A vida surpreendente das freiras de outros tempos
Meninas e moças as levavam de casa de seus pais para um convento de clausura. Mas esse destino, à primeira vista cruel, podia ser mais livre do que as mulheres que ficavam na vida secular, ao lado de marido e filhos. Quem o diz é o historiador Arlindo Manuel Caldeira no livro Mulheres Enclausuradas - As Ordens Religiosas Femininas em Portugal nos séculos XVI a XVIII.

Imagine-se um mundo em que a lei do morgadio deixava sem herança todos os filhos que se seguissem ao primogénito. Se fossem rapazes havia que escolher entre a vida militar, as letras ou a religião. Se fossem meninas, a porta do futuro afigurava-se ainda mais estreita, já que ao casamento (arranjado conforme as conveniências ou a estratégia da família) se contrapunha apenas a clausura num convento. Na Europa do Antigo Regime (séculos XVI-XVIII) não havia lugar para mulheres solteiras na vida regular das famílias. Na juventude representavam o pecado; na velhice tornavam-se patéticas.
Mas, ao contrário do que tantas vezes se pensa, a vida destas jovens não terminava quando tomavam votos. No livro Mulheres Enclausuradas - As Ordens Religiosas Femininas em Portugal (edição Casa das Letras, €18,90), o historiador Arlindo Manuel Caldeira mostra que, em muitos casos, este caminho lhes proporcionava uma autonomia e um nível de realização pessoal que raramente lhes eram permitidos na vida secular, ao lado de marido e filhos. O autor chegou a este tema através de dados que lhe foram aparecendo ao longo dos vários anos de pesquisa sobre escravatura (a que já dedicou vários livros), mas esclarece que nada liga as duas situações: "O que caracteriza a escravidão é a anulação total do indivíduo enquanto pessoa, já que é tratado como mero objeto ou mercadoria. Isso não acontece com as religiosas, que têm alguma margem de liberdade e não perdem a sua identidade de origem."

É evidente que a maioria das raparigas que ingressavam na clausura não tinha qualquer voto na matéria. Levavam-nas e num mundo em que o poder parental era lei absoluta não lhes ocorria desobedecer ou sequer questionar. Como escrevia na primeira metade do século XVIII Frei Luís de Santa Teresa (que o autor cita), "Muitas jovens tomam estado sem vocação de ser religiosas, só por contemporizar com o mundo ou por medo reverencial dos seus pais. Esta desgraça padecem as pessoas principais que ordinariamente tomam estado de religiosas contra seu gosto e no convento em tudo vivem segundo as leis do mundo, arriscando por pontos de honra a salvação e a vida eterna."
Para Arlindo Manuel Caldeira, importa dizer que muitas destas mulheres, oriundas de famílias poderosas da aristocracia e da burguesia, continuam a ser influentes dentro de convento: "É uma vida que acaba por lhes proporcionar mais oportunidades do que uma situação familiar tradicional, que podia ser muito opressiva para as mulheres do Antigo Regime. As que vêm da aristocracia chegam muitas vezes ao cargo de abadessas, o que por si só já era um cargo prestigiante, quer para elas quer para a família. Outras tornam-se conhecidas pelas virtudes ou ainda como escritoras. Não nos podemos esquecer que os conventos eram dos poucos meios alfabetizados desta época. Muitos deles estavam dotados de biblioteca própria." No livro, o autor escreve: "Apesar de todos os constrangimentos, as religiosas de grande número de conventos dispunham, nos claustros, de maior liberdade intelectual do que a generalidade das mulheres que, na mesma época, viviam no meio familiar." E refere vários casos, entre os quais o de Soror Violante do Céu: "Enquanto as outras cronistas, biógrafas ou poetas se mostram integradas na vida monástica e põem o seu talento ao serviço do convento, de forma direta ou indireta e por intercessão ou não dos confessores, nada disto acontece com Soror Violante. Só entra para o Convento Dominicano da Rosa aos 28 anos, por razões que se desconhecem, numa altura em que já era reconhecida e acarinhada, na própria corte, pela sua obra poética."


Mais famosas do que as freiras literatas foram, no entanto, as que ficaram para a História pelos amores ilícitos, como Soror Mariana Alcoforado (a quem são atribuídas as Cartas Portuguesas dirigidas ao Cavaleiro de Chamilly) ou Madre Paula de Odivelas, que manteve longo trato amoroso com Dom João V, de que nasceu um filho que viria a ser Inquisidor-mor do reino. "Temos de estar cientes - diz o autor - de que em todos os conventos houve um número significativo de freiras com pouca ou nenhuma vocação, mesmo que fossem pessoas devotas. Os conventos tiveram que se adaptar a esta realidade e uma das coisas que fizeram foi abrir-se ao exterior, através dos locutórios. Curiosamente, também aqui as mulheres estão em melhor situação do que no exterior, uma vez que podem escolher com quem falam e sobre que assuntos falam. Isto não acontecia na vida secular, onde, fossem solteiras ou casadas, todos os contactos da mulher estavam sujeitos à vigilância familiar."
Tal como não evitou os diálogos de locutório, o rigor espiritual dos conventos não impediu muitas freiras de se entregarem à confeção (e degustação) da mais requintada doçaria. Atesta-o ainda hoje a nomenclatura da especialidade, cheia de "barrigas de freira", "papos de anjo" e outras delícias feitas de muito açúcar e muitos ovos, bens dispendiosos à época: "Não podemos esquecer que muitas destas mulheres vinham das casas mais ricas do reino, algumas delas mantinham criadas ao seu serviço, tal como mantinham os gostos e hábitos da sua família. Mas estes doces, que podiam ser para consumo interno, eram sobretudo confecionados para oferecer ás pessoas que as visitavam nos locutórios ou para ser agradável com as autoridades civis ou eclesiásticas em dia de festa, por exemplo. Alguns destes conventos chegavam a fazer despesas loucas." O que causou não poucas críticas, como esta do Padre Manoel Velho, de que o autor nos dá conta: "Não me pode parecer bem que esteja a religião feita confeitaria, ocupando-se as religiosas esposas de Cristo em inventar iscos para a gula dos seculares, gabando-lhes estes os doces e não as virtudes." Mas o facto é que esta aparente falta de rigor haveria de salvar muitos conventos da falência quando, em épocas de maior aperto, a venda de doces se tornou uma importante fonte de rendimento. O que a posterioridade agradece. Ainda hoje a doçaria conventual é um legado gastronómico muito apreciado.

"Quando comecei a escrever sobre rainhas, percebi que há um lado das suas histórias não contado."
A primeira nasceu em Saragoça e ficou noiva aos dez anos, aos 12 já vivia em Portugal. A segunda era bisneta do rei de França e cresceu com os irmãos num palácio da Normandia, até que se casou com Carlos, herdeiro ao trono de Portugal e teve um destino infortúnio.