Ljubomir Stanisic: "Aprendi a levantar-me depois de cair, a não desistir, a sobreviver custe o que custar."
Se há coisa de que não podem acusar Ljubomir Stanisic é de falta de trabalho, resistência e humor. O carismático chef do 100 Maneiras apresenta agora Hell’s Kitchen na SIC em primetime, e continua absolutamente imparável.

Aos 6 anos já imaginava pudins noite dentro e pouco depois, numa destroçada Sarajevo, Ljubo, como carinhosamente é chamado pelos próximos, dizia à mãe: ‘Eu sustento a família’. Ela inventava receitas inimagináveis para que os filhos não percebessem que só havia batatas para comer, e ele herdou, seja em que circunstância for, essa "alegria e sentido de humor à volta da mesa".
Com a mãe e a irmã, Ljubomir refugiou-se em várias partes da Bósnia até chegar a Belgrado onde, aos 14 anos, trabalhou numa padaria e estudou à noite. Aos 17 aprendeu cozinha italiana e quando chegou a Portugal, em 1997, com 19 anos, estudou cozinha a sério. Abriu o primeiro restaurante aos 26 anos, em Cascais, e cinco anos depois muda-se para Lisboa, e abre o 100 Maneiras, onde quis "democratizar a cozinha de autor". Um ano mais tarde, inaugura o Bistro 100 Maneiras. Em ambos, brilha a sua cozinha inventiva e sem manias, mas cheia de delírios sofisticados e piscadelas de olho, Portugal e Bósnia juntos. Também inventa vinhos e outros espirituosos, até um blend de café nacional, a sua cabeça não descansa. Depois do sucesso de Pesadelo na Cozinha, que fez dele uma figura pública, agora rebenta com as audiências na SIC em Hell’s Kitchen. Se é admirado e temido nos restaurantes por onde passa, na rua é vê-lo a fazer selfies e a abraçar toda a gente.
Porque é que escolheste Portugal? Primeiro vir e depois ficar tantos anos, o que te encantou?
Passei por muitos países antes de chegar. A minha irmã, Natasa, vivia em Portugal e foi sobretudo por isso que acabei por vir. Entrei no país pelo Norte, pelo Gerês, e logo aí encontrei um casal de velhinhos que sem me conhecerem, nem sequer falávamos a mesma língua, perceberam logo que eu tinha fome e convidaram-me para comer um prato de sopa em casa deles. Portugal foi amor à primeira vista, embora na altura não me passasse pela cabeça ficar. Ainda saí - estive na China, França, Angola… - mas voltei sempre. As pessoas, as paisagens, o peixe, a matéria-prima… Sem querer, Portugal tornou-se casa.

É conhecida a tarefa e amor extraordinários da tua mãe ao inventar mil receitas de batata para que os filhos não sentissem a dureza da vida num país em guerra. Esse exemplo inspira-te até hoje?
Inspira-me hoje e vai inspirar-me sempre. É claro que com grandes produtos podemos criar grandes pratos, mas fazer muito com pouco é que é o verdadeiro desafio. Sou um grande fã da cozinha "pobre", do engenho e da criatividade que permitem pegar em ingredientes simples e transformá-los em algo único e irrepetível. Como acontece no Alentejo onde pão seco, alho, coentros e um pouco de azeite dão um prato que é identidade, a açorda. Adoro preparar um carabineiro, cozinhar com foie gras, mas também me dá muita pica usar aquilo que outros (muito erradamente!) deitam para o lixo: as entranhas, as cabeças, os produtos mais humildes. São os mais difíceis de fazer brilhar e, por isso, quando o consegues, a satisfação é imensa e é a melhor homenagem que podemos prestar ao produto, à terra e a quem o produz.

Escolheste cozinhar por causa da tua mãe, e por esse simbolismo de força de vida, ou já tinhas essa paixão dentro de ti em pequenino?

Nunca sonhei ser cozinheiro. Comecei a trabalhar numa padaria aos 14 anos, para ajudar a sustentar a minha família durante a guerra. Estudava de dia e trabalhava de noite. E na altura, claro, detestava. Adormeci muitas vezes no autocarro para a escola. Hoje sei que essa experiência foi fundamental. O Bobe, meu patrão, foi decisivo para a pessoa que sou hoje, enquanto cozinheiro e enquanto homem. Ensinou-me o valor do trabalho, independentemente da profissão. Foi essa experiência na padaria que fez com que continuasse a procurar trabalho em cozinhas a partir daí. Só quando já tinha 18 ou 19 anos é que comecei a pensar na cozinha de uma forma mais séria, com perspetivas de carreira. Percebi que tinha jeito e que poderia ser realmente bom. Comecei a ler o mais que podia, comer o mais que podia, estudar, viajar, estagiar…
O que te dá mais gozo fazer na cozinha até hoje? E porquê?
Ver o momento em que as pessoas põem a primeira colher na boca. Proporcionar prazer à mesa continua a ser a melhor parte. É uma satisfação enorme. Acredito que cozinha feita sem amor não vale mesmo a pena. Faço o que faço por isto: pela oportunidade de me relacionar com as pessoas através da comida. É uma ligação que não precisa de palavras, não precisamos sequer de falar a mesma língua. Com todas as diferenças que a gastronomia tem em todo o mundo, o prazer de comer é uma linguagem universal, talvez a mais universal de todas.
Já tinhas feito o Papa-Quilómetros, protagonizado o programa Pesadelo na Cozinha e agora o sucesso do Hell’s Kitchen. A televisão era um amor antigo?

Eu não tenho dois amores - tenho vinte! Sou naturalmente irrequieto e se sou – e serei sempre – cozinheiro em primeiro lugar, também acredito que ninguém tem de viver confinado a um rótulo ou a uma "caixinha". Na verdade, ainda antes do Papa-Quilómetros, já tinha feito o primeiro Masterchef Portugal, na RTP. Mais do que gostar de fazer televisão, gosto de fazer os projetos certos com as pessoas certas – e isto aplica-se a todas as áreas da minha vida. Dos livros aos programas de televisão, da loja online [www.ljubomirstanisic.pt] aos restaurantes, dos vinhos às aguardentes. Juntar o útil ao agradável é o grande motor da grande realização profissional (que é, antes de mais, uma realização pessoal).
Fala-me do Hell’s Kitchen, que agora lidera audiências, como foste lá parar e o que te desafiou?
Desde o início do meu contrato com a SIC a ideia foi sempre fazer o Hell’s Kitchen. O facto de ser um programa mais focado na cozinha, e num restaurante, foi uma lufada de ar fresco. Estou literalmente como peixe na água. E, além disso, a SIC é um grande parceiro. Eu digo "mata" e eles, "esfolam"! Estamos todos focados em dar o melhor todos os dias – sem nunca nos esquecermos de rir.
O que te dá mais pica nestes programas televisivos?

Além do que disse antes, é a adrenalina. Fazer bem naquele segundo. Gerir equipas, controlar o processo desde a raiz. Como na cozinha :).
Houve alguma coisa que não estava no alinhamento original, e que mudaste ou adaptaste?
Todo o alinhamento é muito aberto, colaborativo. Todos os desafios, as recompensas, os castigos… tudo isso é trabalhado também por mim e pela minha equipa. Nem faria sentido que fosse de outra forma. Tenho de me identificar com o que estou a fazer.
És uma figura muito amada e muito temida, por seres exigente e teres uma personalidade forte, direta e sem rodeios. Achas que falta às vezes, às pessoas em geral, e aos portugueses dos "brandos costumes" em particular, uma certa frontalidade?


Acho, sobretudo, que existem contextos e a maioria dos portugueses conhece o Ljubomir dentro de uma cozinha. A pressão numa cozinha, quando não tens tempo e precisas que seja tudo perfeito, exige que sejas frontal, direto. Não existe tempo para estar com rodeios. Não gosto de perder tempo nunca, mas obviamente que fora da cozinha me permito ter mais tempo para falar e lidar com as pessoas, perceber a melhor forma de dizer as coisas. Mas sim, no geral, acho que falta frontalidade aos portugueses. Pensar menos no que é "permitido" socialmente, no que os outros podem pensar, e mais no imediato, em fazer as coisas bem feitas, sem pruridos parvos e sem mágoas. Curtir mais a vida.
Tens uma forte ideia de grupo, és aliás conhecido por ser um líder nato e ter equipas muito coesas: o todo é sempre melhor do que as suas partes?
Claro que sim. Nenhum homem é uma ilha. E é sempre muito mais divertido (e melhor!) fazer isto acompanhado. O truque é acompanhares-te das pessoas certas. Todos a lutar por um objetivo comum, uma motivação que agrega e leva toda a gente para a frente. Quando pegas no melhor de cada elemento e focas essa força toda num objetivo, consegues resultados que nunca seriam possíveis de outra forma.
Esta tua ideia de comunidade também te leva a fazer parcerias com outros criadores, sejam chefs, enólogos, etc. Porque tens essa vontade de juntar o teu talento ao dos outros? E que projetos tens em mãos, nesse sentido, para 2021?

Criar é das coisas que me dão mais pica. E ao contrário do que se costuma dizer, eu gosto mesmo é de me meter em negócios com amigos. Acho que essa relação, essa história, acaba por passar para o produto final e criar algo muito especial. É o caso do Dirk Niepoort, com quem já criei sete vinhos – o mais recente, o Sem Maneiras, foi lançado agora em abril. Ou a Nina, mulher do Dirk, com quem lancei agora um chá, o Flower Power. Tenho muitas ideias, o que me falta é tempo. Mais uma vez, este trabalho de criação só é possível porque existe uma equipa a ajudar a gerir estes projetos todos, incluindo a minha mulher, a Mónica Franco, que é responsável por todos os conceitos, por traduzir em palavras aquilo que crio, a Laura, nosso membro direito e esquerdo, ou a Natasa, que faz a gestão comercial da loja e o controle de produto dos restaurantes. Todos os meus projetos são um grande negócio de família e a minha família é muito mais que uma ligação de sangue :).
Durante a pandemia fizeste uma greve de fome em frente da Assembleia da Républica para lutar pelos direitos da tua profissão, que estavam a ser esquecidos. O que te passava pela cabeça naquelas noites longas e frias?
Sinceramente, é um assunto do qual já não gosto muito de falar... Não me arrependo minimamente do que fiz, mas acho que houve alguma ingenuidade. Acreditámos que podíamos mudar as coisas, que podíamos ajudar realmente as pessoas, mas pegaram em tudo o que estávamos a fazer e viraram-no do avesso. Fomos acusados de tudo. Já li coisas incríveis como dizerem que a greve de fome terminou porque me deram o programa na SIC (tinha assinado o contrato em agosto e a greve terminou em dezembro) ou que foi a forma de "comprar" a estrela Michelin que ganhámos com o 100 Maneiras em dezembro (quando a gala estava prevista para novembro e, à partida, as estrelas até já estavam decididas ainda antes de começarmos as manifestações)… Não tenho perfil para política, para estes jogos de bastidores e manipulação da opinião pública. A política é uma p**a. E eu de jogos gosto mesmo é do futebol com os meus filhos...
Tens uma faceta humanista muito marcada e bonita, que alguns portugueses não conhecem, sabemos de algumas estórias tuas onde ajudas os mais frágeis, tens alguma recente? O que te move nesses momentos?
Não gosto de ajudar e contar. Associo-me a algumas causas de forma mais visível porque acho que esse é o lado mais bonito e útil do mediatismo: ter a possibilidade de espalhar a palavra e tentar influenciar outros a ajudarem também. Mas a maioria do que faço, faço-o a título privado, porque quero, porque sinto que é o meu dever enquanto ser humano. Estamos todos aqui juntos neste mundo e devemos estar uns para os outros. Não quero nunca que isso se torne uma cena de marketing.

Estás a preparar um documentário sobre a tua vida, e para o mesmo voltaste a Sarajevo e levaste a tua equipa, certo? O que sentiste no teu regresso?
O documentário já estreou, em formato minissérie, na Opto, na plataforma de streaming da SIC. Neste momento, a Mónica, que é a realizadora e mentora do projeto – aliás, este documentário é dela, eu sou só o gajo que aparece frente à câmara – está nos retoques finais, antes de poder seguir para cinema. Foram 10 anos de filmagens, é uma verdadeira viagem no tempo. A viagem com a minha equipa foi posterior a isso. Da primeira vez, a viagem que aparece no documentário, foi mais intimista. E foi dura. Foi obrigar-me a confrontar uma parte da minha vida muito importante. Mas foi fundamental: foi nessa viagem que pude fazer as pazes com o meu passado, perdoar e seguir verdadeiramente em frente. Senti um alívio enorme depois.
O que é que a tua infância/adolescência na Bósnia te ensinou de grandes lemas de vida e que possas partilhar connosco? E o que permanece em ti de profundamente bósnio, no teu caractér ou na forma como vês a vida?
A minha adolescência ensinou-me a ser um guerreiro. A não ter medo de nada. Ou a seguir em frente mesmo nas raras ocasiões em que sinto medo. Aprendi a levantar-me depois de cair, a não desistir, a sobreviver custe o que custar. E a valorizar cada momento aqui. Se calhar é por isso que também não gosto de perder tempo…. Hoje sou mais que português, mas ainda existe muito da Bósnia em mim: somos mais ruidosos, mais brutos… Mas também encontro muito em comum entre portugueses e bósnios, como a forma como valorizamos a família e gostamos de estar juntos à mesa.

Mais projetos que tenhas na manga e nos possas contar.
Muitos. Estou a gravar uma nova temporada do Hell’s Kitchen na SIC, que tem corrido muito bem. Nos restaurantes, estamos finalmente a reabrir, o que me deixa muito contente – por mim, pela equipa, por todos os colegas que vão poder voltar ao trabalho. Tenho mais vinhos na calha, novos produtos para a loja (estamos agora a desenhar uma linha de t-shirts brutais)… Não faltam projetos, haja tempo!
Vivemos numa era de causas: a Ecologia, o #metoo, o #blacklivesmatter – se te dessem uma varinha de condão para mudar o mundo, quais seriam as tuas causas maiores?
Acabar com a fome e o desperdício alimentar. Sendo alguém que já passou fome, é algo que me choca profundamente. É obsceno que todos os anos desperdicemos mais de 1000 milhões de toneladas de comida quando há tanta gente sem comer. Precisamos de repensar urgentemente a nossa relação com a comida, a forma como é produzida, como é distribuída, como é consumida. E não precisamos de uma varinha de condão: precisamos de consciencialização, de ação. Precisamos que os governos apoiem as medidas certas, que as empresas se coloquem do lado certo, que as pessoas tenham todas as ferramentas para que possam tomar as melhores decisões. Só assim conseguimos resolver este problema.
A pandemia obrigou-nos, a todos, a ir mais fundo e a repensar as nossas vidas e prioridades, por dentro e por fora. Tomaste alguma decisão importante durante a travessia (que ainda estamos a fazer), neste deserto? Ou reparaste em alguma coisa na tua vida que queres que se cumpra absolutamente?
Acho que, acima de tudo, isto veio mostrar-nos que não controlamos o dia de amanhã. Por mais planos que façamos, estamos sempre sujeitos a algo muito maior que nós, que é a vida. E a única coisa que podemos, de facto, controlar, é a forma como reagimos às situações. Sei que quero aproveitar cada minuto que passo aqui, mas já o sabia há muito tempo. Eu quero é viver… :)

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