
Nunca pertenci a lado nenhum, e não é feitio, apesar dos pontapés da vida continuo a adorar pessoas, mas nasci numa geração sortuda com uma ingrata herança de país. Na travessia para a democracia, os filhos dos anos 70 em Portugal são uma espécie de saco de boxe existencial numa leeeeenta mudança de mentalidades. Alguns de nós até somos filhos dos pais politizados que fizeram a revolução, devolvendo-nos a liberdade fundamental, os meus heróis, mas a maioria estava noutra ou a tentar sobreviver à miséria. Por isso, as entrelinhas mantiveram-se até há pouco tempo, por isso algumas de nós passaram a vida a tentar encaixar num país novo sem cultura de modernidade. Ou de cidade sequer. Abrimo-nos ao mundo – vimos Portugal entrar na CEE, a chegada dos computadores e dos telemóveis, sem saber que um dia mandariam em nós – mas as cabeças eram quase todas rurais à procura de melhor vida. Com tudo o que tem de esperança e vontade, e o que herda de antiquado e paralisador. Mas o que esperar de um país tantos anos descalço? Podes sair da aldeia, mas ela não sai de dentro de ti.
Lisboa foi sempre uma grande aldeia. Para o bem, quando é comunidade, generosidade, bairrismo castiço e partilha, e para o mal quando espreita a vida alheia pelos cortinados e desconfia do novo e do diferente porque quer que tudo permaneça na mesma. Assim, as raparigas nascidas nos anos 70 tiveram de fazer o caminho todo – com a ajuda da Madonna, nos anos 80 e do rock 'n'roll nos 90 – enredadas em injustos mal-entendidos. A maioria nem sequer reparava nos desníveis sociais, tirando os ricos e os pobres que ainda hoje obcecam a maioria, ninguém pensava nos costumes nem mexia no machismo vigente que, de tão repetido, se tornou confortável. Fora muito bem montado numa subtileza de padrões, tão bem treinados pela igreja e pela ditadura, que pareciam naturais. Até as mulheres jogaram as regras deste jogo viciado, e até o defenderam, não queriam perder o poder da domesticidade e da família, sem reparar que lhe faltavam todos os outros.
Assim, vivemos a duas velocidades. Por um lado, a pasmaceira do mundo real, que também nos deu a qualidade de vida e o silêncio que hoje os estrangeiros velhos e ricos da Europa cobiçam (e sufocam aos poucos); por outro, a velocidade das nossas jovens cabeças, que cedo perceberam que muito permanecia injusto e errado nos costumes. Neste caso, diz-me quem é a tua mãe e dir-te-ei quem és, ainda fomos uma geração de pais distantes. Mas se tinhas a sorte de ter um mãe moderna, a sorte era afinal um azar porque fazias o caminho das pedras. Nunca fui ensinada a agradar e a seguir, a ser prendada, clássica e mãe de todos, como se usava antigamente, plasmado na Nossa Senhora. Cresci no meio de uma maioria de rapariguinhas amorosas, silenciosas e sacrificiais, que não levantavam ondas, nem expressavam opiniões (que é como "estar morta por dentro" como diz a comediante americana Ali Wong). Mesmo as modernas da minha geração, são quem cozinha lá em casa e trata dos filhos, como dita a velha cartilha, e ainda fazem de conta que gostam, ou encolhem os ombros.
Nós fomos as primeiras a comprar, sozinhas, as nossas casas, carros, férias e vontades, sem pais e sem maridos. Nunca quis ser sustentada. Mas as miúdas independentes eram tão poucas que foram aves raras, invejadas e temidas em doses iguais. Se fosse hoje, éramos incrivelmente sexy, mas fomos só tramadas. Tramadas pelo sistema e pelas outras raparigas. Uma geração depois e esta já parece uma conversa ancestral. Mas se hoje as miúdas badalam a urgência da igualdade de género, e até se dão ao luxo de ser escandalosas, nós crescemos a ser o elefante na sala. Como é natural, o que esta geração apregoa, nós tivémos de sussurrar. Sou do tempo em que ser livre, vegetariana e yogui - e lutar pelas causas da igualdade - era coisa de malucas e de freaks. Hoje é mato. Como usar um piercing ou uma tatuagem, que tinham um forte simbolismo, hoje é banal, até bimbo (para os filhos dos anos 70, o bimbo é mesmo bimbo, agora é moda, o que até pode ter alguma piada); tudo é sistema e todos reclamam a sua fatia de rebeldia, que é cada vez menor.

Crescemos na rua, com muitas férias e poucas regras. Os nossos pais largavam-nos tardes a fio ao sol, não pairava ainda o medo da pedofilia, nem do cancro da pele. E como não se sabia quase nada, também perdemos alguns para a aventura das drogas, do álcool e das faixas de aceleração. Talvez por estarmos tão próximos dos elementos, e apesar de alguém nos ter chamado de rascas, somos muito pouco medricas e muito sem merdas. Os nossos valores eram invioláveis. Por exemplo, era regra tratar os mais velhos, os professores, com respeito e alguma deferência por tudo o que ainda não sabíamos. O que nos salvou da arrogância autocentrada da juventude que vemos hoje nas redes sociais. E é claro que respondíamos sempre a um bom dia no elevador. Também fomos a geração que leu livros, porque eram tempo ganho, e ouviu discos do princípio ao fim, cada canção da banda de quem envergávamos uma t-shirt – este era um assunto sério. Qual playlists, só nas festas de garagem, com bolas de espelhos e momento de slows. Crescemos sem ecrãs, o que hoje parece um sonho.
Também arrebatámos os primeiros empregos modernos em áreas que ninguém queria, eram consideradas menores, entretanto tornaram-se cool: do cabeleireiro ao cozinheiro, do stylist ao carpinteiro, do ceramista ao místico. Em terra de cegos, a meia dúzia que tinha olho, conseguiu ser rei, estava tudo por fazer. Tivémos o crédito bonificado e só partilhávamos casa se quiséssemos ou morássemos longe. A grande maioria saiu de casa dos pais aos 20s ou tinham problemas. O que faltou? O mundo Erasmus, esse foi o presente da geração seguinte, por isso quero muito testemunhar as pequenas revoluções silenciosas da nova geração, nela revejo o meu amor à ironia e ao sarcasmo e ao poder da individualidade. São muito mais espertos e individualistas, mais preparados e sobreviventes, herdaram um capitalismo selvagem e um planeta a rebentar pelas costuras.
Por isso são desmarcados e cínicos, mais ansiosos e perdidos, nós sabíamos sempre o caminho de casa, como na aldeia, lá está. Fizeram tudo certo, mas sacudiram a melhor qualidade da geração de transição: a ingenuidade. Que não é mais do que um sinal de vida boa e saudável, protegida e até alienada, como a das aldeias, mais uma vez. Fomos muito mimados, porque fomos os primogénitos da liberdade. Tudo era especial e assustador porque era raro e novo. Por isso, às vezes, apetece-me ir viver para o campo.

Mundo, Discussão, Opinião, Crónica
Um bom homem é difícil de encontrar
"Nunca quis ser a mulher assistente nem a mulher patroa, a santa amorosa ou a perigosa sedutora."