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Prazeres

Em "Fuck Me" eles dançam o corpo, a vida, e ser-se mulher

O espectáculo de Marina Otero é imperdível nos dias 7 e 8 de março, no CCB. Conversa com a coreógrafa.

Foto: @astadiego
05 de março de 2024 às 17:44 Patrícia Barnabé

A coreógrafa argentina sobe ao palco do CCB para mostrar a terceira parte de um trabalho profundo sobre o seu corpo, a sua história, o seu tempo e o seu lugar, para falar de todos nós. Dançado só por homens, é um fascinante mundo íntimo em catarse que a Máxima foi conhecer de perto, em entrevista.

Porque quis representar a sua vida num palco e para uma audiência? 

Trabalhar sobre a minha vida é muito anterior a este espetáculo Fuck me. Começou logo na minha primeira obra, Andrea, que estreei em 2012, quando decidi trabalhar a partir da minha vida. Incluia-se no projeto de investigação Recordar para Viver, onde me proponho trabalhar com o meu corpo e com a minha estória. Eu venho da dança, sentia-me sempre desenquadrada, não me sentia encaixar no mundo da dança, da técnica, da perfeição, no tipo de corpo. Sempre tive tendência para uma fisicalidade mais tónica, mais bruta, com mais contacto, então comecei a pensar como seria este corpo, como era esta pessoa que estava dentro deste corpo e como é que este se relacionava com o mundo. Comecei a fechar-me em salas de ensaio ou em casas emprestadas, a ver o que tinha para dizer e, a partir daí, pensei: "Bom, vou falar no que tenho de mais próximo, do que está à minha volta na vida quotidiana." E o mais próximo era mesmo a minha própria vida. Depois, o projeto foi mudando e transformando-se em diferentes facetas, e assim foram aparecendo estas diferentes obras.

Foto: @alecarmona

Qual foi o ponto de partida desta criação específica? 

O ponto de partida de Fuck me foi a história do meu avô paterno, que trabalhou no serviço de informação da Marinha, durante a ditadura cívico-militar na Argentina, onde teve um cargo de sub-oficial major. A história da ditadura na Argentina foi muito trágica e terrível, desapareceram cerca de 30 mil pessoas, interessava-me averiguar o que se tinha passado com o meu avô, de que forma ele tinha sido cúmplice de todo este horror, antes de eu nascer. Este trabalho começou em 2015, foi precisando de mais investigação e montagens, e materializou-se neste Fuck me.

E porquê Fuck Me e não Fuck you, já que parece ser uma espécie de manifesto? 

Não tenho uma justificação literal, mas talvez não quisesse criar qualquer dano. E, em vez de mandar tudo e todos à merda, mando-me a mim e isso funciona como num espelho: o que cada uma faz ao mundo e o que o mundo faz a cada uma de nós. Como num efeito boomerang, das coisas que vão e voltam.

Disse que sempre se imaginou, e cito: "no meio de um palco, como uma heroína, a vingar-se de tudo. Mas o meu corpo não aguentou a luta". O que era esse tudo de que se queria vingar e que depois se tornou demais? 

Esse todo são, secretamente, os homens, as pessoas do sexo masculino. Nas minhas peças aparecem certas e várias obsessões e os homens são uma delas. Esta desigualdade entre o homem e a mulher, este apego emocional e esta dependência que te vês a ter sempre em relação aos homens, e todos os danos que os homens provocam às mulheres, e me provocaram a mim. Sem me pôr no lugar da vítima, muito pelo contrário, por isso me vingo de todo esse mal, a vingança que pressinto em Fuck Me parte de um lugar de fragilidade, dessa ideia da mulher que tem de ser sempre bela e jovem, da mulher sacrificada. O espetáculo é um corpo que já não é tão jovem, está a perder a juventude, que já não pode ser sexualidade, apenas pode existir. É uma vingança desta exigência permanente e capitalista do corpo feminino. E é também uma vingança da dominação, de como os homens continuam a dominar e a minar as mulheres. Nesta obra, esta mulher tem um corpo que se quebra em cena, mas consegue dominar, e dirigir, os seis homens em palco. A mim interessava-me expô-lo, mas sem a palavra, só através do corpo que se mostra sem dizer nada e sem explicar nada. Agora estou a explicar-lhe, mas não se explica nunca, vê-se.

Foto: @macadenoia.fotografia

Por isso escolheu apenas bailarinos homens e construiu uma peça tão íntima e pessoal, e expressada através do corpo de outros. 

Escolhi bailarinos por aquilo que lhe disse e, sim, e trabalhámos de forma muito íntima. Trabalho em processos muito longos e gosto de meter os espectáculos nesses processos, entrar na intimidade e abrir-me. Também propus a toda a equipa, entramos todos juntos num processo de grande intimidade, e de qualquer lado aparece a ficção. Um dos textos que surgiu, e que está na obra, e quem o diz é o bailarino brasileiro, o Fred Raposo, veio de uma conversa com os outros intérpretes, enquanto eu passava a mensagem antes dos ensaios. Daí surgiram coisas e fui para casa escrever. E no tempo off, ou seja, fora do ensaio, interessa-me vincular-me com os intérpretes de uma maneira muito íntima, por isso, torno-me amiga das pessoas com quem trabalho porque partilhamos muita coisa no processo criativo. Estas pessoas são muito importantes - e trabalho com as pessoas, não com os bailarinos.

Foto: @alexai4

Considera que a nudez serve melhor o seu propósito de honestidade? 

Gosto muito de ver um corpo desnudado e estar no cenário, desde a literalidade da nudez física até à nudez simbólica que tem, de alguma forma, a ver com essa honestidade. E aqui refiro-me ao tentar aprofundar as piores coisas, ou as que não queres mostrar, as que doem, tentar escavar essas zonas mais obscuras de nós mesmos. E, ao trabalhar essa obscuridade, vamos abrindo, ou acedendo, a um piso mais abaixo, a um subsolo mais obscuro. E o corpo nu, em cena, frágil, mas a mostrar as suas habilidades - porque os bailarinos começam de uma forma, com uma tensão física, muito potente, que já não tem nada a ver com essa fragilidade. A obra desarma, se quisermos, essa primeira capa de fragilidade. Essa beleza pode ser hegemónica, mas vai-se tornando mais obscura. Então, há qualquer coisa nos corpos nus, poderosos e frágeis, que são os corpos que me interessa ver e com quem quero estar em cena. Por exemplo, um corpo nu e inseguro que põe a barriga para dentro para tentar mostrar o seu melhor, a melhor posição para que se veja de uma forma mais hegemónica, aborrece-me. Agora ser como se é e estar em cena despido, interessa-me muito mais.

Foto: NORA LEZANO

Chamou a esta peça "causa narcisista", e também "sacrifício público" - a estória de uma pessoa pode ser a estória de todas, por isso lhe pergunto: não devíamos partilhar mais, e mais profundamente, uns com os outros, até encontrarmos esse chão comum que nos une? E quem sabe assim trabalharmos novos valores e uma nova sociedade. 

É das coisas que mais me interessa, e me preocupa: a causa narcisista de tudo isto. Como sair desse narcisismo com que vemos sempre o outro? É, justamente, encontrarmo-nos com outras pessoas e transformar esse íntimo num quase universal. É a obsessão que tenho. Claro que tenho narcisismo, estou a trabalhar com a minha estória e a minha vida. E tento sempre, em luta permanente. E falo de mim, porque é o que conheço melhor e, em vez de criticar os outros, prefiro olhar para mim própria. Para este meu corpo que é um ponto de partida, mas tem de ter uma vinculação com os demais, com todo o mundo. Assim, quando trabalho um tema específico ou muitos temas específicos, procuro sempre medir o peso que terá nas outras pessoas, em pessoas onde vejo essa dor que me faz sofrer. Digamos que essa pergunta é a que me faço a todo o momento: se esta dor pessoal se torna universal. E isso não é fácil, porque muitas vezes fechamo-nos em nós próprios e deixamos de ver, estamos tão próximos dessa dor que não nos conseguimos afastar e vê-la de fora. Como prática, o que tento fazer é ter um olhar objetivo sobre mim, e sair de mim, para ir observar a dor de outras pessoas e assim compreender também a minha própria dor. Como falar de um tema universal? São os que nos tocam, a morte, o amor, a dor, o envelhecimento. Pode ter que ver com falta de imaginação, ou o que seja, mas estou sempre a pensar em como posso converter esta dor pessoal num comunicado ao mundo, e possa tocar umas pessoas, mesmo que a outras não lhes interesse, o que acontece sempre, também.

Foto: @matiaskedak

Os nossos corpos são mapas das nossas vidas, ao mesmo tempo que são templos? 

O corpo como objeto, o corpo como materialidade, o corpo, para mim, é a base de tudo. Só um corpo quieto em cena já poderia ser uma obra, vinculando-se com o espaço vazio ou com outras pessoas. É o ponto de partida. Claro que o corpo está condicionado pela conjuntura, o contexto político e social, a educação, o básico a alimentação, a forma como nasce e vive essa pessoa. A partir daí, tudo começa: não tem de se ser artista para se pensar na ‘sua obra’, esta pode ser a sua própria existência, a passagem por esta vida. Tento partir dessa materialidade, e do que está mais próximo e óbvio, como a nossa identidade cultural, ou tento construir essa identidade para observar mais fundo. E é trabalhar essas identidades mais evidentes e mais simples, da maneira como falamos e nos movemos (ou de não falar e não nos movermos, como naquela quietude), num espaço e naquele momento. Essa identidade é tão lata que é um ponto de partida para qualquer obra. Viemos a este mundo, e podemos e atravessá-lo ou fazer uma obra de arte.

Foto: @alexai4

Procurou, mesmo que inconscientemente, ser bailarina para aceder a esses sentimentos mais profundos, quiçá fazer uma catarse? 

Eu não quis ser bailarina, foi qualquer coisa que me aconteceu, como aconteceu ter continuado a sê-lo. A minha mãe, como hobby, ia dançar uma ou duas vezes por semana, quando estava grávida de mim. E depois, como não tinha onde deixar-me, levava-me no carrinho para a sua aula. Fui crescendo a observar essas aulas de dança, fiz ballet e aí começou esta relação com a dança. Só de escutar e observar estas mulheres, a maioria eram mulheres, a fazer passes de baile. E, como qualquer criança, dançava com qualquer som comum, como o da máquina de lavar roupa, o movimento muito presente, sempre fui uma pessoa com muita energia e tenho uma grande violência dentro de mim, que tem que ver com o lugar e o contexto onde nasci. Graças à dança e à arte consigo vivê-lo nestes espaços e não na vida real, o que faria muito mal, a mim e às outras pessoas.

Foto: @alecarmona

Como mulher, e que trabalha com o corpo, como é envelhecer, lidar com a falência da energia? Abraça-o com graciosidade ou zanga-se? E consegue sentir a beleza da passagem do tempo? 

Claro que é difícil envelhecer neste mundo e nesta sociedade onde é muito valorizada a juventude e o corpo hegemónico das mulheres. Como estou a lidar com isso? Não estou zangada, nem tampouco o abraço graciosamente, é uma contradição constante, porque quando, vindo de fora, isso te marca e exige, é doloroso. Não só para mim, mas para outras mulheres, amigas, colegas. Quando vês as injustiças do sistema capitalista, na publicidade, por exemplo, que está em todo o lado, é doloroso. Mas sim, estou a encontrar um valor na passagem do tempo, principalmente nestas coisas que dantes tinham valor e agora já não têm, porque já não se consegue ter esse corpo, essa pele. Já não se ganha se é que, em algum momento, se ganhou. O que temos para ganhar é a aprendizagem de ter passado por determinados momentos, lugares e situações. E saber estar noutros lugares, nomeadamente impondo limites, sendo sincera, expondo o que se sente e se pensa, com clareza, sem medo. Envelhecer tem um lado negativo, uma zona muito difícil e complexa, mas existe outra zona que é muito agradável.

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