Histórias de Amor Moderno: “Tinha receio de ser mal interpretada, por estar a entender mal as coisas, e que o meu chefe me achasse convencida”
“Cheguei ao ponto de marcar consultas médicas para a hora de almoço, só para ter justificação para me escapar dali.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Eu estava quase nua, a puxar a saia para cima quando ouvi um toc-toc na porta, olhei e ele entrou, "Matilde - ai, desculpa, pensei que estavas vestida". Tentei cobrir-me como pude, com a saia, fiquei envergonhada. Só consegui dizer "Carlos, por favor…", e nem consegui acabar a frase. Estava na casa-de-banho do escritório a acabar de me vestir. Era dia da festa de Natal da empresa, um lanche que acabaria por se prolongar noite dentro, respeitando a tradição destas festas, segundo as histórias que os funcionários mais antigos contavam sobre a loucura dos eventos - era assim que descreviam semelhantes festividades, "a loucura dos eventos".
"Carlos, importas-te de sair? Eu estou-me a vestir, não podes entrar assim", reclamei. E o Carlos, que é o meu chefe, sorriu e respondeu "Matilde, mas tu achas que vim aqui para espreitar, que entrei aqui para te ver nua?" Eu estava tão transtornada, e envergonhada, e surpreendida, e angustiada, tudo ao mesmo tempo, que fiquei também irritada e não me contive, "sai daqui, se fazes favor, quero acabar de me vestir!" Ele fechou o semblante, recuou um passo e dirigiu-se à porta, que abriu, e, antes de sair, fez uma pausa cinematográfica, olhou para trás e disse-me "depois precisamos de conversar".

O Carlos mostrou-se afetuoso comigo desde que entrei para a empresa, há cerca de oito meses. Foi ele que conduziu a minha entrevista de emprego e, logo nesse dia, fiquei com a impressão de que, por qualquer motivo, simpatizava comigo. Foi simpático e atencioso, fez-me praticamente acreditar que o lugar seria meu, o que acabou por se revelar verdadeiro: fui a escolhida para o cargo de primeira assistente.
É um trabalho de responsabilidade, que exige atenção e dedicação, além de uma disponibilidade generosa durante o horário de trabalho, uma vez que a toda a hora sou solicitada para as mais diversas formas de auxílio - desde memória ambulante dos superiores até estratega não creditada de certos projetos, passando por contabilista oficiosa do departamento ou consultora jurídica para questões sensíveis e urgentes, tenho de estar pronta a responder a praticamente tudo.
O Carlos, que é meu chefe direto e que ocupa a segunda linha da hierarquia da empresa, sempre mostrou reconhecer o meu mérito e o meu esforço. Só que, por vezes, mostrava esse reconhecimento de uma maneira excessivamente afetuosa. A mão que pousa no ombro, os dedos que tocam nos cabelos - primeiro, ao de leve; ao fim de alguns meses, com a confiança suficiente para os arrumar atrás da minha orelha -, o toque distraído e amistoso na cintura, onde, com o passar do tempo, a mão e o braço passam a descansar cada vez mais tempo e de uma maneira crescentemente ostensiva. E assim por diante, até que os agradecimentos, em nome do reconhecimento da empresa, passaram a ser insolitamente feitos com o beijinho - primeiro, o beijinho na testa, "Matilde, que seria de nós sem o teu trabalho", depois, o beijinho na bochecha, "é a tua inteligência que nos salva, Matilde", e mais outro, na outra bochecha, "és tu que nos puxas para a frente". Eventualmente, os elogios de reconhecimento passaram a vir acompanhados de adjetivos descomprometidos, como se fossem marialvas, mas só a brincar: "és tu que nos puxas para a frente, sua giraça", e dava uma gargalhada.

"Sua giraça" - quando ele o dizia eu ficava sempre à espera do que podia vir a seguir. Uma palmadinha no rabo? Um xoxo nos lábios? Mas a brincar, claro, ahahah, tudo só a brincar, Matilde, "sua giraça, ahaha", íamos lá agora fazer isto a uma funcionária. Somos todos gente séria, Matilde. "Todos e todas, porque nesta empresa homens e mulheres são tratados de igual modo", seria capaz de acrescentar o Carlos.
Mas não eram só os toques, nem só os elogios demasiados, nem só as mãos mais distraidamente demoradas sobre os meus ombros, sobre as minhas mãos, sobre as minhas ancas. O Carlos começou, muito descontraidamente, como sempre faz e fazia em relação a tudo, sem compromissos, "não se pode levar a vida demasiado a sério", a convidar a equipa, de maneira genérica, para almoçar. "Vamos comer qualquer coisa?", dizia para o ar, e as pessoas lá se juntavam. E eu juntava-me também, estava no princípio, eram os meus primeiros dias na empresa, achava tudo normal e queria encaixar-me no grupo, fazer parte dele, compreender as pessoas em meu redor e ligar-me a elas de algum modo. Não ando no meu trabalho em busca de amizades, mas gosto que as pessoas com quem passo um terço dos meus dias durante dois terços do meu ano sejam para mim um pouco mais do que simples colegas.
Os almoços chegaram a ser divertidos, com muita conversa, muitas revelações e, para mim, com o bónus de ir conhecendo melhor as pessoas com quem trabalhava, os gostos de cada um, aqueles traços de personalidade que, em silêncio e diante de um monitor, se tornam inexistentes, omissos, ficam apagados, invisíveis. Depois, comecei a estranhar que a coincidência levasse constantemente a que o Carlos ficasse sentado ao meu lado. E então começaram os piropos - nada de ofensivo e, como é óbvio, "nada para ser levado a sério, ahahah", "esta giraça", "esta gata assanhada eheheh, não se metam com ela", "o seu nome é Matilde, e o apelido é guapíssima", coisas despropositadas, sem gravidade nem jeito, mas de tal modo inadequadas que o desconforto se foi instalando. E não me refiro apenas ao meu desconforto.

As outras pessoas começaram a aperceber-se da estranheza da situação. Aos poucos, o grupo foi-se desfazendo, os comensais eram cada vez menos e eu ia ficando numa posição cada vez mais débil e exposta: os convites para almoçar eram-me agora dirigidos, já não eram gerais, e eu não conseguia nem convencer os restantes a juntarem-se a nós, nem recusar e esquivar-me aos almoços na companhia do Carlos. Tinha receio de ser mal interpretada, por estar a entender mal as coisas, e que o meu chefe me achasse convencida, até paranóica, e o meu trabalho passasse a ter outro valor aos olhos dele.
Em casa, o João, meu companheiro desde há três anos, fazia-me aquelas perguntas normais acerca do trabalho, como é que vão as coisas, como são as pessoas, o ambiente, e eu a tudo respondia de modo mais ou menos evasivo, tentando fugir à conversa para que não chegássemos à questão "então e o teu chefe?" Só que a questão acabou por surgir e eu tive de mentir, tive de dizer que era um tipo normal, discreto, e seguir com a conversa noutro sentido. Porém, o João não é um tonto e percebeu que fugi à pergunta. Deixou-me escapar, mas não ficou convencido. Passou a estar mais atento. Até que, um dia, me pediu para falar um pouco mais acerca do Carlos, uma vez que tinha ficado curioso, pois não sabia praticamente nada acerca do meu chefe. "Trata-me bem, é simpático", disse-lhe eu, e senti-me ruborescer e aquecer imensamente, e quando tentei acrescentar qualquer coisa engasguei-me, gaguejei, fiquei nervosa. Uma vez mais, deixou-me fugir à conversa, não insistiu. Mas eu sei que ele soube então que alguma coisa se passava.
Foi por essa altura que o Carlos começou a mandar-me mensagens fora de horas. Pelo Whatsapp, pelo Instagram, por tudo o que tinha à disposição e que não fossem canais laborais. Até porque eram coisas que nada tinham a ver com trabalho e que, muitas vezes, eram apenas chamadas de atenção ou perguntas ou declarações inoportunas, "gostaste do nosso pequeno encontro hoje?", "depois dos nossos dates chego ao escritório muito mais entusiasmado", "gostava de saber se te inspiro tanto como tu me inspiras a mim". Decidi cortar com os almoços, evitar que a situação ganhasse outras proporções. Todos os dias eu encontrava uma nova desculpa, uma nova companhia, ou até companhia nenhuma, só um encontro imaginário, qualquer coisa que o afastasse de mim. Cheguei ao ponto de marcar consultas médicas para a hora de almoço, só para ter justificação para me escapar dali.

E foi então que a frequência das mensagens aumentou, sendo que não havia horas para pararem. O João aborreceu-se comigo. "Não te vou ver o telefone, mas não me vais fazer de parvo." Não lhe contei tudo, nem dei pormenores. Disse-lhe só que era um colega que parecia não perceber que eu era comprometida. "Então, trata de deixar isso bem claro, por favor. Não vou ficar aqui a fingir que não se passa nada e que eu não estou a ver." Ele estava irritado, embora tivesse mantido a calma a falar. E acrescentou, no fim: "Isto é para resolver. De uma maneira ou de outra." E foi-se deitar.
No dia seguinte à festa de Natal, o Carlos chamou-me ao gabinete, "Matilde, quando for oportuno, precisava de falar consigo". "Consigo." Ele nunca antes me tratara por você. Sentei-me diante dele, perguntou-me o que se passava. Respondi-lhe que ele sabia perfeitamente que toda a sua conduta era inadequada, despropositada. "Mas qual conduta?", respondeu-me. "A Matilde está bem?" Tentei discutir, chamou-me maníaca e ainda me disse que não sabia se eu tinha condições psicológicas para continuar a desempenhar as minhas funções. "Talvez o melhor seja a Matilde ir para casa pensar no assunto."
Cheguei a casa desfeita, só conseguia chorar - e não era de tristeza, nem de medo: era de raiva, de raiva pura. O meu chefe estava a dar cabo de mim. Quando o João chegou a casa, contei-lhe tudo. Dei-lhe os detalhes da última conversa, mostrei-lhe selfies que o Carlos me mandara, completamente despropositadas, algumas no limiar da decência. O João queria pegar no carro e ir ter com ele, tirar satisfações. "Eu parto-o todo", dizia. E eu cada vez mais desesperada, em pânico, sem saber o que fazer. Até que decidi mandar uma mensagem ao Carlos, à frente do João, para tentar resolver tudo e deixá-lo mais calmo. "Vou-me despedir, mas vou-te denunciar aos recursos humanos", escrevi e enviei. E ele respondeu-me imediatamente, "por favor, não me envie mensagens fora do horário de expediente, não vou tolerar este tipo de assédio".
No dia seguinte, fui diretamente aos recursos humanos. Apresentei a minha demissão, aleguei justa causa e fiz queixa formal do Carlos. Vi que, lá do fundo da sala, ele olhava para mim e houve momentos em que senti que a sua mente me controlava a caneta com que eu assinava, ao ponto de ler e reler o que escrevia, até os nomes constantes na minha assinatura. *Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado.
