Margarida Vila-Nova entrou num palco capaz de mudar a vida
Nunca tínhamos visto Margarida como no espetáculo "À Primeira Vista", uma peça de teatro que dá lugar a uma longa conversa com o público sobre o consentimento e os direitos femininos na sociedade atual. É um grito de força e afirmação de uma mulher que foi atriz a vida toda. Não é um acaso, a sua voz tem de ser ouvida. Leia a entrevista nas bancas.
Há várias mulheres juntas a entrar no foyer do teatro, são grupos de dez amigas ou mais. Há risos cúmplices. As palavras que dizem em voz alta provocam reações efusivas, juntas procuram a fila em que se vão sentar para assistir ao monólogo À Primeira Vista no Teatro Maria Matos, em Lisboa. Observamos a azáfama. É uma noite de estreia, a energia na sala é elétrica.
A peça à qual se entrega de corpo e alma a atriz Margarida Vila-Nova durante hora e meia, é agora reposta depois de ter estado em cena durante meses, sem lugares vazios, completamente esgotada noite após noite. A alegria que sentimos neste público crescente contrasta com a dureza daquilo que nos preparamos para assistir. O texto de Suzie Miller trata uma agressão sexual (ou várias) e aborda de forma direta o tema do consentimento e como as leis dos tribunais, em inúmeras ocasiões, descredibilizam o discurso feminino. Movimentos como o #MeToo têm agitado o sistema judicial no estrangeiro, não podemos dizer o mesmo sobre Portugal, país onde as denúncias de assédio sexual acabam por cair em descrédito no momento em que chegam aos tribunais ou à opinião pública, como se de uma encruzilhada se tratasse. Porquê?


Olhamos para a agitação desta noite teatral e sentimos no ar uma possibilidade de mudança. A ambiciosa advogada de classe média-baixa interpretada por Margarida funde-se perfeitamente na sociedade portuguesa, estamos numa zona de Lisboa onde a cidade esqueceu o seu lado mais pitoresco e se transforma em selva social, há prédios altos e uma estação de comboio perto do teatro. A personagem de Teresa diz em palco que a mãe limpa os escritórios onde ela agora trabalha, isto é dito no momento mais duro da peça. A personagem que se apoderou do corpo de Margarida quer apanhar o comboio para os arredores e fugir para a modesta casa onde cresceu, refugiar-se nos braços da mãe. A sala está em silêncio.


Ouvimos realmente os comboios que partem à frente do teatro? Por momentos a cidade real mistura-se com a ficção.
Olhamos, assim, para uma atriz em transe no mais alto momento da sua vida profissional. Sentimos a agressão que é simulada em palco. Uma violação. "Uma em cada três mulheres é agredida, são dados reais", diz Margarida ou Teresa, a personagem. As luzes apagam-se. No escuro, as pessoas levantam-se e aplaudem. Há muita gente a chorar.
Margarida ainda habitada por o que acaba de viver em uníssono com o público tem também lágrimas a cair pela cara. Perguntamos-lhe no dia seguinte, o que sente ao fazer esta peça? "A primeira coisa que me vem à cabeça é o sentimento de empoderamento que o espetáculo me trouxe. Foi o maior exercício de superação que alguma vez fiz ou que tive na minha vida. Ontem, quando acabei, o Tiago Guedes (o encenador) perguntou como me tinha sentido, disse-lhe que tinha sido feliz a fazê-lo, porque eu não estava em sofrimento. Durante os ensaios, muitas vezes, pensava que o espetáculo era maior do que eu e, só quando comecei a subir a montanha, percebi qual era a sua dimensão. E há todo um processo que leva muito tempo até o corpo, a cabeça, e as palavras encaixarem... Eu cheguei lá, estou no fim. Sinto esse empoderamento, por lá ter chegado."


Estamos na Cinemateca de Lisboa a almoçar, há posters de filmes antigos, que contrastam com os jovens yuppies vestidos de camisa no pátio do edifício que se transformou em restaurante. Na atitude não transpiram grande paixão pelo Cinema, mas dão uma nova vida a um espaço tão central nos nossos sonhos cinéfilos. Margarida continua a falar. Luminosa, foi ela quem escolheu o nosso encontro aqui. As suas palavras encadeiam-se, os olhos são expressivos, riem-se também. Ela sim, transporta Cinema consigo. "Eu tinha coisas para dizer, e as pessoas foram convocadas a debater um tema comigo, porque isto é uma peça de teatro que vive muito da contracena com o público, não é? É uma verdadeira partilha. E é empoderador chegar ao final e ter conseguido debater estes temas e ter-me superado a mim própria." Margarida olha então para o almoço que acaba de chegar à mesa, diz ter dificuldade em comer o pica-pau que acabou de pedir. Nos dias de espetáculo prepara-se com sessões de yoga e faz refeições ligeiras. Dois meses antes de começar as representações começou também a fazer corrida para ganhar resistência. O seu corpo é atlético e ágil, é petite, mas em cena parece gigante. "Esta superação traz muitas questões mesmo pessoais para a mesa. Eu, às vezes, dou por mim a pensar que tenho uma voz... Eu tenho uma palavra, eu tenho um limite e o ‘não é não’ pode aplicar-se a vários campos na minha vida, pessoais e profissionais. Eu não estou a falar só de assédio, estou a falar de escolhas e de uma procura de igualdade e de justiça no nosso dia a dia, das pequenas coisas do nosso quotidiano. E de encontrar a minha voz, junto das amigas, da família ou dos colegas de trabalho. Como é que eu me quero posicionar? Como é que quero que me vejam?"


Dizemos-lhe que em palco pressentimos nesta sua peça uma reflexão de uma vida de atriz, um ponto de viragem na sua carreira. "Essa palavra carreira sempre me custou um bocadinho, eu tenho um percurso profissional. Terei feito a carreira quando chegar ao fim, mas não acho que pelo facto de um projeto me correr bem, o resto me esteja dado como garantido, eu já tive fases up and down, e o mercado muda muito, as cadeiras rodam muito. É preciso ter a humildade e a sabedoria de saber que isto não é eterno. Esta profissão tem essa dureza. É um exercício de aprovação do outro, trabalhamos para o outro e, entretanto, houve uma grande viragem dentro de mim, na medida em que eu já não sofro a pensar tanto nisso tudo."

Margarida foi uma criança-atriz, os seus pais eram produtores na área, aos seis anos já estava em plateau de televisão. O pequeno ecrã nunca mais a deixou escapar, teve inúmeros sucessos em telenovelas. Foi Maria Laurinda em Tempo de Viver (2006), no Teatro fez Romeo e Julieta de Shakespeare (2005). João Botelho entregou-a às deixas de uma protagonista inspirada na história de Carolina Salgado, no filme Corrupção (2007). Margarida sentiu que tinha de mudar algo, "eu estava desacreditada, estava desiludida, e achava que o meu percurso de atriz tinha afunilado, eu não estava a fazer um percurso em Cinema ou Teatro como queria, e eu tinha tanto amor por esta profissão, não sentia que estivesse a respeitá-la". Acrescenta, com humor, "pensei mesmo em abrir uma churrasqueira no Príncipe Real, já que estava a virar frangos, ao menos poderia fazê-lo como deve ser. Só que cheguei à conclusão que ia ser confuso, gerir o homem da grelha e tudo mais".


Foi viver para Macau, abriu uma mercearia com produtos portugueses, não representou durante três anos. "Às vezes é preciso sermos reduzidos à nossa insignificância, no verdadeiro sentido da palavra, para voltar a impor limites, e nós estamos sempre a tempo de reverter o nosso percurso." Em Macau, viveu com o filho mais velho, e teve um segundo com o seu então companheiro, Ivo Ferreira. "Houve um dia em que entrei na mercearia e pensei, o que é que vou fazer a estes sabonetes todos e a estas latas de sardinhas?" Estava na altura de voltar. "Fui convidada a fazer o Mar Salgado, uma telenovela na SIC, e começou aí todo um novo caminho, foi preciso sair, para depois regressar com outra maturidade, acho que agora sou melhor mãe e melhor atriz, melhor amiga e melhor mulher. Porque as dificuldades nos fazem crescer, e em Macau não foi fácil." Margarida foi filmada por Ivo a preto-e-branco no filme Cartas da Guerra (2016), lia textos de António Lobo Antunes, a sua presença não se esquece nesse filme coral e masculino. Num impulso artístico, a atriz realizou uma curta-metragem a partir de uma carta de 14 páginas que o seu pai lhe deixou antes de morrer, Pê (2022). No manuscrito, o seu pai produtor de Cinema pedia-lhe para organizar as suas cerimónias fúnebres e falava-lhe da vida. Margarida, assombrada pelas imagens descritas, impeliu-se a filmar o que sentia. À nossa frente, na Cinemateca, está uma atriz que age por instinto, uma artista plena, nas alturas de maior exposição em televisão foi esse mesmo instinto que a levou a criar uma produtora para fazer teatro quando tinha apenas 20 anos, produzindo assim inúmeras peças que levou a vários cantos do país. Este seu regresso agora ao Teatro, como aconteceu? "Eu nunca me quis pôr em bicos dos pés ou ir para um palco brincar sozinha para fazer monólogos, mas este texto foi-me trazido por uma amiga psicóloga que estava a trabalhar com um grupo de mulheres em que abordavam o consentimento. Fomos a Londres ver uma versão do espetáculo." Margarida não se sentiu sozinha na sala do West End. "Eram ecos de muitas mulheres, não sei se fiz a escolha deste texto por mim, mas acho que é urgente tratar estas palavras, é urgente discutir o assunto. Em França está-se, neste momento, a discutir um grande processo de violação (de Gisèle Pelicot), e Gisèle diz uma coisa muito pertinente: ‘Chegou a hora de mudar o lado da vergonha’, ela não é da mulher, é do homem. Se sabemos que uma em cada três mulheres é vítima de uma agressão, quer física ou psicológica, eu sinto que tenho de pôr este texto no palco. E não acho que seja um ato heroico, não é sobre mim, isto é sobre elas, e eu sou uma delas." Acrescenta. "Isto é sobre o sistema em que todas nós vivemos, sobre uma memória. São as vozes de muitas mulheres que foram caladas e silenciadas."


Perguntamos a Margarida se a sua noção de consentimento sempre foi clara, no seu trabalho de atriz, na forma como uma câmara a podia filmar, por exemplo. Responde de imediato: "Eu sempre tive pouco jeito para impor limites na minha vida. Por isso, falo de emancipação quando falo nesta peça." É uma forma de dizer basta? Perguntamos. "Muitas vezes eu não quis incomodar, lembro-me da primeira vez que me pediram para fazer um nu, era uma cena que não estava escrita no guião, e foi a produtora que me veio perguntar, disse-me que o realizador gostava que eu fizesse um nu integral. Eu não soube dizer ‘não’, nem sabia como, nem sabia se era normal, pensei que se calhar era assim que se pedia às atrizes. Eu não deixava de ser uma menor na altura e não deixava de ser um pedido que não estava em guião, não estava escrito. Ponto. Não sei se a própria produtora se questionou sobre isso, já foi há mais de 20 anos, e em 20 anos as coisas mudaram muito. Isso hoje não era possível." A sua sinceridade é inabalável. O nosso almoço acaba abruptamente, um dos seus filhos está adoentado, vai a correr apanhá-lo à escola, tem de o deixar com uma amiga porque tem de trabalhar ainda. "Temos um grupo no WhatsApp, somos como uma muralha de amigas, somos todas mães, damos apoio umas às outras em momentos como este." Na Cinemateca perguntam se bebemos café. Margarida diz que não, "o coração fica a bater demais".

Passam duas semanas. Na televisão está Margarida vestida de cor-de-rosa. Sobe ao palco do Coliseu para receber o Globo de Ouro de Melhor Atriz em Ficção. Agradece a todas as mulheres que todos os dias lutam pelo direito à habitação. De prémio nas mãos diz, "lutam contra a precariedade, e por uma vida digna neste nosso Portugal". Queremos ver mais a Margarida, agora que entrou num palco capaz de nos mudar a vida.

Créditos
Realização e Styling: Joyce Doret.
Fotografia: Ricardo Santos.

Vídeo: Imagem e edição de André Szankowski.
Maquilhagem e cabelos: Alex Origuella.

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