Moda / Tendências

Legs Celebration, a revolução feminista das pernas

A Calzedonia imaginou um manifesto de esperança em Milão numa festa com várias interpretações possíveis. A marca gigante de meias recusa render-se ao cinzentismo político e machista que tomou conta de Itália. Descodificação de uma noite elétrica.

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23 de setembro de 2023 Tiago Manaia

O MiCo – o Centro de Congressos de Milão, Itália, tem uma pala metálica com formas esculturais a fazer de telhado. É como se uma onda cobrisse todo o gigantesco edifício, um ziguezague de novas ideias. À sua volta erguem-se arranha-céus futuristas, cortam o horizonte, multiplicam-se com janelas espelhadas de diversos tamanhos. Quando subimos as escadas do edifício, onde habitualmente se realizam conferências empresariais, só conseguimos vislumbrar prédios. Sentimos que estamos numa cidade de olhos postos no futuro. É a primeira mensagem da noite. 

Os colóquios noturnos multiplicam-se nas semanas de moda. Espaços associados à razão ou a decisões diurnas são tomados por faunas hedonistas (e um tanto inconscientes) para celebrar a moda, a estética, a beleza, ou uma atitude – inconformista, quase sempre, ainda mais nos casos em que se tentam transformar locais de ponderação ou investigação em palcos de possível libertinagem. O Centro de Congressos é hoje tomado pela Legs Celebration.

Etienne Russo, o encenador desta fantasia, diz que “cada perna conta uma história de individualidade e confiança.”.
Etienne Russo, o encenador desta fantasia, diz que “cada perna conta uma história de individualidade e confiança.”. Foto: D.R.

O verão não deixou a cidade, as esplanadas estão cheias de fashionistas no primeiro dia da semana de moda de Milão. A fauna mostra-nos como as silhuetas podem também ser sofisticadas nas noites quentes. Depois de ter tido uma primeira edição na Bolsa de Paris há um ano, esta celebração à volta das pernas imaginada pela Calzedonia investe no país que deu origem à marca de Sandro Veronesi e usa como mote a "Calzedomania", entregando as rédeas da noite ao cérebro do produtor Etienne Russo. Tudo o que vamos ver na festa-performance da Calzedonia vem da sua cabeça. Lembra-se do desfile Chanel passado num supermercado? Ou de quando a mesma maison instalou um gigantesco foguetão no fundo do Grand Palais em Paris? A agência criativa de Russo, a Villa Eugénie, faz em média 70 desfiles por ano. O cérebro de Etienne tem pensado o mundo da moda juntamente com Karl Lagerfeld, Dries Van Noten ou Miuccia Prada. Logo, algumas das produções refletem vontades de consumo das populações das grandes cidades, são megalómanas, neuróticas e visualmente inesquecíveis. "Atualmente, com as redes sociais, tudo tem de ser visualmente forte e telegénico, não há tempo para retoques porque, mal as coisas aparecem, já estão todas online", dizia Etienne numa entrevista à CNN em 2014. 

Este paradigma acentuou-se com a pandemia e, antes disso, com a consagração dos influencers nas estratégias de comunicação das marcas de moda, vincando os 15 minutos de fama de que Andy Warhol falava em 1968, "no futuro toda a gente será famosa durante 15 minutos" – o futuro é agora.

Cada perna conta uma história de individualidade e confiança

No Centro de Congresso de Milão todos os convidados entram em cena numa red carpet violeta sem fim que antecipa a entrada na Legs Celebration. Os recantos dos edifícios são usados para selfies ou pequenas entrevistas de jornalistas de todo o mundo, há luzes brancas a iluminar iPhones que parecem extensões dos braços de cada convidado. A pressão das redes sociais tornou extremamente consciente o discurso falado das celebridades, assim muitas das musas da noite vão evitar falar connosco, ainda que todos os jornalistas presentes se precipitem à sua volta. Alguém grita "can you give us a soundbite?" e a supermodelo brasileira Alessandra Ambrosio hesita, quase fala. Pedimos-lhe em português: "palavras para Portugal" só que o nosso sotaque engana e "sorry" é a resposta que ouvimos. A palavra será usada por quase todas as celebridades internacionais repetidamente ao longo da noite.

Uma jovem influencer portuguesa julga a nossa pergunta sobre a urgência do empoderamento para as mulheres no século XXI, demasiado complexa, e recusa continuar a entrevista que nunca chega a começar. Sentimos que não a podemos julgar. A misoginia predominante no escrutínio da imprensa atual é capaz de deixar mazelas difíceis de esquecer, queríamos poder resgatar-lhe a confiança, fazer o contrário, dar-lhe voz. Acreditamos no mundo em que as mulheres podem duvidar sem ser julgadas, como diz a escritora Leïla Slimani, assumir um "não sei" é também um ato de coragem.

Lovisa e Sofi ANckarman evocam-nos a cultura do norte da europa e como as mulheres se apoiam umas às outras.
Lovisa e Sofi ANckarman evocam-nos a cultura do norte da europa e como as mulheres se apoiam umas às outras. Foto: D.R.

Viramos as costas e observamos duas manequins que por não serem as mais mediatizadas não atraem o mar de fotógrafos presentes. Tiram fotografias uma à outra, num momento de cumplicidade elas fazem as festas e atiram os foguetes – imaginam-se num photocall, riem-se sozinhas num dos cantos do MiCo, são belas na sua inocência espontânea. Estão a trabalhar na semana de moda, vivem num "apartamento de modelos" alugado pelas suas agências. Lovisa e Sofi ANckarman evocam-nos a cultura do norte da europa e como as mulheres se apoiam umas às outras, "sim somos amigas, as melhores amigas" e rematam "um dia vamos dominar o mundo". Em 1984, Madonna deu uma resposta parecida a um apresentador de televisão depois de cantar Holiday, ele perguntava-lhe como antevia o seu futuro. Olhamos para as duas amigas suecas e pensamos no documentário que estreou na Apple TV sobre as supermodelos Linda, Naomi, Cindy e Christy. Mudaram o curso da profissão, é um facto tido como certo, mas este novo relato denuncia também o controle machista do sistema vigente de uma época. Tudo mudou? Mudou muita coisa, não tudo. A aceitação de diferentes corpos também fez um longo caminho no mundo da moda. Nesta noite Calzedonia, há todo o tipo de pernas que se celebram, há pernas não binárias também.

Na pista de dança somos surpreendidos por “esculturas vivas” da artista russa Sasha Frolova.
Na pista de dança somos surpreendidos por “esculturas vivas” da artista russa Sasha Frolova. Foto: D.R.

Etienne Russo, o encenador desta fantasia, descreveu o conceito na sua página de Instagram, "de longas e magras, a curvilíneas e esculpidas, cada perna conta uma história de individualidade e confiança." Entramos na festa e descobrimos que a sua instalação é um desfile contínuo (que dura várias horas) com pernas suspensas numa caixa preta. São centenas de modelos a desfilar. E são pernas hipnóticas, que andam ao som das DJs mais cobiçadas no meio da música atual – Matisa, Chloé Caillet ou Carllita. Todas mulheres, passam músicas intrigantes. A certa altura a banda sonora faz dançar os convidados com uma frase robótica alimentada por batidas de house music, "people are still having sex", ouve-se a sair das colunas. Etienne Russo escreve ainda no mesmo post de Instagram que "todos os artistas do espetáculo de pernas Calzedonia foram escolhidos pela sua beleza única, pelos seus tamanhos diferentes e tons de pele." Na pista de dança somos surpreendidos por "esculturas vivas" da artista russa Sasha Frolova, que trabalha com formas feitas em latex agarradas a performers. São como estátuas que se movem muito lentamente. São excitantes e melancólicas. Há bolas de espelhos com acrobatas em cima, mulheres que usam cabelos compridos como uma forma de superpoder – ficam suspensas pelo cabelo e giram ao som da música.

Voltamos à passadeira violeta. Os prédios na linha do horizonte fazem sentido, esta sala de congressos foi escolhida por Etienne Russo para que a arquitetura realçasse os diferentes corpos, as diferentes pernas. Pensamos no conceito de urbanismo feminista, em que o espaço é pensado para que as mulheres possam circular na cidade em segurança. A atriz portuguesa Júlia Palha evoca as noites de verão porque em Milão o calor embala a noite e lembra precisamente a insegurança que sentem as mulheres quando caminham sozinhas em algumas cidades. O medo de atravessar uma rua escura faz parte dos seus quotidianos. 

Júlia Palha, uma das convidadas portuguesas do desfile, fala-nos de como percorrer uma cidade à noite continua a ser um perigo para muitas mulheres.
Júlia Palha, uma das convidadas portuguesas do desfile, fala-nos de como percorrer uma cidade à noite continua a ser um perigo para muitas mulheres. Foto: D.R.

Descodificamos a escolha desta sala de congressos para a revolução das pernas Calzedonia. No final de agosto, Andrea Giambruno, o companheiro da primeira-ministra italiana Giorgia Meloni, comentava de forma abjeta um incidente de violações feitas em grupo na região de Nápoles. Aconselhava as mulheres a "não se embebedarem" para não serem violadas (tinha sido violada uma criança de 13 anos e uma jovem de 19). A opinião pública deixou o governo italiano debaixo de fogo, teceu duras críticas à primeira-ministra, que condenou os eventos, mas não se distanciou das palavras do companheiro. Celebrar as pernas num local onde habitualmente são feitas conferências, num país invadido pela moral da extrema-direita, parece-nos, assim, uma mensagem de resistência. Assinamos o manifesto de liberdade imaginado nesta noite de verão inesquecível em Milão.

No fim da noite, voltamos de carro para perto do Duomo, no centro da cidade, o motorista que nos guia ouve Candle in The Wind de Elton John, o nome Norma Jeane é cantado, Marilyn Monroe era um nome artístico. Deixamos a festa a imaginar como teria sido a sua vida num mundo mais feminino.

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