Histórias de Amor Moderno: "'Mesa para um', digo eu, e sinto os olhares piedosos da gente em redor”

“Partilhar o corpo, o espaço, o tempo, os sentidos, os odores, os fluídos, as respirações. Dispenso.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Foto: IMDB
17 de junho de 2023 às 07:00 Maria Olívia Sebastião

Cheguei a um ponto em que desisti e passei simplesmente a pedir "mesa para um". Ou, ainda pior, a responder com o indicador de cada vez que o empregado de mesa ou o chefe de sala, dependendo do estatuto do restaurante, me perguntavam "quantos são?" Houve uma altura em que me batia pela justiça do género, entrava e, logo que alguém do staff se acercava, eu costumava dizer "mesa para uma". Não me entendiam. Apostava na dicção, lenta e angular, cada sílaba e cada consoante expelidas com tempo e com rigor, "me-sa pa-ra u-ma". Infelizmente, em pelo menos sete ocasiões de que me lembro sem esforço de memória, a confusão gerou-se de imediato, começando sempre pelo mesmo equívoco: achavam, por certo, que eu seria uma cidadã do Leste europeu procurando fazer uma reserva para a uma da tarde. "Mas já passa da uma", responderam-me certa vez, "é para amanhã?" E eu, baralhada e hesitante, "não, é para uma, para agora" - e o espanto de quem não compreende a resplandecer no rosto e no olhar do homem.

Não se pede "mesa para uma", é demasiado complicado por cá. Acabei por desarmar, por não querer saber. Venceram-me pelo cansaço. Ser-se solitário pode ser um fardo, mas ser-se solitária leva acrescento. Se fosse num país anglófono, por exemplo, tudo seria mais fácil. "Table for one", diria, e tudo seguiria com normalidade e sem entraves. Os ingleses descomplicaram tudo, os números não têm género, one, two, three... Nós, os da língua portuguesa, somos mais complexos. Damos género aos números, mas não a todos, apenas aos dois primeiros. Um é um ou uma, dois é dois ou duas; a partir do três tudo é aquilo que realmente é e que parece - três, quatro, cinco, seis e assim por diante. Calhou-me ser de letras, dou atenção a estes detalhes. Números não faz o meu género, mas género e número são fundamentais ao meu pensamento. 

PUB

Foi precisamente por dar aulas de línguas - de Língua Portuguesa a estrangeiros, para ser mais precisa - que dei por mim a conhecer outros lugares, lá fora. Primeiro na Inglaterra, depois na República da Irlanda (três anos num sítio e outros oito no outro - oito, and counting, que a aventura em Dublin ainda não terminou). A afeição pelo modo table for one foi crescendo ao longo destes anos de exílio profissional. Por um lado, a língua que uso no dia a dia não acrescenta género aos números e aligeira o peso da expressão "for one"; por outro, o facto de estar no estrangeiro, ainda por cima a dar aulas em universidades, o que me privilegia com um estatuto social no mínimo benigno, permitiu-me a descontração de não querer saber. Isso e a idade, claro. A idade faz verdadeiros milagres quando se trata de não nos preocuparmos - "don’t give a damn" - com o que os outros dizem, quanto mais com o que pensam.

Mas, de cada vez que regresso a Lisboa, a minha autoestima ressente-se. "Mesa para um", digo eu, e sinto os olhares piedosos da gente em redor. Tendo a frequentar estabelecimentos a que me habituei, em muitos casos tornei-me cliente habitual, pessoa da casa, próxima como se fosse da família - assim como uma prima em segundo ou terceiro grau que está emigrada e que vem visitar os parentes pelo menos duas ou três vezes por ano. Essa preferência pelos tascos que me conhecem e reconhecem aligeira-me o peso do pedido, "mesa para um", que se tornou desnecessário na maioria dos casos. E no entanto as pessoas à volta parecem considerar-me um objeto estranho, uma criatura de certo modo abandonada. Em determinado sentido, diria que olham para mim como se fosse uma mulher devoluta. Tomara que não me mandem emparedar!

O que essas pessoas não sabem, nem têm de saber, nem teriam como sabê-lo, é que, se almoço e janto sozinha, é porque assim desejo. Felizmente, não me falta companhia. São mais que muitas as solicitações que recebo, tanto quando venho à cidade-mãe biológica como quando regresso à Dublin que me adotou. O meu problema não é falta de amigos, nem de amor, nem sequer eu ser antissocial, que não sou. Só que eu gosto é de mim e de estar comigo. Bem sei que nestes casos, nestas Histórias de Amor Moderno, se partilham perdas e aproximações, alguns com mais outros com menos surpresas. Pois eu tenho para contar que o meu grande amor sou eu mesma. E não é que seja narcisista - nem a mãe-natureza me deu motivos para tanto - ou sequer demasiado autocentrada, como agora se diz.

PUB

Gosto muito do mundo, dos outros, das pessoas. Mas não tenho paciência para o amor alheio. Não sei se me faço entender, tentarei explicar melhor. Não consigo produzir maneiras sociais, diplomáticas e românticas para esperar por quem me queira, não estou para aí virada. Acho os rituais de cortejo e galanteio um profundo disparate mais que datado e digno de bocejos. O sexo, enfim, experimentei, não detestei, mas não acredito que mereça tanto espanto e tanto elogio quanto lhe dedicam - já para não falar do esforço. E a partilha? Partilhar o corpo, o espaço, o tempo, os sentidos, os odores, os fluídos, as respirações. Dispenso. Compreendo quem faz disso objetivo e propósito, mas dispenso bem. E a seguir à partilha das respirações, vem a partilha das aspirações, e é então que a coisa fica feia: ter filhos ou não ter, comprar carro, alugar casa, passar férias, juntar dinheiro, ter vícios, ter gastos mal justificados, ter gostos desalinhados, ter ou não ter animais domésticos. Não é divino nem cómico, mas será um panorama certamente dantesco.

Amo os meus livros e os meus recantos. Exploro o meu corpo sempre que posso e assim o desejo. Dou-me prazer, então não dou? Duvido que alguém me desse mais. Homens e mulheres bonitas tenho-os todos na minha cabeça - fantasio aquilo que bem me apetece. Sou imensamente livre. Não afirmo nenhum grau de felicidade porque essas coisas não se medem nem se comparam, mas tenho a segurança de saber que nunca ninguém me despedaçará o coração. Porque eu não me traio com outras pessoas e se o fizer será por mútuo acordo entre mim e eu mesma - assim, sem prejuízos nem zangas, nem tristezas, nem choros. Sou autogâmica, não acredito em nenhum outro sistema de afetos ou de investidas de caráter biológico. Não ando aqui para ser fecundada, não me levem a mal. Nem sequer pretendo ser amada. Sou uma mulher que vive e convive muito bem consigo mesma, que é a sua própria amante, amiga e confidente.

Do que mais gosto é de entrar em certos restaurantes, sobretudo naqueles onde não me conhecem, e dizer "é mesa para mim". Talvez o empregado de mesa ou o chefe de sala não saibam o que a frase significa e o quanto comporta. Não têm de o saber, nem teriam como o saber. Mas é a frase que me descreve, que diz tudo acerca do que sou e do que desejo: "É mesa para mim", o meu canto do mundo, o meu espaço privado, impartilhável e intransmissível, o tempo que me dedico, os pensamentos em que me perco sozinha, sem regras, nem receios, nem constrangimentos. É mesa para uma, para esta aqui, que sou eu.

PUB
leia também
PUB
PUB