Bullying. Um bully e uma vítima contam as suas experiências
Assinala-se esta quinta, 20, o Dia Mundial de Combate ao Bullying, um fenómeno que tem tanto de real como de prejudicial às suas vítimas. A Máxima conversou com Marta Curto e Inês Andrade, a primeira autora do livro 'O Bullying Termina Aqui! O Teu Diário de Superação', a segunda presidente da Associação No Bully Portugal. E ambas com um passado ligado ao bullying: uma enquanto alvo, a outra enquanto vítima e também bully.

A adolescência é um lugar estranho podendo atingir patamares de inadequação incalculáveis. E se esta etapa da vida já não se avizinha fácil, pode tornar-se muito pior quando se é alvo de bullying, prática que, de acordo com uma definição da Escola Saudavelmente, corresponde a "um comportamento intencionalmente agressivo, violento e humilhante, e que envolve um desequilíbrio de poder". No dia 20 de outubro, data em que se assinala o Combate ao Bullying, alerta-se internacionalmente para um problema real com que muitos jovens ainda vivem, apesar do tema ser hoje muito discutido dentro e fora das escolas.
Segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), uma em cada três crianças do mundo, entre os 13 e os 15 anos, é vítima de bullying na escola regularmente. Dada a importância deste tema, a editora Oficina do Livro juntou-se à Associação No Bully Portugal e a Marta Curto, autora de vários livros, formadora de escrita criativa, fotógrafa e também ela vítima de bullying, para escreverem O Bullying Termina Aqui! O Teu Diário de Superação. Este diário destina-se a todos aqueles que estejam a lidar com situações de bullying. As suas páginas prometem auxilia-los a conhecerem-se um pouco melhor e a lidarem com as desafiantes situações pelas quais estão a passar. Nele, os jovens podem ler e escrever livremente e ao seu ritmo. Poderão também encontrar reflexões e atividades que servem para compreenderem algumas coisas acerca de si mesmos e dos outros, de uma forma segura e tranquila.

Fundada em 2016, a No Bully Portugal é uma Associação sem fins lucrativos cujo intuito é prevenir, parar e resolver o (cyber)bullying, em Portugal, "através da empatia e bondade". Esta Associação forma pessoas adultas, dinamiza sessões de sensibilização para crianças e jovens e apoia pessoas que estejam a passar por bullying. A No Bully Portugal trabalha com escolas, famílias, associações de pais/mães, empresas, municípios "e outras entidades que acreditem numa sociedade sem bullying", como anuncia.

A Máxima conversou com Marta Curto, autora de O Bullying Termina Aqui! O Teu Diário de Superação, mas também com a presidente da Associação No Bully Portugal, Inês Andrade. Ambas partilham um passado ligado ao bullying: uma enquanto alvo, a outra enquanto vítima e agressor — ou bully.
A Marta sofreu de bullying, como se conta em O Bullying Termina Aqui! O Teu Diário de Superação. Como é que, numa época em que ainda não se falava tanto acerca deste tema, lidou com a situação?
Marta: Em silêncio. Na altura achava-se que era "normal", fazia parte da dinâmica juvenil, da forma como os miúdos lidavam uns com os outros, era para não ligar, que passava. Mas não passou… Eu passei por bullying durante cerca de sete anos. Não falei com os meus pais, nem com professores. Mas aprendi muito sozinha, aprendi a observar e a conhecer os outros, aprendi que não éramos todos iguais, e sempre soube que aquilo ia passar, que era uma fase da minha vida. E foi. E passou.


Inês, e qual é a sua relação com o bullying?
Inês: O bullying é um tema que me é muito próximo pois, ao longo da minha juventude, passei por vários papéis associados a este fenómeno. Na primária, fiz várias vezes bullying a um colega da minha turma, ao gozar com ele repetitivamente. No 9º ano, fui alvo de bullying por parte de colegas, através de mensagens, chamadas anónimas e provocações durante as aulas. No secundário, observei colegas humilharem outros à frente de toda a turma, rebaixarem-nos e fazerem-nos sentir-se incapazes de se defender. Ter passado por todas estas experiências deu-me a possibilidade de ver o bullying das várias perspetivas e conseguir ter empatia por todas as pessoas envolvidas no comportamento. Ao mesmo tempo, deu-me uma motivação especial para dedicar a minha vida a promover soluções para parar o bullying.
Como é que surgiu a ideia de criar a Associação No Bully Portugal?
Inês: Quis fundar esta Associação porque, por experiência própria, sabia que a resposta ao bullying e o apoio a alvos era ineficaz. Existiam poucos recursos e procedimentos para ajudar as pessoas envolvidas em bullying, o que fazia com que as situações se prolongassem no tempo e as suas consequências fossem mais graves. Em 2015, trabalhava com a minha mãe na sua empresa e quisemos lançar um projeto de impacto social que fizesse a diferença na comunidade. Descobrimos a organização americana No Bully, que, há já vários anos, tinha criado um programa anti-bullying que funcionava através da promoção da empatia e de outras competências sócioemocionais. Os resultados deste programa eram extraordinários, com 90% de sucesso na resolução dos casos de bullying, pelo que decidimos trazê-lo para Portugal!


E a Marta, quando é que resolveu integrar a associação No Bully Portugal e escrever o livro?
Marta: Eu queria criar algo que fosse realmente terapêutico, que funcionasse, que fizesse a diferença. Mas não tinha as ferramentas tanto da psicologia, como da pedagogia. Foi a No Bully que traçou o processo terapêutico que seguimos no livro e eu criei os exercícios de escrita para que os jovens pudessem fazer este processo terapêutico de uma forma mais lúdica, mais leve e menos dura. Este livro acompanha o jovem durante 19 semanas, com exercícios quase todos os dias, para o ajudar a perceber que não há culpa, que o bully também é gente, que ele próprio tem uma rede de apoio e que a escola não é o mundo. Dá-lhe mais garra, autoconfiança e autoestima. E mostra-lhe que pode tomar decisões, que não tem de ser passivo neste processo.
Quais diria que são os principais sentimentos e emoções vivenciados por alguém que está a ser vítima de bullying?

Marta: Impotência, medo, vergonha, humilhação, exclusão, solidão.
Qual a primeira atitude a tomar? E que atitudes não tomar?
Marta: Falar sobre o assunto. O silêncio torna um simples incidente num enorme Adamastor com muito mais poder do que tem na realidade. Partilhar o que se passa ajuda não só a sentir menos solidão, mas também a relativizar a situação e, por fim, se necessário, a ter uma rede de proteção. Nenhum jovem precisa de ter coragem para ir para a escola. Acho que o grande problema do bullying é que ninguém assume responsabilidades. Culpa-se a escola porque não controla. Os pais do bully porque não o educam. Os professores porque não estão atentos. Os colegas porque não denunciam. Os pais do alvo de bullying porque não o ensinam a defender-se. O bullying é um puzzle que se alimenta de várias frentes. É por isso que eu gosto tanto do trabalho da No Bully, porque fazem uma formação integral, com pais, professores e alunos.
Reagir às agressões: sim ou não?

Marta: Sim. Sempre ouvi que se não respondesse ia passar, iam-se fartar, mudar de alvo. Porque eu nunca respondi, não passou, não se fartaram, não mudaram de alvo. Reagir tira o poder do bullying e dá poder ao alvo. Reagir pode passar por responder, defender-se fisicamente ou denunciar. O silêncio é que não pode ser.

Relativamente aos pais, qual deverá ser o seu papel? Porque, acredito, muitos pais devem ter vontade de ir à escola e resolverem eles mesmos o assunto — como alguém que defende a sua cria acima de tudo. É assim?
Marta: Penso que os pais devem, em primeiro lugar, manter o diálogo aberto com os seus filhos. Isso não acontece aos 16 anos, isso tem de ser trabalhado muito antes. Sei – como mãe que também sou – que às vezes é muito complicado conciliar tudo, que tentamos ser super tudo (mães, trabalhadoras, mulheres, donas de casa, cozinheiras, filhas) e depois resta muito pouco de nós para dar com amor. Somos uma lista de tarefas e parar para ouvir, para brincar, para falar com os nossos filhos pode não ser fácil. Mas tem de ser feito. Porque na adolescência nós queremos que eles possam contar-nos uma coisa destas. E é preciso uma relação muito próxima e aberta para que eles não sintam vergonha de contar que são humilhados diariamente e que ninguém gosta deles. Como é normal, os filhos querem que os pais sintam orgulho neles. Por isso, quando contam algo assim, precisam de ter a certeza que o orgulho se manterá e que nada toca a forma como os pais os vêem. O papel dos pais passa em primeiro lugar, na minha opinião, por apoiar os filhos e ouvi-los. Ajudá-los a tomar decisões. Dar-lhes um papel ativo nesta situação. Agarrar neles e pô-los debaixo da asa, ameaçando meio mundo, não é solução porque, mais uma vez, lhes tira poder. Mas sei que é o que dá vontade.

Qual é o papel da Associação na vida das vítimas de bullying e dos seus familiares?
Inês: O nosso papel principal é o de transmitir formas de lidar com esta situação seja para as crianças e jovens a passar por isso, seja para as suas famílias e quem trabalha nas escolas. Promovemos formações presenciais e online para que toda a gente compreenda como funciona este fenómeno, como o prevenir e o que fazer quando ele acontece. Além disso, damos apoio direto aos alvos e suas famílias que nos contactam. O primeiro passo é ouvir estas pessoas e valorizar as suas experiências e sentimentos, pois muitas vezes sentem-se desacreditadas e postas de parte. De seguida, analisamos a situação e as opções de resposta ao problema que existem, consoante a gravidade das agressões e o estado emocional e físico do alvo. Sugerimos sempre a colaboração com a escola na resolução da situação, e propomos recorrer às autoridades quando necessário. Adicionalmente, aconselhamos a procura de apoio psicológico, caso faça sentido para a família. Finalmente, temos agora este diário que poderá ajudar adolescentes nesta situação a verem o bullying e a sua vida de uma outra perspetiva.

Qual é a sua opinião relativamente aos bullies? Como é que se deve lidar com estes?

Inês: Na nossa metodologia, as pessoas que fazem bullying são tratadas com respeito e é-lhes dada a oportunidade de mudar a sua atitude para algo construtivo e respeitador do alvo. Isto porque, com as tradicionais repreensões e castigos, a tendência é manterem ou até piorarem os seus comportamentos. Seja uma conversa feita em grupo ou individualmente, pela família ou por profissionais da escola, aconselhamos, com calma e sem acusações, a apresentar a perspetiva do alvo do bullying e explicar como isto tem afetado a sua vida. Quando conseguirem perceber o que é estar nessa situação e sentir alguma empatia pela outra pessoa, aí podemos convidar a que tomem novas atitudes positivas para com o alvo. Se esta conversa for feita com o grupo de pares, irão motivar-se mutuamente e ganhar o protagonismo que desejam através de ações positivas, como convidar o alvo para um jogo ou ajudar com uma tarefa da escola. Estas ações são propostas pelas próprias pessoas e nunca devem ser impostas, pois perderiam o seu valor e sinceridade.
Como é que recupera alguém que passou muito tempo a ser alvo de bullying?
Marta: Com humildade, gentileza, calma e paciência. Percebendo que todos fizeram o melhor que sabiam na altura. Que também o bully estava a passar por um desafio pessoal. Que não somos vítimas. Que não somos excluídos. Que pertencemos a uma comunidade, a uma família. Que não foi o bullying que nos definiu, que disse quem éramos e até onde iríamos na vida. Não é fácil e há momentos muito duros de autocrítica, falta de autoconfiança ou amor próprio. Mas a verdade é que todos temos dores na vida. Temos de decidir o que fazer com elas. Moê-las cá dentro ou abraçá-las e agradecer o que nos ensinaram? A segunda alternativa é mais dura, e, às vezes muito pouco realista, mas é a que causa menos danos. Eu não sou, nem quero ser vista como a guru que ultrapassou a montanha. A vida é um processo, e todos nós vamos recuperando das nossas dores. Temos muitas montanhas, umas tiram-nos o ar, outras dão-nos paisagens incríveis. E todos vamos tentando fazer o melhor que sabemos, nas subidas e nas descidas.


Ser-se foco de bullying deixa marcas para a vida ou é tema passível de ser arrumado algures no inconsciente, sem voltar a perturbar?
Marta: Penso, sinceramente, que deixa marcas para a vida, sobretudo para quem sofreu de bullying durante muito tempo ou um bullying mais duro (cyberbullying, violência física, etc). O bullying acontece numa idade em que estamos a tentar perceber quem somos, onde pertencemos, como olham para nós e como queremos ser olhados. Se nessa idade, tão importante para a nossa formação social, os inputs que temos é de que não somos suficientes, não temos valor, somos maus/feios/burros/gordos, se não temos amigos, se ninguém quer estar connosco (e até têm medo disso), passar o resto da vida a lutar contra o medo de não se ser aceite, amado, querido é perfeitamente normal. Porque foi isso que aprendemos quando tínhamos idade para aprender. Claro que se, por exemplo, no meio desse episódio, percebermos que temos uma rede de apoio incrível, também vamos levar isso para a vida, que a família é uma muralha. Ou se chegarmos à conclusão que o bully está na verdade a passar por um mau bocado em casa, se calhar também aprendemos o dom da empatia, que todos somos humanos (mesmo quando não parecemos). O bullying, como tudo na vida, pode ensinar-nos imenso. Depende de como for encarado. Mas atenção, nunca em silêncio. Nunca como algo que merecemos. Nunca como algo natural.
Acredita que é possível pôr-se fim a esta "tendência" ou acha que esta "ode à maldade" está entranhada no ser humano?
Inês: Existe uma fábula dos nativos americanos Cherokee que diz que todas as pessoas têm dois lobos dentro de si em constante conflito — um lobo carinhoso, colaborativo, empático, e um lobo agressivo, egoísta e autocentrado. Quem ganha esta luta é o lobo que alimentamos ao longo da nossa vida, em especial quando estamos a crescer. Todas as pessoas já tiveram atitudes das quais não se orgulham e, ao mesmo tempo, já ajudaram muitas outras. Acredito que é possível alimentar mais o "lobo bom" dentro de cada criança ao dar-lhe carinho, atenção, empatia, compreensão e que, no futuro, esta criança vai ter menos necessidade de fazer bullying e vai até parar as outras. Esse é um trabalho a ser feito em todas as casas e escolas, por todas as pessoas.

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Joana Gentil Martins usou os anos de experiência em consultório, ao longo dos quais se foi deparando com cada vez mais carências e problemas diários relacionados com autoestima e confiança, para escrever o livro Torna-te o Amor da tua Vida, editado pela Planeta.
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