
A máxima de Martin Luther King, "I have a dream", podia ser aumentada para "eu tenho um sonho, o sonho é ter". Nas últimas décadas passámos de cidadãos a consumidores e de consumidores a hiperconsumidores. Embora pareça uma progressão, verificamos que se relaciona directamente com a crise económica e de valores. Se a crise tem caminhado ao longo dos tempos, o consumo parece avançar a galope. Talvez seja uma questão do chamado equilíbrio de mercado. O número de ricos, obscenamente ricos, face ao crescimento dos que vivem miseravelmente tem aumentado em consonância com o mercado de luxo, que é um target em expansão. Parece que em substituição dos sonhos colectivos, das utopias (o amor, a liberdade, entre outros), se compram, por exemplo, jóias Cartier. Como deixámos de ter utopias, o sonho é ter? As grandes marcas souberam adaptar-se ao novo mercado de luxo, que passa por uma maior diversificação de produtos consoante a disponibilidade das várias carteiras e esta é uma das mais interessantes facetas do chamado luxo contemporâneo. Por exemplo, marcas como a H&M (acessíveis a todos os bolsos) fazem por vezes parcerias com designers de alta-costura e criam peças a que podemo chamar pronto-a-vestir de luxo.
Segundo o filósofo francês Gilles Lipovetsky, trata-se de um fenómeno que acaba por ser, na verdadeira acepção da palavra luxo, um paradoxo: a sua democratização. Cada vez mais, o luxo é visto como uma coisa que toda a gente devia ter. Esta situação marca uma grande diferença em relação ao passado em que o luxo só cabia aos privilegiados. É como se toda a gente quisesse ter direito não só a desejar, mas a obter o objecto do seu desejo. Vivemos numa era hedonista, individualista, hiperconsumista, e as pessoas querem ter acesso às coisas raras. Talvez sempre o tenham querido mas não passava de um desejo por consumar. Ainda segundo o filósofo francês, sem o modelo religioso da vida pós-morte as pessoas querem aproveitar as coisas belas enquanto estão vivas. No fundo estamos perante a lógica epicurista aplicada às aquisições de luxo: aproveita o dia e compra. Segundo Lipovetsky, há uma dimensão emocional no consumo de luxo, as pessoas não procuram ser reconhecidas nem exibir apenas um estatuto social; querem, sobretudo, obter um certo nível de satisfação. Falamos então de um novo luxo, aquilo que se designa somente pela procura do prazer e que se liga a uma certa qualidade de vida. Associamo-lo à raridade das grandes emoções. Todavia, o luxo é permanente na vida humana. Sem luxo será que teriam sido edificados no passado os templos, as catedrais ou os castelos? Há uma tendência natural da humanidade para a construção e aquisição do belo (e para o horror e o lixo também).

O consumo de luxo sempre teve uma relação emocional com o homem e com as grandes instituições sociais. Vejamos o caso da ostentação dos templos (das várias religiões): nunca na sociedade o luxo público se apresenta tão ostensivo como dentro destes edifícios. A grande diferença é que o luxo privado passou claramente a ser mais forte na sociedade contemporânea – tornou-se mais chocante observá-lo a título público ou nível privado? Talvez a nível público. Porque lá está, mais uma vez, passámos a associar o luxo à lógica individualista do prazer, e é socialmente aceitável que todos tenham esse direito. É neste sentido que os mercados trabalham, para uma espécie de comunismo capitalista – novo paradoxo. Ao contrário do que nos querem fazer crer muitos movimentos anticonsumo, o luxo não está em crise. Podemos, aliás, verificá-lo pelo sucesso das grandes marcas. Se, por exemplo, a Chanel abria a primeira loja em 1910 no prestigioso número 21 da Rue Cambon, em Paris, um século depois existem centenas de lojas da marca, espalhadas pelo mundo inteiro, além dos pontos de venda e a loja online. E a mesma coisa se aplica à Hermès ou à Dior, a quase todas as grandes marcas de luxo na moda. Se não devíamos fazer uma leitura moralista acerca do mercado de luxo, é inevitável que o façamos. Não deixa de ser chocante a quantidade de desperdício e despesa produzidos por este mercado. Contudo, e paradoxalmente, não conseguimos deixar de admirar o que de excepcional é produzido com o intuito de ser apenas belo.
*A cronista escreve de acordo com o Acordo Ortográfico de 1990.

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