Esta história não é exatamente a minha. É antes uma história com os meus vizinhos de cima. Nem sei se é bem de amor, mas cá vai. Desde que nos mudámos para a casa nova - um apartamento num prédio dos anos 60 no centro da cidade - que nos temos deparado com o barulho. Não me refiro ao barulho da rua, o burburinho da cidade, uma inevitabilidade para quem gosta de viver no centro - e nem nos podemos queixar, a casa está bem isolada, da rua não vem muito barulho. O maior problema tem sido o ruído dentro do prédio. Principalmente, o que vem do andar de cima.
Logo da primeira vez que dormimos na nova casa, fomos acordados ainda de madrugada. Alguém parecia ter deixado cair alguma coisa. Podia ter sido uma garrafa de vidro cheia, uma pedra de calçada ou um haltere de 4 quilos. Nunca saberemos, mas o estrondo do objeto a cair pesada e duramente contra o chão de tacos de madeira acordou-nos aos dois. E depois não ficou por aí. Os barulhos continuaram: objetos arrastados, gavetas a abrir e a fechar com força, portas fechadas com estrondo, saltos altos, tac tac tac tac, para a frente e para trás durante uma interminável hora e meia - o barulho começou ainda não eram sete da manhã.
Comentámos, eu e a minha mulher, que a vizinha de cima devia ter-se mudado há pouco e talvez ainda tivesse dificuldades com a arrumação da casa, o que explicaria a necessidade de arrastar, abrir, fechar, deitar ao chão, montar, desmontar, atirar contra a parede, deixar cair, desarrumar, arredar, martelar, partir e voltar a guardar numa gaveta pesadíssima todo e qualquer objeto, decorativo ou não, possivelmente existente no seu apartamento. "Pois, deve ser isso", disse a minha mulher. Mas não me pareceu convencida.
A história repetiu-se no dia seguinte, com ligeiras nuances - os saltos altos começaram a caminhar mais cedo, num exercício que me parecia aquilo a que nos anos 80 se chamava jogging e a que agora, tanto quanto sei, se diz que é running, mas que para mim é igual: era uma senhora a correr de saltos altos no apartamento por cima do meu logo às seis e meia da manhã. "Mudanças recentes, não é Rogério?", questionou a minha mulher, e eu respondi-lhe "nunca se sabe", porque acredito que nestas coisas temos de ser compreensivos uns com os outros. "Também temos as nossas tralhas todas ainda por arrumar", acrescentei com sublinhada superioridade moral e uma serenidade que infelizmente não se vê muito.
Na manhã seguinte, a mesma coisa. E na outra a seguir, mais do mesmo. Eu e a minha mulher, a Beatriz, já nem comentamos. Até que a meio da segunda semana na nova casa, a Beatriz declarou "Rogério, se não vais tu falar com essa maluca, vou eu". E eu, encolhendo os ombros, "mas o que é que eu vou dizer à senhora?" Enfiou os chinelos - uns chinelos de inverno que teimosamente usa o ano inteiro, mesmo quando está calor, porque diz que são confortáveis -, pôs um roupão pelas costas (esse sim, adequado à estação: muito mais leve, fresco e arejado) e saiu porta fora. Subiu pelas escadas, nem chamou elevador.
Três minutos mais tarde, estava de volta. "Rogério, não vais acreditar." Fiquei alarmado. O que se passaria naquela casa? "Não há vizinha nenhuma." Fiquei confuso, baralhado, incrédulo. Andaríamos nós a ser acordados por uma assombração? "Como assim?", balbuciei. "É uma alma penada?", perguntei com ingenuidade. "Não, Rogério… não há vizinha. Só há vizinho. No caso, vizinhos. São um casal gay." O meu espírito boomer estava estupefacto e não me saía da cabeça uma questão: então e os saltos altos? A Beatriz esclareceu-me, contando tudo. Que eram um casal sossegado, que trabalham em novas tecnologias: um, que é de França, da Provença, em cripto-currências; outro, que é português, do Porto, em programação. Que têm um gato, que o gato é irrequieto, porque é jovem, porque fica sozinho muitas horas, porque tem muita energia. "Talvez o barulho seja feito pelo gato", disse o português do Porto. "Nós não fazemos barulho, quase nem estamos em casa", decretou.
A Beatriz contou-me isto e ficou a olhar para mim. Eu, que detesto não ter razão, não consegui olhar para ela. "Se amanhã de manhã fizerem barulho, vou lá eu", foi tudo o que consegui dizer. Na manhã seguinte, fizeram barulho. A Beatriz sentou-se na cama e, com ar inquiridor, disse "Rogério?" Vesti umas calças, enfiei os chinelos dela - demasiado quentes, mas sem dúvida confortáveis, apesar de serem dois números abaixo do meu - e subi os degraus. Toquei à campainha duas, três, quatro vezes, mostrando impaciência. Ouvi alguém caminhar dentro de casa, de saltos altos, dirigindo-se à porta com um passo firme e apressado sem parecer aflito. Depois houve uma pausa. Momentos depois, abriam-me a porta. Um rapaz de barba, pelos seus trinta anos, de t-shit e descalço, disse-me bom dia, eu disse ao que vinha e quais eram os meus protestos, mas diante das suas boas maneiras, da sua tranquilidade, da sua educação, não consegui ser firme e veemente na minha reclamação. Chamava-se Rui e só me disse "só pode ser o nosso gato, o Gastão, que é um malandro" e riu-se. Não consegui discutir. Quando virei costas, o Rui disse-me "ah, às vezes fazemos uns exercícios, eu e o Clément", então voltei-me para olhar. "São uma mistura de fitness com bem-estar íntimo", disse. "Ah", disse eu, e fiz um sorriso forçado. "Quer vir amanhã? Começamos às 7 da manhã."
Desci as escadas sem responder, entrei em casa e disse à Beatriz "não vais acreditar". Contei-lhe tudo, com detalhe - a conversa, as entoações, os tiques e os maneirismos, as insinuações, os desmentidos e o atirar das culpas para o gato, o passar por cima das reclamações, das minhas tentativas de dizer "sim, mas vocês fazem muito barulho" - e a minha mulher só me dizia, segurando um sorriso escarninho e malandro, "é claro que eles fazem barulho, Rogério… mas é preciso fazerem tanto? Essa é que é a questão."
E então bateram à nossa porta. Espreitei pelo óculo, era o Rui. Ficámos sem saber o que dizer, eu e a Beatriz. Fiz sinal que ia abrir, ela acenou que sim, meio nervosa. Abri. "Querido vizinho", disse ele, "gostava muito de o convidar para se juntar a nós amanhã nos nossos exercícios". Queria mostrar-me que tudo o que faziam era legítimo, e eu disse "com certeza que sim, pois claro", ia tentar explicar que o me incomodava era o barulho, não a legitimidade. Olhou-me com olhos fulminantes. "Sei bem o que vocês pensam de nós, mas aquilo que nós fazemos é normal, é o que toda a gente faz." Tive de lhe responder, "isso não é bem assim, porque eu às sete da manhã estou a dormir." O Rui nunca mais me falou, mas o ruído diminuiu.