"Vais continuar a fazer força até que o menino saia." Quando o parto se transforma num pesadelo
A notícia de que as urgências de Obstetrícia vão fechar na região de Lisboa caiu como uma bomba. Os depoimentos que se seguem falam por si. A incerteza, a desumanização do parto, a falta de literacia para a saúde e, agora, uma campainha à porta das maternidades, não incentivam a natalidade. Este país não é para novos.

"O dia do parto é suposto ser um dia bonito. É suposto olhar-se para trás e sorrir ao pensar nele", defende Mariana Torres, médica especialista em Ginecologia e Obstetrícia. O site do Serviço Nacional de Saúde (SNS) adverte a grávida a entrar em contacto com a Saúde 24 (808 24 24 24) para ser encaminhada para o local certo e entrar em trabalho de parto com segurança. Esta recomendação não terá servido a Margarida Parreira ou a Sara Rodrigues, que tiveram dois partos diferentes com um denominador comum: foram ambos traumáticos.
Com as lágrimas a escorrerem-lhe pela cara, Sara, mãe de primeira viagem, não tem dúvidas de que tudo o que se passou naquela sala de partos foi devido ao cansaço da obstetra que assumiu, na hora, que estava exausta. "Tenho a certeza de que aquela médica estava a fazer turnos e turnos seguidos. Apanhei-a à uma da manhã, quando dei entrada no hospital, vi-a quase 24 horas depois e ainda na noite a seguir, na altura em que foi ver como é eu que estava no pós-parto. Tanto que ela dizia: "estou cansada, vamos lá despachar isto." "Isto" era o parto, o momento que deveria ser o mais emocionante da vida de uma mãe.

O caso de Margarida foi diferente, mas também revela falta de cuidado com a parturiente. Chegou ao hospital, com contrações a cada cinco minutos, por volta das 22h45. A ginecologista que a seguiu ao longo da gravidez aconselhara-a a ligar sempre para a Saúde 24 antes de sair de casa. Já tinha havido uma situação às 33 semanas em que, ao telefone, lhe disseram: tem duas possibilidades, ou ir à Maternidade Alfredo da Costa (MAC), em Lisboa ou à Maternidade de Santarém, porque a de Vila Franca de Xira estava fechada. "Na noite do parto tive sorte, apanhei a maternidade de Vila Franca a funcionar. Cheguei, fizeram-me o CTG, a médica observou-me e disse que, como as contrações estavam muito irregulares, devia ir para casa."
Sara do Vale, doula (assistente/acompanhante de parto) e uma das fundadoras da Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto (APDMGP), lembra que "as mulheres não são números, e o facto de aquela grávida ter dado entrada no hospital X, e de o bebé ter nascido ali, não conta a história das portas a que já bateu antes de lá chegar e do luto que vai fazer de um parto que não foi como tinha sonhado." Por essa razão, em setembro entregou, em conjunto com outras sete associações não governamentais, uma petição a pedir "o fim das contingências nas maternidades portuguesas". A petição era dirigida ao primeiro-ministro, à ministra da Saúde, ao Presidente da República e ao presidente da Assembleia da República. "No documento, defendem 'que as atuais contingências nas maternidades nacionais não são um plano de ação, são um atentado à segurança das mulheres em Portugal'", e que "é imprescindível que todas as maternidades mantenham as portas abertas", avançam.
Se as equipas médicas não estivessem esgotadas, Sara Rodrigues provavelmente teria melhores recordações do parto. Depois de uma gravidez "bastante feliz", em que se sentia "bonita e especial", Sara deu entrada na maternidade de Portalegre. A maternidade de Elvas, onde mora, fechou em 2006. A distância entre as duas cidades é de cerca de 56 quilómetros - à volta de 45 minutos de viagem. Durante a noite correu tudo normalmente, mas, quando estava com sete dedos de dilatação, pediu para levar a epidural. Ali começou o pesadelo. Depois de levar a epidural, "comecei a sentir suores frios e a sentir-me a desmaiar. A médica começou aos gritos comigo, dizia: ‘Tu não podes desmaiar, não te atrevas a fechar os olhos, porque és tu que vais ter o bebé.’" O companheiro conseguiu acalmá-la. Sara esteve 17 horas em trabalho de parto, tinha contrações constantes, mas o filho não descia. Pediu para lhe fazerem uma cesariana. Recusaram. "Vais continuar a fazer força até que o menino saia." Sara tinha tido aulas de preparação para o parto, mas não estava preparada para o que sucedeu. Garantiram-lhe que ia ter força como se tivesse vontade de ir à casa de banho. "Nunca senti essa vontade, mas disse-lhes, em pânico: ‘Já tenho vontade, vou fazer essa força.’" Levaram-na para a sala de partos, sentia-se muito mal. Foi aos gritos pelos corredores do hospital, as quatro doses de epidural que levou não fizeram efeito. Sentia-se a perder todas as forças. Quando já estava na sala, viu entrar mais dois médicos e um reforço de enfermeiros. Um misto de sentimentos passou pela cabeça desta jovem, técnica superior de higiene e segurança no trabalho: medo, culpa, confusão e submissão. "Eles sabem o que estão a fazer", pensava. Todos lhe diziam para fazer força. Todos, sem exceção, ordenavam-lhe que não gritasse. "Eu chorava e pedia-lhes desculpa. O médico que estava do meu lado esquerdo começou a saltar-me em cima. Fez pressão com o cotovelo em cima da minha barriga. Depois cortaram-me toda." A médica que estava a assistir ao parto foi buscar ventosas e ferros (fórceps). O bebé não chorou quando nasceu. Não o puseram em cima da mãe. Sara não teve reação, só dor e mágoa. "Até quando me coseu foi horrível, senti cada ponto. Sempre que me encolhia com dores, a médica gritava: ‘Não se encolha, olhe que assim nunca mais saímos daqui. Não quer ver o seu filho? Então vamos lá resolver isto.’ Fui muito maltratada por essa médica parteira. Nem me lembro do nome dela."

O pós-parto foi horrível, sempre que recordava a experiência chorava convulsivamente. Até há bem pouco tempo não conseguia ver vídeos do filho recém-nascido. Na altura, o bebé gemia e ela não percebia porquê. Seria fome, calor, fralda cheia? Quando lhe tirou a toca, descobriu uma ferida gigante na cabeça, já cheia de pus, por causa das ventosas. Do outro lado da linha telefónica, a voz embargada desta jovem mãe de 30 anos valida cada desabafo. Passadas três semanas foi a uma consulta de rotina de Pediatria. O médico começou a observar o filho e acertou em cheio: "Você deve ter tido um parto muito traumático." Na consulta, Sara descobriu que o filho não só tinha a clavícula partida como um hematoma no lado direito do pescoço. "Tivemos de andar na fisioterapia e ele só ficou bom aos cinco meses", conta.
A representante da APDMGP fala dos riscos que um parto traumático pode ter: "O corpo pede calma para produzir ocitocina, mas, como está em stress, produz adrenalina. Com o stress, a mãe pode ter um parto difícil, porque não faz a dilatação tão depressa. A adrenalina trava o corpo. É o nosso sistema de mamíferas a dizer que isto não é um local bom para se nascer. Pode dar origem a partos mais longos. Ou a mãe pode ter um pico de tensão. Tudo isto pode traduzir-se em quadros clínicos graves."
Margarida Parreira nunca vai esquecer a noite de 4 de junho deste ano. Andou para trás e para a frente, em vez de ficar internada na primeira hora em que se dirigiu ao hospital de Vila Franca de Xira. Grávida da segunda filha, Margarida também não sabia que das duas vezes que engravidou tinha direito a fazer um plano de parto. Desconhecia, por exemplo, a APDMGP, cujo site tem uma secção com uma série de documentos para as futuras mães se irem preparando para o parto, entre reflexões várias para a construção de um plano de parto.

O nascimento da primeira filha de Margarida – três anos antes – tinha sido feito com a utilização de ventosas, a bebé teve de ser reanimada e, no íntimo, Margarida tinha receio que a situação se repetisse. Depois de estar em observação entre as 22h45 e as 24h40, Margarida teve alta. Disseram-lhe que, se lhe rebentassem as águas ou sentisse contrações muito fortes, se devia dirigir novamente ao hospital. "Cheguei a casa e, passado um quarto de hora, rebentaram-me as águas. Estava com umas dores horríveis e já não conseguia andar. O meu marido é que me levou até ao carro. Sentia mesmo que a bebé estava a nascer. Pressentiram que não havia tempo para chamar a ambulância. Fomos de carro até ao quartel dos bombeiros." Pegaram-na ao colo e viram que estava em trabalho de parto. Ligaram para o INEM para que fosse ao encontro deles, que estavam na iminência do nascimento de um bebé. "O INEM não estava disponível." O bombeiro de serviço que a acompanhava aconselhou: temos de ir para o hospital devagarinho, se perceber que a criança vai nascer mando parar a ambulância. "Assim foi, a ambulância parou à saída da autoestrada para Vila Franca de Xira e a Luísa veio ao mundo à 1h45. Tive muito medo por causa do parto anterior. Não há ventosas ou máquinas de fazer reanimação numa ambulância." Deu entrada no hospital, tiraram-lhe a placenta e foi toda cosida. A sua grande preocupação era a saúde da bebé, que chorou mal nasceu na ambulância.
Quando, mais tarde, mostrou o CTG que lhe tinham feito naquela noite, a ginecologista que a seguiu durante a gravidez disse-lhe que, tratando-se de um segundo parto, foi arriscado mandarem-na para casa. Se ela estivesse de serviço, provavelmente, não o faria. Técnica auxiliar de ação farmacêutica, Margarida está habituada a lidar, no quotidiano, com temáticas de saúde, mas nada a preparou para o desfecho desta história.
Na opinião de Mariana Torres, as contingências nas maternidades, a falta de médicos e as equipas cansadas prejudicam não só as grávidas como as suas famílias. "Se a grávida chega a uma maternidade cheia, é transferida, tem de percorrer centenas de quilómetros em trabalho de parto e tudo isto terá repercussões graves."

Sara do Vale, da Associação Gravidez e Parto, lembra que "há picos de cesarianas e induções à sexta-feira e antes do Natal e Ano Novo. Os gráficos mostram-nos que, nestas alturas, sobem as induções e as cesarianas. É criminoso, mesmo". Há hospitais que marcam a diferença – refere o Hospital Garcia da Horta e o hospital de Cascais. "Têm demonstrado humanização e uma vontade de ir ao encontro da necessidade das mulheres", justifica.
Margarida Parreira sempre quis ser mãe de três filhos. Duas filhas depois, não quer sequer ouvir o verbo engravidar. "Hoje tenho a perfeita noção de que poderia ter corrido muito mal. Depois deste parto, não penso em ter mais filhos." Lembra, ainda, algumas más experiências. "No fim da gravidez, tive muita ansiedade, porque as maternidades da região estavam todas fechadas. Só pensava, quando me rebentarem as águas para onde é que me devo dirigir? Mal sabia eu que a minha filha Luísa ia nascer numa ambulância."
Todos estes incidentes puseram as duas – mãe e filha – em risco de vida. "Não estava a conseguir finalizar o parto, o Serviço Nacional de Saúde (SNS) não funcionou e só tive a subida do leite uma semana depois."

A outra consequência grave é que não retomou ainda a atividade sexual. "A minha bebé já tem três meses, mas ainda não voltei à vida sexual. Tenho medo. Fui à consulta do pós-parto, a médica disse-me que estava tudo bem, mas ainda não estou preparada. Sofri imenso."
Nas aulas de preparação para o parto, Sara Rodrigues soube da existência do plano de parto. Mas pensou: "Não vou fazer nenhum plano, porque depois não corre como idealizei e ainda fico mais nervosa. Numa segunda gravidez talvez faça não um, mas dois ou três."
A vida depois do parto não teve grandes melhoras. Durante dois meses só conseguia sentar-se numa almofada ortopédica antiescaras e andou todo aquele tempo de fralda. O filho, Tomás, já tem dois anos e meio, mas Sara ainda tem relações sexuais com dor. A ginecologista que a segue diz que ficou "muito mal cosida e que nada ficou bem feito".
Filha única até aos 15 anos, Sara quer voltar a ser mãe para que o filho não padeça da mesma solidão. "Sei que preciso de ajuda psicológica para ir mais tranquila para a próxima gravidez. Os medos decorrentes do parto ainda estão muito presentes."
A obstetra Mariana Torres destaca um problema crónico no SNS. "Ao longo dos anos, as condições de trabalho deterioraram-se. As equipas estão sobrecarregadas e é um círculo vicioso. A classe médica está desiludida. As condições de trabalho não são as melhores, a progressão na carreira é lenta e os salários baixos também são um fator importante. Os médicos saem do SNS porque não conseguem prestar cuidados de saúde com qualidade." Na opinião de Mariana é urgente um investimento nos profissionais que constituem o SNS, para que se sintam reconhecidos na sua profissão.
"O SNS sobrevive há muito tempo à custa de pessoas que fazem horas extraordinárias atrás de horas extraordinárias. Em 2012, quando comecei o internato, além das 40 horas fazia mais 36 por semana na urgência. A urgência era assegurada à custa da saúde dos profissionais de saúde. É evidente que trabalhar tanto não é benéfico para ninguém", conclui.
Entretanto, recentemente o Expresso noticiou que os "hospitais da região de Lisboa vão deixar de ter a porta das urgências obstétricas aberta. O atendimento às grávidas passa a ser sempre referenciado – via telefónica, por encaminhamento do médico ou através da emergência pré-hospitalar –, e haverá uma campainha à entrada dos serviços hospitalares para as utentes em SOS que cheguem à urgência sem avaliação prévia." Esta medida será implantada em Lisboa nas próximas semanas.
A APDMGP já mostrou o seu descontentamento em comunicado. "Perante esta violação de direitos essenciais, a associação está preocupada com os efeitos adversos desta solução, nomeadamente na saúde das mães e dos bebés em Portugal." Questionam também a forma como a triagem será feita, sobretudo "nos casos de mulheres migrantes que não falam português ou não tenham acesso telefónico".
Entre outras preocupações, a APDMGP pergunta qual a razão da sociedade civil não participar nestas decisões e sublinha a sua disponibilidade para fazê-lo.
Com algum desagrado, Sara do Vale lembra que a Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto foi criada em 2014. "Há dez anos fazíamos petições para ter partos na água nos hospitais públicos, agora só queremos as maternidades de porta aberta. Para que as mulheres tenham acesso às consultas, ecografias e partos com segurança."
Até ao fecho deste texto, a Máxima não obteve qualquer declaração do Ministério da Saúde.
*Excerto originalmente publicado na revista dos 36 anos da Máxima, em novembro de 2024.
