Joan Didion, ícone de Cultura, Liberdade e...Moda
O Ano do Pensamento Mágico, o livro em que relata o seu luto pelo marido de toda a vida, tornou-a famosa mas Joan Didion há muito que revolucionara o papel das mulheres na Literatura e no Jornalismo. Morreu esta 5ª feira, aos 87 anos.

A tragédia pessoal tornou-a famosa mas Joan Didion, que morreu esta antevéspera de Natal, aos 87 anos, na sua casa em Manhattan, foi muito mais do que aquela abertura, feroz como uma punhalada do seu livro, O Ano do Pensamento Mágico: "A vida muda rapidamente. A vida muda num instante. Sentas-te para jantar, e a vida, como a conheces, termina." Brilhante, ácida, incapaz de indulgência ou de sentimentalismo fácil até na dissecação de dores próprias e insuportáveis, a escritora e jornalista norte-americana tornou-se há muito um ícone de inteligência, irreverência e até de Moda, cujo impacto, sobretudo junto de outras mulheres, não só resistiu à passagem do tempo, como aumentou à medida que envelhecia.


Nascida em Sacramento, Califórnia, a 5 de Setembro de 1934, formou-se em Inglês na Universidade de Berkeley e cedo se afirmou no Jornalismo, a que deu uma marca pessoal e inovadora, tornando-se um nome essencial do chamado Novo Jornalismo, ao lado de, entre outros, Tom Wolfe e Hunter Thompson. Para a História ficariam famosas as suas reportagens analíticas sobre a conturbada política norte-americana da década de 60, dominada por teorias da conspiração e paranóias várias. Dessa observação nasceriam dois livros, Slouching Towards Bethlehem (1968) e The White Album (1979). Ao longo de décadas, tornar-se-ia um nome recorrente e essencial em revistas e jornais como a New Yorker;New York Review of Books ou a Vogue americana, onde trabalhou durante 10 anos.



Para além das reportagens, artigos e análises publicadas na imprensa, Joan Didion nunca deixou de publicar em livro. Em 2001, lançou Political Fictions, uma coleção de ensaios publicados anteriormente na New York Review of Books e, dois anos depois, um livro de memórias chamado Where I Was From, que explora alguns mitos californianos e a relação da autora com o lugar onde nasceu e com a sua mãe. A sua obra mais conhecida seria, no entanto, O Ano do Pensamento Mágico, publicado em outubro de 2005 nos Estados Unidos, onde mergulhou, sem sombra de autocomiseração, na morte súbita do seu marido, o também escritor e jornalista, John Gregory Dunne, enquanto a filha de ambos, Quintana, estava hospitalizada em estado muito grave. Um mês depois da publicação, a obra seria distinguida na categoria de não ficção com o National Book Award.

Pouco tempo após a publicação desta obra, Quintana morreria também aos 39 anos, levando Joan a escrever o livro Noites Azuis. Em reconhecimento por este legado, em 2013 recebeu o prémio National Medal of Arts, juntamente com outros 24 escritores, académicos, performers e artistas. Ao premiá-la o então presidente dos Estados Unidos, Barack Obama declarou: "Estamos a celebrar estas pessoas não só pelo seu talento, mas por criarem algo realmente novo, como Joan Didion, que com razão ganhou a distinção de uma das escritoras mais celebradas de nossa geração – só estou surpreso com o facto de ela não o ter ganho antes."



A surpresa de Obama era mais do que justificada. Há muito que Joan Didion se tornara um ícone da Cultura norte-americana, como o atesta o sucesso do documentário Joan Didion: The Center Will Not Hold realizado pelo seu sobrinho Griffin Dunne, em 2017, que ainda pode ser visto na plataforma Netflix. Mas o que explica, afinal, o fascínio de Didion em tantos países e realidades diferentes? Antes de mais o desassombro com que entrou num feudo que até aí era quase exclusivamente masculino. Como a própria recordou numa entrevista à The Paris Review: "Quando comecei a escrever — no final dos anos 50, princípio dos 60 — havia uma tradição social associada aos escritores do sexo masculino. Bebiam muito, levavam uma vida boémia. Acumulavam mulheres, guerras, grandes pescarias, Paris, África, nada de segundos atos. Um escritor homem desempenhava um papel no mundo e isso dava-lhe uma espécie de caução para fazer o que lhes apetecesse. Uma mulher escritora não desempenhava qualquer papel em particular." Declarações (e atitudes como esta) tornaram Joan Didion uma referência para as jovens que encaravam a ideia de fazer da escrita o seu destino. Na revista The Atlantic, Caitlin Flanagan escreveria a esse propósito: "As mulheres que a encontravam na sua juventude recebiam uma certa ideia de ser mulher e escritora que mais ninguém lhes podia dar. Ela era o nosso Hunter Thompson, e o livro Slouching Towards Bethlehem era o nosso Fear and Loathing in Las Vegas. Ele deu aos rapazes sacanas e shots de tequilla; ela deu-nos dias sossegados em Malibu e flores no cabelo."


Com o mesmo desassombro, Joan Didion nunca pediu desculpa pela atenção profissional e pessoal que dava à Moda, um tema pouco considerado pelos árbitros do cânone literário. Ao longo dos dez anos em que trabalhou na edição norte-americana da Vogue, tratou o tema com o mesmo rigor, exigência e beleza com que abordara temas políticos ou sociais. Frisava sempre que "estilo é carácter" e que nada impedia uma mulher inteligente de gostar de Moda e de cobrir com competência a guerra do Vietname. Com um estilo minimalista chic muito americano, Didion tornar-se-ia um ícone de Moda já depois dos 80 anos, quando a Céline a tornou um dos rostos da sua campanha de 2015, fotografando-a com uns óculos escuros XL que Jackie Kennedy não teria desdenhado.

Com um espírito crítico afiado como um estilete, não tinha uma boa relação com as feministas das décadas de 60 e 70, a quem dedicou um ensaio particularmente duro - The Women's Movement - publicado em 1972. Mas ninguém duvida que a vida e obra desta mulher, a quem a doença de Parkinson deu o golpe final, fez mais por todas nós do que muitos textos panfletários.


