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Soraia Chaves: "A Moda deu-me conforto com o meu corpo, com a minha pele, com a nudez, com a minha imagem"

A atriz está no epicentro do que no País se faz de melhor na representação: é como a flor rara que todos querem, o rosto que não se confunde numa multidão, a miúda mais gira da festa. A série do momento? Ela estará lá.

Foto: João Paulo
14 de dezembro de 2023 às 07:00 Rita Silva Avelar

À data desta conversa, Soraia Chaves terminou as gravações da série Operação Maré Negra 3, uma coprodução RTP e Amazon Prime Video, depois de filmar duas minisséries que estão em pós-produção: A Travessia, de Fernando Vendrell, e Irreversível, de Bruno Gascon. São desafios recentes que se juntam a uma lista de mais de 40 em representação. Brinca: "Tens de saber o que eu estou a fazer agora para escreveres aí algures, não é?" A sua honestidade é desarmante. Veste jeans e uma camisola branca, lisa e delicada, e uns óculos escuros que lhe assentam na perfeição. Sem maquilhagem, usa apenas um batom vermelho que retoca ao longo da entrevista. À medida que vai respondendo, notamos que pondera antes de falar, faz questão de pensar cada ideia, uma raridade na era da rapidez. Soraia Chaves (Parede, 1982), que aos 41 anos ostenta uma beleza desconcertante, quase inacessível, está entre as mulheres que dispensam apresentações. Os portugueses conheceram-na primeiro na Moda (ganhou o concurso Elite Model Look com 15 anos), e mais tarde na sua grande estreia no Cinema, com O Crime do Padre Amaro, ao lado de Jorge Corrula, para dar vida ao romance de Eça de Queirós adaptado ao grande ecrã por Carlos Coelho da Silva. Recebeu um Globo de Ouro em 2007, com Call Girl, mas alguns dos seus papéis mais aplaudidos, tanto pela crítica como pelos fãs, fê-los nos últimos três anos: as séries A Generala (2020), na qual veste a pele de Maria Luísa Paiva Monteiro, e Três Mulheres (2021) sobre a vida de Natália Correia (papel que representou), de Snu Abecassis (Victoria Guerra) e de Vera Lagoa (Maria João Bastos). Podemos vê-la, agora, em Histórias da Montanha, série da RTP adaptada dos contos de Miguel Torga, que narra cinco histórias de vidas humildes em Portugal nos anos 40.

Foto: João Paulo

Esta edição de aniversário é sobre celebrar as mulheres, as conquistas, os temas fortes que fizeram parte da história da Máxima. És filha dos anos 80, como ela. Lembras-te da revista?

Eu sou filha de uma era em que a Moda estava muito presente nas nossas vidas, sobretudo na minha pré-adolescência. Lembro-me bem das grandes top models, dos anos 90, uma época de ouro para a Moda, que me marcou muito pessoalmente. Eu comecei a trabalhar muito cedo, aos 15 anos, e tive consciência desse grande movimento que existia também nas revistas de Moda, de que a Máxima era uma das referências da altura. Nós, que aspirávamos a ser modelos, olhávamos para a Máxima como um modelo.

Como foi crescer numa altura em que os temas fraturantes como o aborto ou o assédio eram abordados nas revistas femininas? Essa atmosfera que fervilhava em torno da Moda, de liberdade e de empoderamento, foi o que te levou a querer ser modelo?

Essa atmosfera criou abertura para sentirmos a liberdade de sermos o que quisermos. E isso é uma inspiração que pode ser muito forte e determinante no caminho que cada pessoa acaba por seguir: a mim influenciou-me. Eu estava fascinada com o glamour, com essa liberdade, porque essas supermodelos representavam para mim uma liberdade que eu não via propriamente à minha volta, eram a força, a sensualidade, eram mulheres seguras e fortes. Nessa altura, era assim que elas começavam a ser retratadas, o que influenciou a minha vontade de ser quem sou. A Moda sempre foi, para mim, esse espaço de criatividade.

Aos 15 anos esse mundo abre-se para ti, quando vences o Elite Model Look. Passaste muito tempo a fazer trabalhos de modelo, a tua consciência corporal começa aí?

A experiência que eu tive na Moda deu-me ferramentas boas, que também foram um pouco limitativas, por isso precisei de as desconstruir. Eu trabalhava muito em publicidade e quem me chamou para o casting do meu primeiro trabalho [como atriz] foi a Patrícia Vasconcelos, que fazia muita coisa em publicidade. Havia tudo por descobrir. A ferramenta que a Moda me deu nessa altura foi o pleno conforto com o meu corpo, com a minha pele, com a nudez, com a minha imagem. Eu sentia-me completamente confortável com a exposição do meu corpo. Desde cedo, apercebi-me que o corpo de uma modelo, numa imagem, seja fotográfica, cinematográfica ou numa pintura, é uma imagem, é uma questão plástica, é uma ferramenta. Estamos a compor uma história, uma personagem, emprestamos o nosso corpo.

Tiveste o teu primeiro papel em 1995. Sentes que a Amélia d’O Crime do Padro Amaro te ficou colada à pele, de certa maneira? Fizeste várias pausas, recusaste vários papéis.

Foi muito difícil ultrapassar o preconceito de uma modelo que se quer tornar atriz, mas já se esbateu um pouco, sobretudo em relação ao que se considera ser fútil e o que se considera ser mais interessante, profundo, ‘com conteúdo’. No mundo da representação associava-se muito Moda à superficialidade. Senti uma discriminação por parte de colegas, de jornalistas – a forma como fui retratada na altura foi preconceituosa – e ao nível profissional senti uma forte limitação ao nível de casting. Inicialmente parecia que todos os trabalhos que me propunham estavam associados a uma mulher que se despisse, a uma mulher sensual, a uma personagem dentro dessa janela. O que fez com que eu tivesse de travar essa onda, saber dizer que não a muitas coisas, porque sabia que esse caminho seria limitado. E porque identifiquei imediatamente que esse era o preconceito que eu teria de combater. Sem ceder ao meu caminho, ao que era desejado por mim – claro. Foi nessa altura que explorei o Teatro e aprofundei a profissão.

Foto: João Paulo

Dizer não foi uma pressão constante?

Sentimos que temos de fazer tudo, que temos de aceitar tudo, para não perder tudo. Foram a minha força e a minha paciência que me ajudaram a ultrapassar esses medos e essa pressão – não foi fácil. À distância, agora penso, é sempre preciso coragem para, em início de carreira, termos essa capacidade de parar. Isto também me trouxe confusão e inquietude. Eu pensava: porque é que eu não posso ser como quero ser? Porque é que tenho medo do que os outros possam pensar? Mas depois sou confrontada com a crítica. A nossa perspetiva é sonhadora e poética e depois há a realidade, que por vezes é cruel. Sobretudo quando falo de liberdade da exposição do corpo, da sensualidade, da feminilidade – chocou-me muito que as pessoas fossem tão conservadoras, naquela altura, o que me provocou alguma desilusão.

Discutem-se muito os limites do que é ético pedir aos atores nos castings. Ao longo destes anos viveste alguma situação desconfortável?

Eu acho que esse limite tem de ser sempre imposto por ti. Descobre quais são os teus limites, e se te sentires confortável com eles podes fazer o que quiseres, nunca ultrapassá-los independentemente de quem estiver à tua frente. Claro que a pessoa pode ser influenciada, sobretudo se for uma pessoa frágil, é uma questão complexa. Sê fiel aos teus, descobre quais são os teus. É uma forma de proteção, seja em que área for. Mas é complexo, porque há muitas coisas que podem estar envolvidas, como o medo, a pressão ou a ambição. Já me fizeram esta pergunta muitas vezes, o que me levou a refletir muito, mas eu nunca senti diretamente a questão do assédio. Eu também acho que tenho defesas grandes, imponho os meus limites. Esta profissão deixa-nos em lugares de uma enorme vulnerabilidade, que é necessária para as nossas personagens, mas que nos deixa a trabalhar numa linha muito frágil.

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Soraia Chaves. Estatuto de estrela

Aos 40, sentes que estás a perder papéis? Que ainda impera esta tendência para querer sempre as mulheres mais novas para a maioria dos papéis? Ou já existiu uma evolução notável nessa diversidade? Discute-se muito até quando se pode fazer de mãe.

Se formos avaliar todas as obras que existem no Cinema, a maioria dos papéis escritos são para mulheres mais novas. É normal que a idade signifique que os papéis vão diminuindo. Como se as mulheres, a partir de certa idade, não tivessem tanto interesse como têm as vidas das mulheres mais novas. Felizmente, na última década, isso tem vindo a mudar, há histórias incríveis e inspiradoras de mulheres de faixas etárias superiores. Naturalmente, isso faz com que as oportunidades outrora mais reduzidas para as mulheres a partir dos 40 agora aumentem. É visível em Hollywood ou em França, onde assistimos a mulheres a terem papéis ainda mais interessantes do que as mais novas. Talvez tenha a ver com o aparecimento de mais realizadoras no Cinema, mais argumentistas, mais histórias contadas da perspetiva feminina.

Foto: João Paulo

Perguntam-te muito se queres ser mãe? Até que ponto isso pode ser saturante?

Pergunta-se mais às mulheres porque os homens têm o tal maior limite de idade para decidir. É uma questão biológica. A mim não me assusta que me perguntem, porque eu nunca tive muito definida a certeza absoluta de querer ser mãe. No entanto, sei com certeza absoluta que já estou nos 41 e que existe esse limite de tempo – que pode estender-se, naturalmente, com a tecnologia é possível. No entanto, continua a ser uma questão que não me perturba. Eu não tenho uma posição marcada, não tenho a certeza absoluta se quero ser mãe, mas faço questão de não me sentir pressionada pelo que os outros esperam.

Dizias numa entrevista, há uns anos, que uma das coisas mais libertadoras para ti era poderes estar em tua casa, nua, a dançar em frente ao espelho. O que é que te faz sentir bonita?

Às vezes sinto que preciso de me libertar dos meus receios, das minhas angústias, e fazer o exercício de voltar a entrar em contacto comigo mesma. Vivemos numa fase de enorme pressão sobre o que é ou não bonito, através das redes sociais – a ideia do que é a perfeição ou do que deveríamos ou não ser – o que pode trazer ansiedade e insegurança. Também o meu ego é tocado por essa insegurança, por essa expectativa que é criada nesse mundo digital, que é uma montra fictícia, mas o efeito que tem pode ser bem real. Eu sinto-me influenciada por isso de forma negativa. Ser bela é estar confortável na minha pele, sem as expectativas dos outros, sem as pressões. O ideal é sentir-me bem comigo, é aí que aparece a Beleza. Enquanto eu estava a formar a minha personalidade, essas montras eram-nos mostradas de outra forma, mais doseada, havia comparação com outras mulheres, mas não era ao minuto. A compulsão é hoje o problema.

Falando de redes sociais, com o wokismo a ganhar terreno, a tendência do cancelamento, pergunto-te se já sentiste medo de ser cancelada? Ou se já te arrependeste de dizer alguma coisa?

Honestamente, não. A questão do cancelamento dos humoristas teve um peso enorme no que se pode ou não dizer. É perigoso num sentido em que a liberdade pode estar a ser retirada às pessoas, há uma evidência de retrocesso, de repressão. Se pessoalmente sinto esse medo? Não sinto, mas eu sou naturalmente reservada, não exponho as minhas opiniões políticas, por exemplo, publicamente. Existem temas em que não tenho conhecimento suficiente para opinar – não me sinto nesse direito porque sei que muitas pessoas vão ler.

Foto: João Paulo

Isto leva-nos ao tema da apropriação cultural, aos avanços da inteligência artificial, à greve dos argumentistas nos EUA. Como trabalhas os teus guiões? Essa humanização é essencial?

Essa tecnologia vai desumanizar a arte do Cinema ou da Televisão, e isso vai desumanizar-nos, à nossa profissão. Tem de ser travado, que é o que estão a tentar fazer em Hollywood. Eu conheço muitas formas de trabalhar, mas eu gosto de ir ao encontro do que o autor espera, gosto de me adaptar à visão de criadores diferentes. É uma forma muito intuitiva, uma abordagem às personagens sempre mais humanas, e menos técnicas. Procuro o ponto de identificação, compreender a sua perspetiva circunstancial e psicológica. É uma das coisas que mais me fascina na minha profissão: essa busca existencialista e filosófica.

Créditos:

Realização de Joyce Doret

Fotografia de João Paulo

Maquilhagem e Cabelos: Sandra Alves

Assistente de produção: Ana Gonçalves

*Artigo originalmente publicado na revista que celebra os 35º anos da Máxima.

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