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Maria Alice Marto. A primeira portuguesa a ganhar uma estrela Michelin ainda vai ao restaurante provar os caldos

Mais de três décadas tiveram de passar para voltar a haver presença feminina na brilhante constelação Michelin. Marlene Vieira (Lisboa, Marlene,) e Rita Magro (Porto, Blind) sucedem a nonagenária Maria Alice Marto que, em 1988, abriu, sem expectativas, um restaurante que acabaria a provocar romarias.

Foto: DR
09 de abril de 2025 às 08:00 Patrícia Santos

Foi na sua Fátima natal – mas afastada das multidões que peregrinam até ao emblemático Santuário —, mesmo ao lado de um cemitério e de frente para uma estrada estreita e pouco movimentada que, em 1988, Maria Alice Marto abriu o Tia Alice. Do alto dos seus 53 anos, a fatimense tinha vários receios, pouco ou nenhum apoio dos locais e zero experiência profissional nas áreas da gastronomia e da hospitalidade. Esta era, acreditava a própria, uma receita fadada ao fracasso. A seu favor tinha, contudo, alguns ingredientes que viriam a revelar-se essenciais: um talento inato entre tachos e panelas, que descobriu e desenvolveu praticamente sozinha, graças a uma força de vontade inquebrantável e curiosidade sem fim; a isso soma-se o incentivo (e ajuda) da família, bem como uma simplicidade e humildade que ainda hoje se notam nos seus olhos sempre brilhantes e no sorriso doce. E, acima de tudo, o desejo de fazer cada vez melhor.

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Quase quatro décadas depois dessa tímida abertura, o resultado, embora inesperado, é mais do que satisfatório. Apesar de uma série de dificuldades, o restaurante não só sobreviveu como se transformou num caso de sucesso capaz de atrair comensais de todo o país e de diferentes partes do mundo. Já Maria Alice, que em 1993 se tornou a primeira mulher portuguesa a receber uma estrela Michelin, há muito rubricou o seu nome, de modo indelével, na história da gastronomia nacional. No ano em que, após uma longa ausência feminina, Marlene Vieira (Lisboa, Marlene,) e Rita Magro (Porto, Blind) entraram para a prestigiada constelação, a Máxima conversou com a nonagenária, uma pioneira que nunca pretendeu sê-lo, para descobrir o que os seus cozinhados não contam. Lúcia, a filha que a acompanha a tempo inteiro, completa o relato quando as palavras lhe faltam.

Um amor para a vida toda

Como a maioria das boas histórias de amor, a de Maria Alice aconteceu de forma inesperada. Tinha apenas 13 anos quando o seu caminho e o de José Gomes dos Reis, nove anos mais velho, se cruzaram. A adolescente estava longe de imaginar sentir interesse por qualquer rapaz no momento em que o conheceu. 

"O meu pai era o mais novo de cinco irmãos e só contava oito anos quando perdeu a mãe, a quem era muito ligado", começa por explicar Lúcia. "O avô casou então com outra senhora, da qual ele nunca gostou por não ter nada a ver com a mãe. Sem saber como lidar com o sucedido, saiu de casa e foi andando até chegar aos Amiais, onde acabou a servir uma família que se apiedou da sua situação. Entre outras tarefas, ajudava a cuidar das crianças em troca de sustento e de abrigo. Por lá ficou até aos 17. Nessa altura, resolveu procurar os irmãos e, quis o destino, um deles tinha arrendado um espaço ao meu avô materno", acrescenta. 

A paixão pode não ter sido instantânea, mas o encanto demorou pouco a surgir. "Apesar das dificuldades que passou na vida, o pai era uma pessoa com um humor extraordinário e bastante brincalhão. Assim conquistou a minha mãe", garante Lúcia. Maria Alice, de sorriso no rosto, logo confirma: "Ele adorava contar histórias e eu adorava ouvi-lo. Era engraçado e diferente daquilo a que estava habituada. Todas as raparigas gostavam dele. Por sorte, ele gostava de mim".

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Tudo estaria encaminhado, não fosse António Marto ter outros planos para a filha. "O meu avô sempre foi um homem severo, que olhava muito para as terras e queria casar as filhas com alguém de posses. Como o pai não tinha nada, nem queria ouvir falar do namoro. Ao aperceber-se que o interesse mútuo podia pôr em causa o casamento que tinha idealizado com um rapaz abastado, proibiu-os de se verem".

Para evitar riscos, mandou Maria Alice para casa de uns amigos, em Lisboa, e fez correr a palavra de que esta tinha ido para a Madeira. Lá permaneceu até José a descobrir. Seguiu-se um período de clausura no Colégio Andaluz, em Santarém, onde ficou durante sete anos, dos 14 aos 21. Nesse período, não se viram, mas quando o amado a encontrou, acabou por convencer uma das freiras a permitir que trocassem cartas para atenuar a distância. Nem a ida de José para Moçambique cessou a comunicação entre o par, que nunca desistiu de ficar junto.

Após sair do colégio, Alice regressou a Fátima, mas não a casa. "O avô nunca mais a perdoou. A minha mãe tratou então de fazer o enxoval, com o dinheiro que o meu pai lhe tinha enviado ao longo dos anos, e casaram por procuração. Com as coisas orientadas, foi sozinha para Lisboa e embarcou numa viagem de 23 dias até à Beira."

Maria Alice lembra que passou "o percurso todo agoniada" e que "andava cansada por ter de tratar de tudo", mas, mais do que qualquer outra coisa, estava feliz por ir reencontrar o agora marido. Apesar de certos percalços, como o avanço de outros rapazes, que ignorou o melhor que podia, a nonagenária chegou ao tão esperado abraço de José, com quem esteve casada 54 anos. "Fomos muito felizes", assegura.

Uma cozinha de sabores e de memórias

A vida no país africano, onde o casal morou 17 anos e teve seis filhos – Filipa, a sétima, nasceu após o regresso a Portugal –, foi tranquila. Ele trabalhava nos caminhos de ferro e ela era uma dona de casa dedicada, que se entregava por inteiro à vida familiar. Aqui, inclusive, aprendeu a cozinhar. "Por incrível que pareça, antes de casar, a minha mãe não sabia quase nada de cozinha. A minha avó era uma grande cozinheira, mas nunca ensinou nada às filhas neste sentido. Queria o fogão só para ela", comenta Lúcia.

Como era prevenida e precisava de estar preparada para depois do matrimónio, quando Maria andava no Colégio Andaluz já estava sempre com o olho nos cozinhados das freiras e apontava as receitas que conseguia num caderno que levou para Moçambique. Com as poucas amigas que fez na nova morada, também elas excelentes cozinheiras, alargou os seus conhecimentos e refinou o que acabou por ser um talento inato. "Tinha jeito para tudo e, desde o início, tudo o que tentava lhe saía bem, mas isso não a fazia relaxar. Procurava sempre aprender mais e fazer melhor para servir a família e aqueles que nos visitavam. Ao contrário dela, que era mais solitária, o meu pai era muito social, pelo que tínhamos sempre a casa cheia."

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Se não estivesse a cozinhar, a matriarca estava a cuidar dos filhos de outras formas. Ora os ensinava a coser, ora os ajudava com a escola. Era professora e catequista. "Gostava muito de a ver costurar. E bordava como ninguém. Foi ela que fez os nossos enxovais. Passava os meses de gestação a prepará-los. De fraldinhas a meias, toalhas e resguardos, fazia tudo", recorda Lúcia. Não esquece, igualmente, as orações e as leituras bíblicas de todas as noites, no quarto dos pais, antes da hora de dormir.

"Fomos muito felizes em África. A perda repentina de uma irmã, devido a uma hepatite fulminante, é a grande mágoa que trouxemos. Ficou muito doente e precisava de um transplante, mas não houve tempo. Em poucos dias, acabou por morrer. Ficamos todos abalados, quase sem entender o que aconteceu."

Uma sala de jantar aberta ao mundo

Em 1973, sem José Gomes dos Reis, que apenas regressaria mais tarde, a família veio para Portugal, onde Maria Alice deixou de lado os desentendimentos e cuidou do pai até à morte deste, com 91 anos. De herança, recebeu a casa em que viveu na infância e na qual acabaria por abrir o seu restaurante.

"A mãe nunca teve a intenção de ter um negócio. Esta foi uma ideia que jamais lhe passou pela cabeça, apesar da grande paixão que ganhou pela cozinha e de estarmos [os familiares e amigos], constantemente, a elogiar tudo o que fazia. Alguns primos é que começaram a sugerir criar alguma coisa, já que havia tanto espaço. Com o tempo, os filhos juntaram-se ao peditório e lá acabou por aceitar. Disse-lhe que não se preocupasse, pois não precisava de inventar nada. Ia apenas continuar a cozinhar o que já cozinhava e a receber todos como em casa. No fundo, apenas alargámos a nossa sala de jantar e passámos a receber mais pessoas, nem sempre conhecidas. Não tínhamos grandes possibilidades, pelo que só fizemos alguns restauros, mas era uma coisa pequenina, com uns 40 lugares, num ambiente familiar e despretensioso, com as paredes em pedra, o chão em madeira, toalhas e guardanapos de linho e poucos adereços. O objetivo era ir aprimorando conforme nos fosse possível", descreve Lúcia. 

Como previram, os primeiros tempos foram complicados. Além de não contarem com a melhor localização, os fatimenses olhavam para o Tia Alice com um certo desdém. "Para as pessoas de cá, isto era um absurdo. Não entendiam o que estávamos a tentar fazer. Questionavam o que nos passava pela cabeça para abrir um restaurante, sem nenhuma experiência e logo ao lado de um cemitério. Como a estrada era pouco movimentada, os clientes de circunstância também eram difíceis. Foi duro manter as portas abertas".

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A situação começou a mudar cerca de um ano depois, graças à visita de José Quitério, jornalista do Expresso. "Costumava ficar na sala e, certa vez, um cliente perguntou-me se sabia quem estava sentado numa determinada mesa. Disse-lhe que não e ele aconselhou-me a ter cuidado, porque era alguém que fechava restaurantes. 'Faz uma crítica negativa e podem ter problemas', avisou. Nem liguei muito, porque até já estavam a tomar o café e não havia nada a fazer. Até àquele momento, nem sabíamos da existência de críticas gastronómicas e o quão importantes podiam ser".

Passado uns dias, o fundador da secção de gastronomia do semanário voltou, com mais quatro pessoas, entre as quais David Lopes Ramos, crítico do Público. Os textos que publicaram mudaram o rumo do Tia Alice. "Para quem gostava de conhecer restaurantes, o José Quitério tinha muito impacto. E na reportagem dele, que saiu num sábado, chamou-nos 'o quarto segredo de Fátima'. No domingo, fomos completamente invadidos. Vinham pessoas de todo o lado, faziam fila e empurravam-se uns aos outros. Tínhamos a escada de acesso cheia. Sem essa crítica, a história teria sido muito diferente. A do Público também não podia ter sido melhor. Nunca mais tivemos sossego e ainda bem".

Embora o número de clientes tenha disparado, o que obrigou a algumas mudanças, o essencial permaneceu inalterável. No centro de tudo, seguia uma cozinha tradicional, cheia de sabores que remetem para a infância e lembram os pratos que as avós costumavam preparar. Em poucas palavras, falamos de uma confeção rigorosa e paciente que inclui tempo para refogar, repousar, apurar sabores e absorver sucos.

A rotina de Maria Alice continuou igual. Todos os dias, até aos 85 anos, quando uma queda a obrigou a abrandar, a matriarca levantava-se às 06.00 e só voltava a deitar-se às 23.00. Começava por amassar o pão e depois, fizesse chuva ou sol, caminhava cerca de uma hora. Quando voltava, tendia a massa para levá-la ao forno. Aos domingos, ia à missa com o marido e voltava para matar e arranjar os patos e galinhas que criava, para estar tudo o mais fresco possível e nem precisarem de ir ao frio. Os caldos, "essenciais para dar sabor à comida", começavam a ser preparados cedo. "Das manteigas às geleias e marmeladas, tudo era, e é, feito aqui, do modo mais natural possível, com legumes da nossa horta ou de produtores de confiança. Nunca quisemos nada com conservas. Este é o legado que queremos perpetuar."

Atualmente, é o filho António Marto quem comanda a cozinha, seguindo os ensinamentos da mãe, que registou em vídeo a preparar todas as receitas. Com a restante equipa, toda com mais de 25 anos de casa, procura seguir os ensinamentos de Maria Alice que, num ritual que pretende manter enquanto a saúde lhe permitir, continua a provar, diariamente, os caldos. "Trata-se de uma rotina importante para ela e para o meu irmão que, como a mãe, é muito perfecionista. Faz questão de ver como prova e ouvir o que tem a dizer para poder melhorar".

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Uma mesa para todos

Se há algo em Portugal que parece ser consensual entre a classe política, é este restaurante em Fátima. O Tia Alice já serviu representantes de todas ideologias. De Ramalho Eanes a Mário Soares, José Sócrates, Cavaco Silva e António Costa, todos parecem satisfeitos quando se sentam à mesa deste restaurante. Também a classe artística faz parte da clientela assídua. O pintor e ceramista Manuel Cargaleiro, o artista plástico Pedro Cabrita Reis, os cantores Rui Veloso, Simone de Oliveira, Montserrat Caballé, Maria Bethânia e Martinho da Vila, os atores Rodrigo Santoro e Tony Ramos, e os arquitectos Souto de Moura, Siza Vieira e Manuel Salgado são apenas algumas das personalidades que por lá passaram ao longo dos anos. De resto, José Saramago foi o primeiro a assinar o livro de honra do espaço. O celebrado escritor chegou a dizer que devia ser criado, em homenagem a Maria Alice, um Prémio Nobel da Gastronomia.

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De figuras públicas a ilustres desconhecidos, todos vêm à procura de iguarias como o bacalhau gratinado, ao qual é possível adicionar camarão (desde 44,50 euros para duas pessoas), o arroz de robalo e tamboril (58 euros para duas pessoas), o arroz de pato (44,50 euros para duas pessoas), a açorda de bacalhau (24,50 euros), a vitela assada (24,50 euros) ou a chanfana em forno a lenha (24,50 euros). Doces como o gelado de natas, com chocolate quente e amêndoa torrada (8,50 euros), o pudim de ovos (7 euros), o bolo de noz com ovos moles (9,50 euros), ou o leite creme conventual (10 euros) são igualmente dignos de romaria. Foram pratos como estes que, logo em 1993, cerca de cinco anos após a inauguração do restaurante, chamaram a atenção dos inspetores do Guia Michelin, que lhe atribuíram uma estrela. Em Portugal, era a primeira vez que uma mulher recebia a distinção. "Só soubemos que ganhámos a estrela porque um cliente nos disse. Não tínhamos ideia do que significava. Quando fomos pesquisar, ficámos muito felizes, claro. Mas nunca nos iludimos. Seguimos com a missão de sempre: receber e servir bem quem nos recebia, da forma mais autêntica possível. A mãe só queria saber se os clientes tinham comido bem e se estavam satisfeitos. Tudo o resto era secundário. Mantivemos a estrela por três anos", conclui Lúcia.

Mais recentemente, em 2022, Maria Alice foi condecorada por Marcelo Rebelo de Sousa, também ele um cliente assíduo, com o grau de Oficial da Ordem do Mérito Empresarial, Classe do Mérito Industrial, graças ao "seu contributo para a imagem do país além-fronteiras, enquanto digno representante da cozinha tradicional portuguesa".

Onde? Av. Irmã Lúcia de Jesus, 152 (Fátima) Horário?Terça a sábado das 12.00 às 15.00 e das 19.30 às 21.00, domingos das 12.00 às 15.00 Reservas?24 953 1737

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