É difícil assistir ao que se passou há alguns dias nos Estados Unidos da América. Tenho nojo. 24 de junho foi um dia traumático para as americanas e americanos, mas sobretudo para as americanas; um retrocesso de cinquenta anos para a América e para o mundo. Nojo. Sinto nojo. Sobre este tema não consigo ter sentimentos mansos. Estou habituada a ficcionar, é grande parte do meu trabalho, talvez por isso consiga imaginar com enorme facilidade o que irá acontecer a milhares de mulheres depois de ter sido aprovada esta lei aberrante que proíbe o aborto.
Obviamente que proibir o aborto não vai impedir que muitas mulheres o façam, por inúmeras circunstâncias que só às próprias dizem respeito. O corpo é delas. O corpo é nosso. Como é que é possível? Estamos em 2022 e esta lei volta a tratar as mulheres como um estorvo que não tem direito a opinar sobre o seu próprio corpo. Repito o que disse antes: é uma lei aberrante. Corrijo: são seres humanos aberrantes os que fizeram com que esta lei fosse aprovada. Estou farta de ser tolerante no que toca à actualidade. A tolerância também é uma forma de superioridade, como diz o filósofo Žižek, e eu concordo. Eu não sou superior. Sou uma mulher. Podia ser comigo. Pode ser comigo. Não podemos tolerar quem permitiu que uma situação destas fosse aprovada. Vamos encolhendo os ombros e assistindo com perplexidade. Um dia pode ser connosco.
Olho para as notícias e parece que entrámos numa nova era gótica. Lembro-me das pinturas de Hieronymus Bosch, imagino os homens que aprovaram esta lei como figuras do seu Inferno. O nosso inferno. Entre mim e estas criaturas sentadas nos tribunais dos Estados Unidos, há séculos que nos separam. Entre nós, mulheres, e aqueles monstros bem vestidos há séculos que nos separam. Repito frases neste texto, a História repete-se. É incompreensível. Não entendo. Imagino as mulheres a voltarem à faca que mata, em quartos kafkianos exíguos, sujos. É o corpo delas, é o nosso corpo. E novamente outro inferno, o de Dante. Todos os infernos para as mulheres, nesta lei que nos trata como a génese da Bíblia, como a Eva que comete o pecado. As pecadoras que não sabem controlar o seu próprio corpo. Sinto nojo e medo. Medo deste mundo que não é para nós, mulheres.
*A cronista escreve de acordo com o Acordo Ortográfico de 1990.