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O que são os incels, o expoente máximo da misoginia?

Reúnem-se em grupos online e em plataformas como o Telegram. Partilham, sem autorização, vídeos e fotografias de mulheres que odeiam. Porque eles odeiam todas as mulheres. Dizem-se celibatários involuntários, chamam-lhes incels e são um fenómeno difícil de compreender.

Foto: Getty Images
27 de janeiro de 2025 às 07:00 Diego Armés

Setenta mil homens é muita gente. É um número tão grande que, por exemplo, nenhum estádio de futebol, em Portugal, conseguiria acomodar nas suas bancadas, ao mesmo tempo, tamanha quantidade de pessoas. Esta é a primeira conclusão. A segunda traduz-se naquele lugar-comum que ganhou relevo e expressão nos tempos recentes: não são todos os homens, mas são sempre os homens. É uma verdade incontornável.

Foi notícia, no início de setembro, a existência de um grupo na rede Telegram no qual se partilham, numa base diária, fotografias de mulheres sem o consentimento delas. Como facilmente se imagina, não serão fotografias de mulheres em passeios ao sol pelos jardins ou em familiares almoços de domingo. São mulheres ora nuas, ora de algum modo sexualizadas. Esse grupo terá cerca de 20 subtópicos, nos quais as imagens são organizadas por lugar, por profissão ou por celebridades, por exemplo. Neste último caso, aparentemente ocorre com frequência a prática de pegar em corpos nus de mulheres anónimas e sobrepor-lhes o rosto de uma celebridade portuguesa. Sim, é tão perverso quanto infantil. Esse grupo de Telegram tem mais de 70 mil homens inscritos, na sua maioria portugueses, e, presumimos, a deleitar-se com as imagens que os seus compinchas partilham indevida e ilegalmente.

O Pussylicious é assim que se chama o grupo de Telegram (prevenimos atempadamente que estes homens são tão perversos quanto infantis) com mais de 70 mil homens a partilharem ilegalmente e a babarem-se com imagens de mulheres que nunca consentiram tal partilha é uma revelação recente, mas o fenómeno que lhe subjaz não é de agora. Basta uma busca rápida por "grupos de partilha de imagens de mulheres" para que nos deparemos com notícias de "revenge porn" à portuguesa em grupos no Telegram.

Este tipo de fenómenos tem vindo a crescer, não apenas em Portugal, mas no mundo. As redes sociais vieram permitir novas possibilidades e facilitar a disseminação e o agrupamento de pessoas no caso, de homens em torno de publicações indevidas de imagens de mulheres. E não apenas nas categorias enumeradas acima. Um dos tipos de publicações mais frequentes neste género de grupos são mesmo as partilhas de "revenge porn": por vingança ou por despeito, homens partilham com os seus pares vídeos íntimos que filmaram num determinado momento com certa mulher que, entretanto, deixou de fazer parte das suas vidas.

Tais fenómenos e eventos demonstram, à partida, uma realidade extraordinária e, possivelmente, inesperada, tendo em conta o nível de evolução cívica que se esperava ter sido atingido no fim do primeiro quartel do século XXI: vivemos numa sociedade cujos níveis de misoginia são absolutamente assustadores. As mulheres, em pleno ano de 2024 d.C., continuam a ser olhadas pelos homens não todos os homens, mas sempre os homens como pedaços de carne, seres sexuais, mercadorias, objetos. As analogias são muitas e podíamos continuar a enumerá-las. O significado será sempre o mesmo: para esses homens, as mulheres são seres inferiores cujo propósito e destino é agradar-lhes, satisfazê-los e estar disponíveis para eles.

Este tipo de corrente misógina atinge o seu clímax num grupo mais específico. Falamos dos incels, provavelmente o grau mais rasteiro e degradante da toxicidade masculina. Queremos tentar decifrar esse fenómeno. Ou, pelo menos, começar a compreendê-lo em toda a sua formidável aberração.

"Incels" no topo da misoginia

"Infelizmente, o machismo continua a ser uma caraterística das sociedades contemporâneas - incluindo as da Europa Ocidental." Quem o diz é o sociólogo Pedro Fidalgo, investigador júnior no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, a quem pedimos auxílio para tentar compreender e enquadrar as manifestações misóginas em pleno século XXI. Pedro Fidalgo considera que a raiz destes comportamentos está enterrada bem fundo. "O Cis-heteropatriarcado é uma estrutura histórica, que atravessa instituições tão diversas como a família, a escola, o sistema político, a religião, entre outras, e que permitiu construir, ao longo de séculos, fundações profundas para o machismo, a misoginia e a heterocisnormatividade - fenómenos com os quais continuamos a lidar, como muito bem têm demonstrado os estudos, movimentos sociais e as políticas feministas e queer."

O investigador reconhece que têm sido feitos progressos, mas também não esconde que há ainda muito por fazer. "Muito graças a estas políticas, temos assistido, nas últimas décadas, a avanços significativos e sem precedentes no que toca a políticas de igualdade de género, mas não nos enganemos, o machismo continua a ser um traço sociológico fundamental das nossas sociedades."

Falemos dos incels e do que são, afinal. O termo é um acrónimo que junta as primeiras sílabas das duas palavras que estão na origem da expressão: involuntary celibates. Celibatários involuntários, em português. Incels, se o acrónimo for modificado para plural. E a expressão original é, em si, um pouco assustadora. O que é um celibatário involuntário? Em princípio, alguém que não tem outro remédio que não o celibato. O adjetivo "involuntário" esconde e revela, ao mesmo tempo, um certo ressentimento com a condição de celibatário. E é nesse ressentimento que reside o mal. A delegação norte-americana do Institute for Strategic Dialogue descreve-os da seguinte forma: "Os incels forjam um sentimento de identidade em torno de uma incapacidade identificada para desenvolver relações sexuais ou românticas." O mesmo trabalho científico considera que "os incels culpam-se a si mesmos, a sociedade, em geral, e especialmente as mulheres por estas falhas percetíveis". E é daí que surge o ressentimento em relação às mulheres – e a si mesmos. Ou seja, o ressabiamento e a frustração são dois ingredientes obrigatórios na formação de um incel.

"Um outro fator [determinante para a formação de coletivos incels] é, sem dúvida, uma vivência pouco informada da sexualidade, muito fundada em preconceitos e estereótipos", acrescenta Pedro Fidalgo. "Por exemplo, [um preconceito] que encara a sexualidade como exclusivamente heteronormativa (entre um homem e uma mulher), penetrativa, não reconhece o direito da mulher à sua autodeterminação corporal, uma vez que os incels acreditam ser seu direito o acesso ao corpo feminino." O investigador acrescenta que "esta realidade vem tornar evidente a necessidade de encarar a educação para a cidadania e a educação sexual como questões públicas – que devem ser promovidas nos currículos de escolas e universidades".

As redes sociais

O sociológo Pedro Fidalgo, quando desafiado a interpretar o papel e o peso das redes sociais na formação daquilo que passou a designar-se "manosfera" – uma espécie de bolha online em que  a misoginia e os incels expandem e partilham as suas ideias e conselhos impregnados de masculinidade tóxica – considera o seguinte: "As redes sociais funcionaram aqui como instrumento e acelerador da criação de comunidades assentes em sociabilidades digitais/online, em que existe de facto um sentimento de pertença identitário. Vários fatores promovem que tal aconteça, como o anonimato online, a facilidade de acesso ou a presença e o impacto das redes sociais no quotidiano de todas as pessoas, mas sobretudo destas gerações mais jovens. Se, por um lado, o acesso a estas plataformas possibilita o funcionamento destes grupos de uma forma organizada, haverá outros fatores envolvidos – relacionados com as motivações dos intervenientes, nas estratégias de recrutamento e na organização e moderação destes espaços digitais."

Nos fóruns de incels, não é de estranhar encontrarem-se indicações genéricas tais como "uma mulher de 18 anos é melhor do que uma de 25 porque experimentou menos pila" ou conselhos, quase como mandamentos, tão abjetos quanto "violem todas as mulheres que conseguirem". Sim, dentro dessas comunidades, a ideia de que as mulheres são seres hediondos merecedores de todo o mal e de nenhuma confiança prevalece sobre todas as outras. Por exemplo, diante de relatos sanguinários de homens que assassinaram ex-companheiras (esses relatos existem; alguns deles são feitos por homicidas condenados que ainda cumprem tempo de prisão), a maioria dos comentários reflete uma estranha propensão para ser compreensiva. Num artigo recente do Público, assinado por Mariana Durães (29 de abril de 2024), podem ler-se alguns excertos desse tipo de comentários, tais como "a dor de uma traição só sente quem foi traído", depois do relato de um feminicida. "Ninguém pode julgar, só ele sabe o que se passou" é outro dos comentários mencionados no artigo.

Esta cultura do perdão à reação mais extremada a uma traição não é, no entanto, um exclusivo destas comunidades online. Não nos esqueçamos que vivemos num país onde existiu um juiz que foi piedoso com homens abusadores e violentos porque considerou que a mulher adúltera era merecedora de punição. O juiz Joaquim Neto de Moura assinou mais do que um acórdão em que poupou, esbanjando machismo e misoginia, homens agressores a penas pesadas porque decidiu julgar, antes dos criminosos, as mulheres vítimas destes – possivelmente, por considerar, tal como os incels, o adultério um crime mais grave do que os outros que lhe sucederam.

Assim, serão os incels o resultado de uma falha social? Pedro Fidalgo aceita, de certa forma, a ideia. "Os coletivos de incels funcionam quase como uma caricatura de um problema sociológico mais abrangente, a disseminação de modelos de masculinidades violentas, associada à reprodução de papéis de género tradicionais: a ideia de que os homens são de Marte e as mulheres são de Vénus, que associa à masculinidade uma série de expectativas socioculturais que são hostis (ou mesmo violentas) relativamente à feminilidade, mas que também são extremamente nocivas para as pessoas do género masculino." A toxicidade deste modo de estar masculino não afeta apenas os seus alvos, isto é, as mulheres. Também os homens sofrem o ricochete deste tipo de postura, de pensamento e de conduta. "Existem muitas evidências de que o modelo de masculinidade boys don’t cry, que restringe os homens na sua relação com as suas emoções, os afasta de tarefas de cuidado e obriga a uma performance de género agressivamente masculina, não é saudável. E acredito que este é um dos fatores envolvidos no fenómeno incels." Esta afirmação não pretende, de todo, desagravar ou justificar a misoginia nem a existência dos incels. "Há uma coisa fundamental que importa registar sobre os Direitos Humanos – que estes não são negociáveis. A defesa intransigente da dignidade das pessoas (de todas as pessoas) não é negociável."

Exemplos e caricaturas

Pedro Fidalgo, que considera que os coletivos de incels funcionam "como uma espécie de caricatura" do tal problema sociológico de masculinidade mal-educada, mal direcionada e, eventualmente, mal concretizada – daí a infelicidade, o isolamento e o ressabiamento –, saberá perfeitamente quem é Andrew Tate. Idolatrado por todos os incels e mencionado por quem quer que se tenha aproximado de um destes fóruns, Tate é o exemplo máximo deste tipo de comportamento que funde imaturidade com inconsciência e, ainda, desprezo pelas mulheres, entre outras coisas. No caso de Andrew Tate, julgado pela justiça por lenocínio e tráfico humano, entre outros delitos, a situação é mais grave do que simplesmente andar pela internet a dar e a ouvir conselhos sobre como ser um homem a sério. No entanto, sendo um exemplo, queremos saber o que podem Andrew Tate e outros menos célebres, e eventualmente menos radicais do que Tate, representar para os jovens que aderem aos círculos de incels. "Infelizmente, a idolatria de figuras que promovem o ódio e a violência não é um fenómeno novo. A chamada ‘autoridade carismática’ de muitos líderes encarados pelas pessoas que os seguiam como extraordinários, quase sobre-humanos, desencadeou e legitimou tantas formas de violência contra diversos grupos", discorre o investigador.

E como lidar com o surgimento de figuras como Tate? "Em Portugal, essas figuras também se fazem notar. É fundamental que saibamos identificá-las, desmontar os seus argumentos misóginos, LGBTQI+fóbicos, racistas e/ou xenófobos e garantir que as pessoas dispõem das ferramentas necessárias para escolher role models mais positivos do que homens que propagam o ódio contra mulheres e minorias. Isso só é possível através do conhecimento, da educação e da disseminação de informação, indispensáveis ao exercício do pensamento crítico."

O conhecimento será fundamental para superar fenómenos sociais perigosos como a misoginia e, em específico, as comunidades de incels. Mas não seria de esperar que esse conhecimento, na era da Internet e da informação à distância de um clique, estivesse mais presente na cultura contemporânea? Ao invés, parecemos estar numa época de retrocesso civilizacional, principalmente no que respeita a este tema. "A internet apenas abre possibilidades, que podem ser aproveitadas de formas mais progressistas ou não", explica, com argumentos óbvios, Pedro Fidalgo. E depois acrescenta que "a internet e as redes sociais também permitem a rápida circulação e disseminação de narrativas. Sendo que o movimento incel é particularmente eficaz na criação de narrativas, como a que parte da sua suposta falta de sucesso sexual com mulheres para justificação do recurso à violência como meio para a procura de mudança, justiça, ou, nos casos mais violentos, vingança".

Estamos num ponto em que é ainda difícil perceber como resolver uma situação que é um imbróglio: se, por um lado, temos cada vez mais jovens ligados online que seguem exemplos terríveis e que acabam por adotar posições extremistas, por outro, temos uma herança pesada e um legado de séculos e séculos de machismo e misoginia na cultura ocidental que é difícil corrigir e extinguir. "De um ponto de vista pessoal, só posso lamentar que não tenhamos sido capazes (ainda) de construir e adotar melhores modelos de masculinidades", conclui o sociólogo. Sobretudo, quando olhamos para o modelo antigo, feito de masculinidade violenta, tóxica e hegemónica, e verificamos que os resultados são manifestamente maus.

Texto originalmente publicado na revista anual da Máxima, de novembro de 2024.

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