Nara Vidal, escritora: “O feminismo deve ser debatido à mesa do almoço”
A propósito do lançamento do livro "Canibal e Outros Contos em Portugal", pela editora Exclamação, a escritora brasileira de Guarani, Minas Gerais, discorreu sobre o lugar da mulher, na literatura e na vida.
Foto: Raquel Sol & Leo Melo07 de junho de 2023 às 07:00 Maria João Veloso
No ano passado, no final de uma Tedtalk em Lisboa em que falava sobre "o silenciamento das mulheres", chegou um homem perto de Nara Vidal e disse-lhe: Não acha que está a exagerar? Que já não é assim?
"Esta interrogação diz tudo. Como é urgente continuarmos a falar destes temas. Até hoje, tudo o que se conhece sobre o nosso próprio conceito foi feito pelos homens. Os homens sempre nos disseram o que somos. Se pensarmos nos conceitos da filosofia e da literatura, as mulheres são seres categorizados a partir do pensamento masculino. Isto não é aceitável, eles não nos podem dizer como é ser mulher. Quais os assuntos sobre os quais devemos falar. Definitivamente, eles não falam por nós", reclama.
Tendo o silenciamento feminino como premissa, Nara Vidal (1974), escritora mineira a residir em Londres há 22 anos, não cala temas incómodos. Galardoada com o Prémio Oceanos e finalista do Prémio Jabuti, a autora mostra como a mulher vive paredes meias com temas como o aborto, a violência psicológica e física, a violação e o silenciamento.
Escrevo neste tempo. Num tempo que em que discutimos questões políticas que transbordam para a ficção. As personagens não são tão premeditadas, ainda que sejam, claro, construídas. Mas fazem parte de um tempo e espaço que são estes os quais eu ocupo. Por isso essas personagens somos nós. Os contos são ficcionais, mas na realidade não são. São temas difíceis e complexos. Apesar de não ser a história da minha vida, ela passa a ser. Como mulher sinto que todas estas histórias fazem parte da minha própria identidade.
O que entendes por silenciamento?
O silenciamento é a subestimação da nossa inteligência. Foi muito grave a nossa falta de capacidade de acesso à informação e ao estudo para que discutíssemos questões frente a frente em igualdade com os homens. Um dos livros que mais leio na vida é Um quarto Só Para Si, de Virginia Woolf – um marco do feminismo moderno –, no qual a escritora fala da síndrome do impostor. E se interroga: será que posso escrever sobre isto? Será que não é muito íntimo? Quem irá validar isto? Penso que a nossa literatura deve ser feita a partir da honestidade. Jamais faria concessões ou mudaria um texto meu. Nem mesmo a língua. A língua que falo é brasileiro. Os temas que abordo são estes porque me incomodam.
Elas surgem no texto. Começo a escrever a partir de qualquer coisa. Não tenho esquema, nem estrutura. Ando sempre com um caderno. Não só para anotar as minhas observações, mas para não perder algum pensamento que me atravesse a cabeça. Na verdade, 90% do que escrevo vai para o lixo. As personagens surgem das pessoas que observo. De mim mesma. Às vezes quero contar uma história minha e transporto-me para uma personagem. É um disfarce que tenho. A literatura permite este jogo de adivinhas.
Não estás preocupada em corresponder a determinado género literário?
A literatura dá-nos liberdade. Posso ser uma personagem de um conto que apanha do marido. Posso ser a outra. Está ali um bocado de cada uma de nós. Essa questão dos tópicos femininos deve, no entanto, ser questionada sempre. Fico incomodada quando alguns homens se referem à literatura feita por homens como a grande literatura brasileira, e quando falam das mulheres dizem: umas das grandes vozes femininas da literatura. São coisas subtis que mostram que ainda existem muitos preconceitos.
É difícil para um homem "calçar" os nossos sapatos…
Concordo, mas questiono o seguinte: porque é que precisamos da validação deles? Há uma questão mais complicada. Nós queremos que as posições de decisão sejam ocupadas por mulheres. A partir daí não será mais necessário que um homem diga que a nossa literatura é feminina, íntima e pessoal demais. Penso que essas pessoas têm os dias contados e que serão substituídas por outras que pensam de forma mais inclusiva.
Não se trata de urgência de ficcioná-lo. Mas o feminismo não é uma temática fora da curva. O feminismo é político. Refiro-me ao sistema, à ideia de coletividade. Só para começar a conversa, atinge 50% da população mundial. Em casa ouvia muito que religião e futebol não se discutiam. Eu acho que quanto mais complexo é um tema, mais necessário é discuti-lo. Para onde vai todo esse silêncio sobre o feminismo? Para onde vai esse incómodo?
Estas coisas não desaparecem por magia. Por isso escrevo sobre questões que podem ser lidas como feministas. Mas atenção, nunca crio ou escrevo a partir do tema. A literatura tem a liberdade de falar de qualquer assunto. Quando um texto é escrito cabe ao leitor ler a história como agente político ou como feminista. Não cabe ao escritor premeditar uma história sobre feminismo. Não. O caminho é ao contrário.
Depende da hora do dia. A minha cabeça está ocupada com a leitura. Se não estou a escrever, estou a ler. Geralmente leio mais do que escrevo. Neste momento, estou a acabar o livro After Sappho, de Selby Wynn Schwartz, que fala sobre questões de mulheres. Ela pega em várias mulheres que existiram e ficciona as respetivas biografias. O mais interessante do livro é a voz narrativa. A voz narrativa é o "nós". Outra coisa que me passa pela cabeça é: como se arranja um equilíbrio entre a escrita e as contas que a vida pede que se paguem. Dou muitas aulas, faço traduções. Como é possível uma escritora poder viver da sua escrita? Seja o que isso for, porque não consigo.
Os avanços são nítidos. Nós já temos a educação necessária para reivindicarmos o nosso lugar. Mas os direitos da mulher não estão garantidos, por isso é que o feminismo é tão importante. Tal como a democracia, é bom que estejamos atentos para não perdermos os nossos direitos. Penso que o feminismo deve ser estudado na escola, debatido na mesa do almoço com os filhos. A questão feminina é política e conectiva. Esta voz precisa cada vez mais de ser ouvida.
O livro Canibal e outros contos é uma soma de vários contos..
Sim. O livro que sai agora tem alguns contos inéditos. Mas 70% vem do livro Mapas para Desaparecer. Incluí também alguns contos de A Loucura dos Outros, de 2017. É interessante revisitar essa escrita passada. O Canibal é inédito. A ideia era juntar contos antigos com os quais me identifico e estes novos contos.
Tenho dois filhos e é raro ter horas sem interrupção para escrever. Tudo é fragmentado. Às vezes, enquanto faço o jantar, posso tentar escrever um conto ou um parágrafo de um romance. Às vezes aviso em casa que estou a trabalhar. Os meus filhos aprenderam que o ócio, o caos, as distrações, são matéria-prima da mãe deles.
Os meus filhos nasceram em Londres e por isso a cidade estará para sempre dentro de cada um de nós. Vivi a maior parte da minha vida adulta ali, por isso há lugares que me lembram coisas boas e más. Gosto muito dos livros de Virginia Woolf que descrevem os seus passeios pela cidade. Quando passeio por Londres às vezes lembro-me de todos os escritores e artistas que já fizeram os mesmos caminhos que eu. Acho que a margem do rio tem essa magia.
Foto: D.R
Qual é a sensação de publicar pela primeira vez em Portugal?
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É um avanço fronteiriço íntimo, talvez. Essa língua, que tenho que calar tanto no meu dia a dia em Inglaterra, espalha-se sem fronteiras, passa pelo Brasil e passa agora por Portugal. Quem sabe um dia noutros países de Língua Portuguesa. Além de ser uma celebração publicar noutro país, publicar em Portugal tem um significado muito profundo.