se de loiro e a usar lentes de contacto azuis a fazer de conta, sobrevivemos às unhas de silicone, e às pestanas postiças, mas passa-se qualquer coisa de errado no mundo quando as miúdas começam a injectar botox aos 20 anos. Até as tatuagens que em tempos foram perigosas, nascidas no submundo, se tornaram batidas no Big Brother.
O elogio do postiço, do artificial, é a oficialização do mau gosto que parece triunfar na era da banalidade obcecada pelo estrelato. É uma espécie de euforia de massas que teve agora a oportunidade de subir ao palco e aparecer: "Mãe olha, estou na televisão!" é aqui que deve entrar o perfume da noção. Somos muitos e não faz mal que nem todos sejamos óptimos, giros, articulados, modernos ou bem sucedidos. São atributos para os quais se pode trabalhar, mas também não muito, se não nota-se o esforço. O gosto até se pode comprar, mas o carisma ou o talento não dá. Há alguns anos, quando tive a sorte de jantar no palazzo de Valentino Garavani, em Roma, depois de o entrevistar sobre o seu novo perfume, pétalas de rosas vermelhas espalhadas pelo chão, ele disse-me: "Style is not a wow when a woman enters in a room, is when you follow her with your eyes."
A maior parte das pessoas esconde-se atrás dos cortinados, é tão português ficar atrás dos cortinados a espreitar para a vida dos outros sem que deixem vislumbrar a sua. É uma herança rural, da ditadura e da igreja, claro, tão sul da Europa. Mas se o pudor é bonito, a honestidade é sexy.