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Virginia Feito: “Não sou o tipo de escritora que vai escrever para uma cabana na floresta.”

A autora madrilena passou por Lisboa para apresentar o livro thriller "Mrs. March", sobre uma misteriosa mulher de um escritor que assume o papel de anti-heroína numa intrigante história.

Foto: Getty Images
18 de julho de 2023 Rita Silva Avelar

Encontramo-nos com Virginia Feito em Lisboa, na sede da editora Penguin Random House, que publicou o seu livro em Portugal no passado 12 de junho. Editado em Espanha em 2021, Mrs. March chega-nos na silly season, em pleno verão, a tempo de o levarmos para a esplanada ou para a praia, que é precisamente o que fazemos. A escritora de 35 anos, nascida em Madrid, deixou a área da Publicidade – onde, aliás, era bem-sucedida – para se dedicar a este primeiro romance, que levou um ano a escrever, "permiti-me dedicar-lhe tempo". Confessa-nos, no fim desta entrevista, que teve medo de não o acabar. A jovem não está nas redes sociais, diz-nos, mas quer estar no meio literário e ter a sua própria voz. Mrs. March é uma história misteriosa sobre uma paranóica e frenética mulher, que leva uma vida abastada, que vive num bairro de classe alta em Nova Iorque, e que é casada com um famoso escritor. A sua vida aparenta normalidade até ao dia em que descobre que o marido, possivelmente, retratou-a no seu último livro, cuja protagonista é uma prostituta. A partir deste episódio, a leitora embarca numa série de tramas e enredos dignos de um thriller de Patrícia Highsmith (com quem a crítica compara Feito, nalguns traços de narrativa). Virgina Feito viveu em Paris, Londres e Nova Iorque, e vemos na sua escrita as referências visuais e culturais de todas elas: o gosto pelo género thriller, esse, herdou-o da mãe. Comecemos por aí.

Já viveu em várias capitais europeias, mas foi em Madrid que nasceu. Daí, como se desenrola a sua história pessoal?

Dos 6 aos 12 anos vivi em Paris, aprendi francês mas praticava mais inglês, porque a minha escola era internacional, com um sistema americano. Em Madrid, até aos 6 anos, frequentava a escola britânica, com crianças espanholas. Ironicamente, Paris tornou-se fundamental para o meu inglês. Os meus pais levavam-nos aos museus e a tudo o que era cultural – eu odiava tanto ir a museus! Aborrecia-me de morte. O meu irmão era mais velho e já saia com amigos...Teve outra experiência. Lembro-me de ir todos os fins de semana a livrarias com o meu pai.

Então foi sempre muito estimulada para a literatura?

Eu trazia isso de Espanha, a minha mãe conta histórias sobre mim, com 5 anos eu já tinha uma participação no jornal da escola. Em Paris isso tornou-se muito real, eu lia mesmo muito, em inglês. No regresso a Espanha mantive-me no Inglês, sentia-me até uma outsider, até porque tínhamos visto desenhos animados diferentes, tínhamos referências distintas [referindo-se aos colegas da escola]. Eu estava mais no mundo inglês, nunca aprendi verdadeiramente os principais aspetos da cultura espanhola. Ainda hoje as pessoas continuam sem acreditar que eu não sei 'quem é quem'. Como nos filmes americanos, em Paris também existiam diferentes grupos, era tudo muito socialmente agressivo, as pessoas sentavam-se à mesa do almoço em grupos. Na escola, toda a gente era precoce e a maturidade vinha mais cedo, eu sentia-me muito a viver aquela coisa ‘agora tenho amigos, agora já não tenho’, a tua melhor amiga muda rapidamente. Aos 11 ou 12 anos já todos tinham namorados/as, eu era de certa maneira inocente. Academicamente era duro. Os professores viram em mim um potencial nas letras, e desenvolveram-no, havia muita pressão, aos 11 anos eu já lia Jane Eyre. Essa atitude despertou algo em mim neste sentido, e os professores apoiavam-me. Liamos coisas em alto, nas aulas. Isso fazia-me sentir bem.

A sua escrita é escorreita, misteriosa, complexa. Alguém que escreve é observador desde sempre?

Nas cartas que os professores escreviam aos meus pais, diziam que eu era uma criança que absorvia tudo, e que era muito diplomática. Ou seja, eu conseguia ler os meus colegas muito rápido, agir e garantir que ninguém se aborrecia. Se calhar nunca poderei ir para Política (risos). Regressada a Espanha estudei lá. Mais tarde, fui estudar Inglês e Drama em Londres, porque eu sempre gostei de representar. Queria fazer coisas que as outras crianças achavam embaraçosas, eu gostava dessa atenção. Rapidamente percebemos todos que [ser atriz] não era para mim! (risos). Pensei que representar ou escrever não era realístico, então acabei por entrar num Mestrado de Publicidade. Pensei que podia ser como escrever: ao escrever anúncios comerciais, para vender produtos e serviços. Era criativo, vivi em Nova Iorque 1 ano, depois voltei para Espanha de novo.

Já nessa vida, quando é que decidiu sair e dedicar-se só à escrita literária? Porque é que a publicidade ficou para trás?

Eu era feliz lá, a fazer aquilo, mas ao mesmo tempo nem por isso. Não era algo que sentia que devia fazer, é pretensioso dizer isto, mas sentia um chamamento. Sentia que estava a desapontar toda a gente, que tinha potencial e que estava a escondê-lo – muito dramático, eu sei. Publicidade ia lindamente, mas eu sentia um vazio. Quando o meu namorado, que era inapropriadamente o meu chefe, também – e hoje meu marido – me disse que me iam promover a diretora criativa (e eu ainda não tinha 30 anos), ele perguntou-me se eu queria isso ou, antes, que me despedissem. Imediatamente pensei: "eu desejo que me despeçam." Ir para casa e tentar escrever foi um pensamento de alívio que eu tive. Analisar marcas, conhecer pessoas, imaginar imagens – tudo isso não me dava liberdade suficiente. Continuar tudo isso pareceu-me uma visão terrível. 

Virginia Feito nasceu em 1988 e foi crescendo entre Madrid e Paris.
Virginia Feito nasceu em 1988 e foi crescendo entre Madrid e Paris. Foto: D.R

Já tinha tentado escrever um livro? Começar?

Eu não faço esboços, pelo menos não muito detalhados. Eu sento-me e vomito as palavras. Sinto que vomitei tudo aquilo que eu não fiz durante todos estes anos, e pus tudo o que tinha neste livro. Pensei numa perspetiva de "only shot", e pus lá tudo, as melhores ideias. Foi como ter um cordão umbilical com o livro. Tudo o que eu absorvi, tudo aquilo de que eu gosto, tudo aquilo que eu li, está tudo neste livro. Por isso, agora, estou lixada (risos). Não sobra nada!

E a ideia de Mrs. March? A base?

Desde pequena, sempre tive várias ideias para livros, mas esta era a mais recente, e foi estranho que a tivesse escolhido. Esta era a mais livre, mais entusiasmante, mais arriscada. Como um novo amor. É novo, fresco, diferente, esperançoso. 

Esta mulher tem várias camadas, e nós mergulhamos nela. É um page-turner. Esta tem estes segredos todos. Como foi descobrindo essas camadas? Sabia-a complexa?

Sabia que queria que ela tivesse qualidades de que eu não gosto, que fosse uma mulher fácil de detestar. Não lhe queria dar nada que eu admirasse nas pessoas. Pensei que fosse interessante descrever dessa perspetiva. No que diz respeito à complexidade psicológica, penso que estou sempre à procura dela. Mesmo na situação mais banal: uma amiga diz-me, ‘o meu ex-namorado enviou-me esta mensagem’, e eu sou do género, ‘vamos já analisar isto de forma profunda’ (risos). Como podemos diagnosticar esta pessoa? O que lhe aconteceu na infância? Adoro analisar excessivamente as pessoas. Como as pessoas se incomodam tanto com alguma coisa, como reagem de formas tão diferentes à mesma coisa. Parece simples, mas é complexo. O thriller é ela, a Mrs. March.

Ela é uma espécie de anti-heroína?

Eu alimentei uma tendência em que a personagem feminina é como uma anti-heroína – que é suposto ser difícil de gostar, mas depois acaba por ser adorada – é uma mulher que bebe, que tem traumas, e continua a ser ela quem salva toda a gente no fim do dia. Muitas pessoas me dizem que sentem simpatia e compaixão por ela.

E que mais dizem as pessoas?

Dizem-me que ela é demasiado difícil de se gostar, algumas dizem que não acabaram o livro por causa disso. O que eu considero interessante. Comigo, se for ao contrário, sinto-me aborrecida. Eu sei o que uma boa pessoa fará em todas as situações, mas e em relação às más pessoas? É diferente. Fiquei surpreendida com as que se simpatizaram com ela.

E, por sua vez, o que sente em relação a todo esse feedback? É uma forma de parecer tudo real, finalmente, sentir-se escritora?

Muito feliz. Faz-me sentir medo pelo livro seguinte, com medo de desapontar as pessoas. Eu leio tudo, todas as reviews, é o meu primeiro livro. Quando se tem boas reviews, não podemos queixar-nos das más. O The New York Times gostou, o que me importa o que diz o Greg 1.050? (risos). É incrível. 

Mrs. March, de Virginia Feito (Alfaguara).
Mrs. March, de Virginia Feito (Alfaguara). Foto: Penguin Livros

Esta maneira de escrever, sempre em suspense, divertiu-a? Li um review que dizia: "Se não gosta de Hitchcock, não leia este livro!"

Eu sempre adorei thrillers, e por acaso via os filmes de Hitchcock com os meus pais. O Homem que Sabia Demais (1956), e cantávamos as canções. Sempre me atraíram os contos sobre enredos negros, misteriosos. A minha mãe, em particular, sempre viu thrillers violentos. Cresci numa casa meio conservadora, então os meus pais não me deixavam ver filmes de terror muito agressivos, talvez isso tenha criado mais curiosidade da nossa parte. Quando nos deixava vê-los, a minha mãe fazia-me reparar nos pequenos detalhes, das roupas aos pormenores menos visíveis, e explicava-nos os filmes, era analítica. O meu pai, por sua vez, é um grande leitor, e contava-nos histórias, inventava histórias para cada filho baseado em cada gosto, para o meu irmão era o Jumanji, futebol, ação! Ele comprava-nos os livros que queríamos.

Escrever, ser escritora, é uma profissão solitária?

Eu adoro isso. Sou uma pessoa introvertida. Gosto de interagir com as pessoas, mas cansa-me, drena-me. Gosto de estar sozinha, às vezes é demasiado, e faço um esforço consciente para deixar a casa. Gosto de ter luz, sento-me à secretária e em frente à janela. Certa vez fiquei lá tanto tempo, que quando saí incomodavam-me os movimentos e a luz. Comecei a dar passeios durante o dia, mas é naquele espaço que tenho os meus livros, as minhas coisas. Não sou o tipo de escritora que vai escrever para uma cabana na floresta. Preciso da internet para todas as questões que tenho, e sou uma escritora lenta. Tudo me leva muito tempo.

Agora que o mito se quebrou, que lançou este primeiro livro, há uma sensação libertadora?

Interessante. Sim e não. Claro que foi extraordinário, e foi o melhor primeiro passo que podia ter dado, era tudo novo; mas por outro lado posso ter, entretanto, perdido uma certa inocência de que posso vir a precisar. Por um lado, era melhor [a primeira vez que escreve]. Agora sei coisas e estou mais intimidada por elas. Agora estudei mais e sei o quanto tudo custa. Se correu tão bem, agora pode ir tudo cano abaixo…

É o peso da responsabilidade de se ter tornado escritora? O querer muito?

É desesperante o quanto eu quero ser escritora, mais do que antes. Sinto que esta é a vida que eu quero, e quero-a mais agora do que nunca. Porque a vivi… tenho medo que não se concretize, que não seja capaz de a manter. Eu sei que é tudo imprevisível, que há uma certa sorte que se proporcionou com este primeiro livro, sei que há uma base de leitores que esperam, agora, coisas de mim, e também sei que tenho que ser criativa, quero fazer coisas novas. Não sei se quero escrever a Mrs. March para sempre – ou será que quero? É confuso! Agora tenho agentes, editores, todos têm opiniões, e por vezes elas diferentes. É um grande problema para se ter (risos).

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