Louise Bourrat, chef: "Trabalhar para uma mulher é um problema para muitos homens"
Como uma chef de Lyon viajou pelo mundo até atracar no porto de Lisboa para comandar a cozinha do Boubou’s. Recordamos a entrevista com Louise Bourrat, a primeira mulher a vencer, em dez anos, o Top Chef francês.

Vive num barco, mas todos os dias vai até ao número 32ª da rua Monte Olivete, em pleno Príncipe Real, para fazer maravilhas dentro da cozinha do Boubou’s, restaurante do qual o irmão e a cunhada Alexis e Agnes Bourrat são proprietários e que abriu no verão de 2018. Com apenas 26 anos, e a chefiar a cozinha do Boubou’s, Louise Bourrat tem atraído todas as atenções sobre si, com uma cozinha experimental que brinca com texturas, sabores, e ingredientes improváveis.


Nascida em Lyon, e apaixonada pela cozinha desde pequena, estudou na francesa L’École Hôtelière Savoie Léman (que abandonou devido ao ambiente protocolar e a filosofia clássica da instituição) e acabou por se estrear na cozinha da Hostellerie de l’Abbaye de la Celle, do afamado chef Alain Ducasse, aos 17 anos. Somou experiências em cozinhas tão diferentes como as do Le Chalet de la Forêt (Bélgica), do Mandarin Oriental Hyde Park (onde trabalhou com Agnes) ou do Ours (Londres), onde trabalhou com Alexis e com o conceituado chef Tom Sellers. No Boubou’s, não é raro vermos combinações como couve com shiitake, tofu fumado, gema curada, miso e dashi ou fígado de tamboril com aipo demi-glace, kumquat, ingredientes que reúne nos pratos com uma meticulosidade fascinante.

Do balcão do exótico Boubou’s - que esconde um encantador pátio no seu interior – e enquanto bebericamos o fresquíssimo cocktail Duval Street que o bartender Mauro Roldão preparou - conta-nos as suas aventuras gastronómicas e das raízes portuguesas, mas também fala do lado menos bom da cozinha, como o assédio.


Antes de se instalar em Lisboa viajou por vários sítios como chef. Como chegou até cá?
Antes do Brexit, morava em Londres, tal como o meu irmão e a sua mulher. Decidimos ir embora. Eles quiseram voltar para Portugal – porque a minha mãe é portuguesa – e eu decidi ir viajar durante dois anos pela América do Sul e pela Ásia.

E porque decidiu vir para Portugal? Onde entra o Boubou’s?
Antigamente, aqui era uma tasca. Quando o meu irmão decidiu abrir o restaurante, eu estava no Nicarágua, e nessa altura aconteceu lá uma revolução, as fronteiras fecharam. Quis voltar para a Europa, e propus-me a ajudar na cozinha. Cheguei duas semanas antes da abertura. Gostei do projeto, e trabalhámos bem juntos. Agora, e especialmente depois da pandemia, o restaurante evoluiu muito. Antes estávamos abertos sete dias por semana, a equipa era grande, a comida era mais casual, mais mainstream.
O refresh na cozinha surge após a pandemia?

Durante o isolamento pensámos muito sobre o que queríamos fazer. Decidimos abrir só ao jantar, eu fico na cozinha com "as minhas meninas" e o meu irmão na sala. Até há uns dias, éramos só mulheres na cozinha, entrou agora um rapaz.

Gosta de trabalhar com mulheres?

É diferente, a atmosfera é diferente, há um amor pelos detalhes.
Já alguém na sua família cozinhava?
Cresci em Lyon, a capital gastronómica do mundo, e o meu tio é chef, trabalhava para Paul Bocuse. Em criança, passava muito tempo no restaurante. A primeira memória da minha vida é cozinhar com a minha mãe, aos 4 anos. Fazíamos ovos cozidos no forno. Aos oito anos já fazia bolos sozinha, cozinhar era o meu hobbie. Aos 13 ou 14, enquanto as minhas amigas iam ao shopping, eu queria era cozinhar. Na altura tinha vergonha de gostar de cozinhar. Não sei porquê! Por isso, segui estudos na área da Ciência. Mais tarde, iniciei um curso e desisti para ir aprender pelo mundo.

E a cozinha portuguesa? Filha de mãe portuguesa…
A minha avó é uma cozinheira incrível. Ela só faz comida portuguesa. Eu não consigo cozinhar para ela (risos). O meu prato dela preferido do mundo é bacalhau à brás.
Lembra-se da primeira cozinha onde entrou e pensou que tinha de agarrar-se ao trabalho?

Na cozinha do Alain Ducasse. Depois, mais tarde, na Bélgica, onde tive uma experiência horrível num restaurante de duas estrelas Michelin. Trabalhava 16 horas por dia, era responsável por uma secção, e fazia mais tarefas. Estava psicológica e fisicamente exausta. E também havia muito o problema do sexismo e do assédio na cozinha, por parte de homens. Era difícil lidar com esse tratamento. Fiquei dois meses e fui embora, senti vergonha. Apanhei as minhas facas e fui embora sem dizer nada. Aquelas semanas destruíram-me completamente, nessa altura queria mesmo parar de seguir esta carreira. Nessa altura, o meu irmão já estava em Londres, comprou-me um bilhete de avião e arranjou-me trabalho.

Num contexto de cozinha sente-se que não há saída deste tipo de assédio?

Sim. Uma coisa que aprendi lá é como não tratar as pessoas, o que não fazer. Não me arrependo de nada, porque aprendi.
Encontrou isso aqui em Portugal?
Bem, as coisas estão agora a mudar. Eu não tenho outra experiência em Portugal. No início, a equipa tinha 10 pessoas na cozinha, a maioria homens. Tive alguma dificuldade em encontrar um sous chef, encontrava sempre chefs com pelo menos 10 anos mais do que eu, e para eles isso era um problema, trabalhar para uma mulher. Houve um em particular que, ao fim de três ou quatro dias, disse que queria as suas facas e que ia embora. "Disse: eu não falo contigo, só com o teu irmão." Disse-lhe que se eu ficasse responsável na cozinha, em dois meses o restaurante fechava, e que eu devia ir embora. Queria ficar com o meu lugar.
É a eterna questão da superioridade e orgulho masculinos…
É exactamente isso. Não quero generalizar, mas parece-me que quando um homem chega a um cargo fica imediatamente com legitimidade, ou acha que já a ganhou. E nós, para merecer a legitimidade na cozinha temos que trabalhar muito mais e não ter fraquezas."

Qual é o conceito que tem presente aqui na cozinha do Boubou’s?
Antes tinha um conceito de fusão na minha cabeça. Fazia um ceviche peruano, com sabores da Tailândia. Para mim era um mecanismo que funcionava bem. Agora tenho mais confiança e estou mais focada no produto. Tento sempre escolher ingredientes surpreendentes, temos sobremesas com alho, por exemplo. Também é mais divertido para nós, assim. Claro que tivemos pessoas a procurar os mesmos pratos, quando abrimos de novo.
Custou-lhe tirar esses pratos da ementa?
Há coisas que já estão aqui há muito tempo e que vão ficar, mas quando temos tempo apostamos em cada vez mais novos ingredientes.

Que qualidade encontrou nos produtos portugueses?
O peixe é incrível. E estou a trabalhar com pequenos produtores com boas ostras, cogumelos… é um processo o que demora tempo, há muitos produtores mas também muitos chefs.
Tem saudades de viajar?
Consegui ir à Índia antes da pandemia. É a coisa que mais estranho, porque é o que me dá mais inspiração. Isso e ter tempo de ir provar novas coisas a mais restaurantes.
Vive num barco, certo?
É ótimo. No fim de 2019, tive um burnout e no dia em que mudei para um veleiro em madeira, e parece que se resolveu tudo. Senti-me como se fosse uma criança. É um sonho: sem vizinhos, cor azul por todo o lado, café da manhã no mar.
Qual diria ser a tendência do momento na gastronomia?
Acho que ser surpreendente, fazer associações que funcionam mas que são apelativas. Claro que o produto deve ser de qualidade, sempre, e o zero waste é inevitável. Estamos a usar o produto por inteiro na medida do que é possível. Como chefs, acho que temos uma missão de dar a educação ecológica através da comida. Comer peixe e carne todos os dias não faz sentido. Um prato vegetariano, hoje, pode ser bem mais interessante que um com carne ou peixe. É por isso que adoro as "minhas meninas", estamos todas muito mais no mundo vegetal, no mundo saudável.

Onde gosta de comer em Lisboa?
Gosto muito do Attla, é o meu favorito. Depois gosto mais de ir a tascas, gosto do Cabrita, em Cacilhas, ou do Senhor Uva. Tenho muitos na lista.
Quando? De terça a sábado, das 18h30h às 02h Cozinha aberta das 19h às 23h. Bar aberto das 18h30 às 02h Onde? Rua Monte Olivete 32, Lisboa Reservas +351 213470804 ou hello@boubous.com
