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Moda

“Consegues ver o meu rabo no espelho?”

Estivemos dentro da folia imaginada pela Calzedonia em Paris, ‘A Legs Celebration’ ou uma festa num palácio com contornos de David Lynch. Por momentos pensámos ver Laura Palmer perdida num corredor do Moulin Rouge agarrada ao iPhone. Crónica de uma noite embalada a luzes vermelhas.

30 de setembro de 2022 às 12:44 Tiago Manaia

O motorista do nosso carro pergunta se queremos parar um pouco antes da passadeira vermelha. "Se vos deixar mesmo em frente, vão tirar-vos fotografias, disparam logo mal saírem." O tom é quase assustador, por isso ouvimos em silêncio. Vamos só falar com os que se vestiram a rigor, explicamos. Os carros pretos e luxuosos multiplicam-se à nossa volta, nuvens pesadas cobrem o sol que tenta aparecer por cima do telhado da Opera Garnier, metros depois estamos na praça que há 200 anos acolhia a bolsa da cidade, avistamos o Palais Brongniart e uma passadeira febril à qual viramos costas num primeiro tempo. Falamos com três jovens, observam a multidão fascinadas, quase não fecham os olhos. A mais entusiasmada usa um véu preto a cobrir-lhe por completo os cabelos, tem um cinto em strass prateado. Nasceu há 21 anos na Bósnia, "ainda não tenho acesso a este mundo, e só o vejo de fora, mas estou aqui para ver as silhuetas e sentir as vibes", o seu francês mistura expressões da globalização, "eu também sou fashion designer", e explica como procura estar em todo o lado – hotéis de luxo ou portas de desfiles e festas como esta, são locais onde procura inspiração, "simplesmente". Durante as fashion weeks e as semanas de Moda de Alta-Costura, os sonhos estão nos cantos da rua, à porta de prédios ou edifícios com dimensões irreais.

Foto: D.R

Um fotógrafo japonês imortaliza a modelo Estelle Lefébure na passadeira, a objetiva da sua máquina é silenciosa e gigante, dispara automática, tira dezenas de imagens por segundo. A passagem de Estelle lembra-nos Too Funky, vídeoclip musical que marcou a época das top models, em 1992, George Michael cantava (e realizava) uma passagem de modelos com silhuetas de Thierry Mugler (1945-2022).

Foto:

As mulheres inacessíveis de linha longilínea daqueles anos continuam a representar a maioria nos desfiles, o body positivism e os discursos ativistas online têm tentado mudar o paradigma. A diversidade é agora a prioridade das grandes marcas. Esta Legs Celebration da Calzedonia recebe todo o tipo de corpos. As top models da segunda década do século XXI são as influencers com os seus telefones capazes de as ligar a milhões num mundo paralelo.

Assim, no topo das escadas do Palais, abordamos a francesa Léna Mahfouf, 24 anos e quase 4 milhões de seguidores no Instagram, no seu canal Youtube é conhecida como Lena Situations, "Tudo faz sentido quando me encontro com os meus seguidores em 3D na rua, são pessoas que no dia a dia param para ouvir o que tenho a dizer. Isto de poder influenciar alguém acaba por ser algo que não podemos gerir, vai e vem. No entanto, a criação de conteúdos é algo que podemos controlar, é preciso fazer sempre o melhor e eu tento sempre partilhar mensagens positivas." No início de agosto Léna alertou-nos para um novo tipo de ódio que deixou as redes virtuais e começou a transformar-se em insultos na vida real. Jovens pediam-lhe para ser fotografados com ela na rua, tentando envolvê-la num tipo de humor ou gozo, aos poucos a violência escalou para ameaças telefónicas à sua mãe ou a sua avó, que vive na Argélia, "é preciso ter uma base solida", remata, "Sim o digital pode ser genial, só que a realidade é SEMPRE melhor".

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A portuguesa Vanessa Martins, que voou de Lisboa para estar na festa, conta-nos algo diferente, "esse hate pode existir de forma virtual, só que no meu dia a dia nunca fui abordada de forma negativa por ninguém. Às vezes com o teclado e o telemóvel as pessoas ganham uma coragem meio descabida." As redes sociais estão a mexer com a opinião pública, introduzem novos corpos e discursos minoritários vão ao encontro de legiões de seguidores, mas o bullying ganha cada vez mais força no algoritmo – na verdade é ele que controla o que nos é sugerido virtualmente. Se um utilizador tiver o hábito de ver situações de desgraça alheia, é provável que o algoritmo sugira mais conteúdos parecidos.

Estamos demasiado sérios? Sara Sampaio acha que sim. Admiramos-lhe o percurso profissional, mas ficámos absolutamente fãs quando nas últimas eleições presidenciais, em Portugal, expôs a sua opinião no Twitter contra o fascismo e ódio que André Ventura, líder do Chega, propagava contra as minorias étnicas. A manequim portuguesa diz-nos que não quer falar de política, não estamos no melhor sítio. Só que enquanto celebramos uma forma de liberdade e inclusão em Paris, no mesmo dia, uma primeira-ministra em Itália assumidamente de extrema-direita acaba de ser eleita e diz em discursos: "sim à família natural, não aos lobby LGBT." Se nos visse agora que diria? Seguimos o conselho de Sara.

A nossa câmara de filmar funciona como afrodisíaco e várias modelos param à nossa frente para expor pernas a perder de vista em meias transparentes em renda. A angolana Yolanda Tati diz-nos uma frase da cantora Nina Simone, "a liberdade é não ter medo", e uma drag queen beija-nos antes de ficarmos cara a cara com a musa de Pedro Almodóvar, a atriz Rossy de Palma. Os filmes que protagonizou nos anos 80, numa Espanha pós ditadura, tocavam em feridas sociais com humor e muita festa. A noite (e a Arte) espantou todo o mal que fora imposto às gerações anteriores à sua. Rossy é teatral, levanta as mãos, diz em vários idiomas, "amooo Lisboa, j’adore" e insiste na ligeireza para ultrapassar o cinzentismo, "temos de festejar, celebrar a vida sempre que podemos. A festa sempre!"

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Há flutes de champagne vazias em todos os cantos do evento, nós temos a boca seca de falar. Entramos num longo corredor vermelho, com paredes feitas de fitas douradas esvoaçantes, há estruturas metálicas com bailarinos pendurados em barras de pole dance, o espaço desta noite foi imaginado por Etienne Russo, estrela absoluta no que toca a imaginar desfiles e produções de moda, tanto trabalha para a Chanel como para a Hermès, a noite é sua. Num segundo andar há performers sentadas em cadeiras e esculturas de pernas gigantes. Tanto podíamos estar num cabaret, como num episódio de Twin Peaks. Fechamos e abrimos os olhos, é tudo real. A Moda voltou com toda a sua voragem no período pós-pandemia.

Foto: Calzedonia

Saímos da festa, caminhamos até ao hotel. Nas ruas parisienses a cultura espalha-se em cartazes gigantes, há um que multiplica a cara do realizador da Nouvelle Vague Jean-Luc Godard (1930-2022), é a capa da revista Les Inrockuptibles diz em grande, Dieu est mort. Pensamos na cena do filme Le Mépris (1963) em que Brigitte Bardot, nua numa cama, pergunta ao amante se gosta dos seus pés, e das suas pernas, "Também gostas dos meus joelhos? E o meu rabo consegues vê-lo no espelho?".

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Brigitte Bardot em 'Le Mépris' (1974)

Esta cena de Cinema tem sido multiplicada em inúmeras homenagens ao realizador recentemente falecido, mas estranhamente o Instagram não lhe faz justiça, há demasiado corpo nu. O algoritmo, esse ditador não devia poder censurar tanto a Arte. Dizemos as frases de Godard em francês, como um amuleto de sorte para o futuro. "Tu vois mon derrière dans la glace?". E atravessamos Paris a falar sozinhos, em ruas que escondem as tendências do amanhã.

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