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Luana Cunha Ferreira, psicóloga: "Uma traição pode resultar num trauma, do horror da descoberta ao lixo tóxico que se gera depois"

Uma conversa franca sobre as razões que mais levam os casais à terapia, da traição à gestão de tarefas, mas também sobre a importância das práticas de psicologia e terapia atualmente, e como estas não estão acessíveis a toda a gente.

Luana Cunha Ferreira, psicóloga e terapeuta familiar, individual e de casal.
Luana Cunha Ferreira, psicóloga e terapeuta familiar, individual e de casal. Foto: D.R
24 de agosto de 2023 Ana Filipa Damião

Ciúmes, infidelidade, desacordos constantes... Podiamos estar a falar do plot de uma série dos anos 90 ou 2000, estilo Sexo e a Cidade ou Donas de Casas Desesperadas, mas não estamos. Referimo-nos, sim, e numa nota mais séria, ao novo livro de Luana Cunha Ferreira, um mergulho de cabeça nas temáticas contemporâneas que passam frequentemente pelas suas consultas de terapia de casal (como a desigualdade de género, o racismo, a parentalidade, as doenças mentais, entre outras). Ainda que as personagens que habitam as páginas de Sete Casais em Terapia (Ego Editora) sejam fictícias, os seus problemas são bem reais. 

Psicóloga clínica, terapeuta familiar, individual e de casal há mais de dez anos e professora na Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa, Luana Cunha Ferreira é doutorada em Psicologia Clínica e da Família pelas Universidades de Lisboa e Coimbra e colaborou com a psicoterapeuta de renome Esther Perel, cuja Ted Talk sobre infidelidade conta com mais de 9 milhões de visualizações. 

Luana Cunha Ferreira, psicóloga clínica, terapeuta familiar, individual e de casal há mais de dez anos e professora na Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa.
Luana Cunha Ferreira, psicóloga clínica, terapeuta familiar, individual e de casal há mais de dez anos e professora na Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa. Foto: D.R
Sempre quis enveredar pelo caminho da psicologia? Como foi parar à terapia de casal?

Na verdade foi um caminho cheio de meandros. Comecei pela medicina, fui "pre-med" na Universidade do Wisconsin. Nos Estados Unidos, antes de entrar para Medicina, Direito ou qualquer outra especialização, é suposto fazermos uma graduação (major) de 4 anos em várias áreas simultaneamente. Fui uma privilegiada e tive direito a aulas de retórica das revoluções americanas, arte japonesa, química orgânica, poesia islâmica, cálculo avançado, gestão de serviços de saúde, entre muitas outras. Estava a completar o major de biologia, e numa dessas incursões, neste caso pelo departamento de psicologia, descobri a primatologia, o estudo científico de primatas, onde se inclui naturalmente esta espécie estranhíssima que somos nós, os humanos. Aí, entrei em contacto com conceitos que me começaram a dizer muito: ecologia, comunidade, adaptação... e percebi que o estudo do comportamento e sobretudo das relações entre primatas era o que me atraía mais.

Voltei para Portugal ao fim de três anos e ingressei na Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa, completamente decidida a estudar primatas, fosse a parentalidade cooperativa dos saguis ou a sexualidade gregária dos bonobos. Mas no terceiro ano conheci a psicologia sistémica e a terapia familiar e de casal e foi como se finalmente estivesse a ver o mundo pelas lentes certas, fosse em que disciplina fosse, já que a teoria sistémica é na sua essência interdisciplinar, como uma base epistemológica. Percebi que a minha praia era mesmo as relações familiares, íntimas e comunitárias dos humanos e a forma como todas as relações nos estruturam e definem.

Em Sete Casais em Terapia, relata o acompanhamento de sete casais fictícios e das questões que os levam ao consultório. Porque sentiu necessidade de escrever este livro?

O livro que vou escrever por necessidade ainda não está escrito. Este foi mesmo por vontade: vontade de mostrar o que se passa dentro do consultórios, vontade de mostrar o quão político é e deve ser o processo psicoterapêutico, de desmistificar palavrões associados ao politicamente correto, mas que de facto são só conceitos sobre como viver numa sociedade melhor, e, por fim, vontade de mostrar a diversidade de percursos e características pessoais que podem passar pelo consultório e mostrar como não há receitas, conselhos ou indicações gerais: cada casal é mesmo um planeta muito próprio que pode e deve poder fazer as suas próprias regras, com os limites inerentes ao contexto e cultura onde se desenvolve. 

"Sete Casais em Terapia", de Luana Cunha Ferreira (Ego Editora). Foto: D.R

Ainda existe estigma à volta da terapia de casal?

Noto algumas diferenças positivas nos últimos anos, particularmente depois da pandemia da Covid-19, mas, como em todas as questões de saúde mental, o estigma ainda é elevado. Além disso, uma sociedade capitalista convence-nos que devemos depender apenas de nós mesmos, que o importante é competir, ganhar, não dar parte fraca, e quanto menos fragilidades, emoções e vulnerabilidades mostrarmos aos outros, melhor. Ora, isso é algo incompatível com uma prática sistémica, já que os membros do casal, a família, a rede social e a comunidade impactam-se mutuamente e estão associados a questões estruturais (sexismo, racismo, idadismo, capacitismo e desigualdade social) que impactam o bem-estar e a saúde mental. Ninguém enlouquece sozinho e não é ideal contarmos só connosco. Mas sim, está a mudar e isso é muito bom.

De todos os temas, qual é o que encontra mais nas suas consultas? E que tipos de casal?

Há temas-chave que se vão cruzando: questões relativas à intimidade emocional (confiança, autenticidade, partilha, entre outros), satisfação sexual e questões de desejo sexual, infidelidades, problemas de comunicação e dificuldade em resolver problemas de forma sistemática, desigualdade de investimento doméstico ou parental, pressão laboral e financeira, adaptação à parentalidade, lutos, adaptação a doenças crónicas e muitas questões mais específicas de saúde mental, tal como a depressão, burnout ou perturbações de ansiedade. Não acredito muito em "tipos" de casal, mas recebemos casais mais novos e mais velhos, casais em sérias dificuldades financeiras e casais que nem olham para o valor da consulta, pessoas cis e trans, casais do mesmo género e de género diferente, monogâmicos e não monogâmicos, de várias nacionalidades e configurações étnicas e raciais.

Dois dos temas trabalhados no livro referem-se ao desequilíbrio que ainda existe na gestão de tarefas domésticas entre dois parceiros, e ao aumento da desigualdade de género na parentalidade. São tópicos recorrentes nas suas sessões, ou já nota uma mudança de mentalidade?

Já vi centenas de casais e sabe que, relativamente a casais de género diferente, só me lembro de dois (2!) onde este tema da desigualdade de género no trabalho reprodutivo não estivesse presente. Este último refere-se às tarefas domésticas e familiares, ou seja, todo o trabalho de cuidar do que precisa de ser cuidado para que o trabalho pago possa acontecer. Há muitas mudanças, claro que sim e ainda bem. Os homens estão a desconstruir alguns dos padrões da masculinidade tóxica que os afastam de lugares de cuidado, estão a ser forçados a isso e percebem os benefícios imediatos de se permitirem um vivenciar mais arejado da prisão emocional em que muitos foram criados, e que muitas vezes é mantida porque muitos homens adultos são incapazes (embora desejosos) de manter relações de intimidade emocional com os seus amigos.

Nesta sociedade, a mesa ainda está inclinada e se elas, já que falamos aqui especificamente de casais de género diferente, pararem de fazer força para equilibrar as tarefas, se aliviam a pressão, volta tudo atrás muito rapidamente. É raro serem eles a alertar para o desequilíbrio, são quase sempre elas, pois são elas que estão absolutamente sobrecarregadas por este tipo de trabalho.

"Uma sociedade capitalista convence-nos que devemos depender apenas de nós mesmos, que o importante é competir, ganhar." Foto: D.R

O que lhe dizem as mulheres sobre isto? 

Embora seja indiscutível as complexidades logísticas e a considerável responsabilidade de criar um filho sem estar numa configuração convencional de casal, um número crescente de mulheres (só ouvi mulheres expressarem isto, o que, não sendo prova, é teoria) afirmam que a vida como mãe "solteira" é surpreendentemente mais descomplicada em comparação com a vida num casal com um homem.

Cada vez mais ouço mulheres que percebem que a famosa ajuda que obtinham dos parceiros não era tão essencial quando contrastada com o esforço adicional ligado ao trabalho reprodutivo resultante de coabitar com um homem. E a acrescentar à desigualdade presente na distribuição das tarefas familiares e domésticas, temos ainda o também típico desequilíbrio no trabalho emocional da relação. Quem sinaliza insatisfação? Quem quer conversar sobre os problemas? Que quer inovar? Quem faz reparações na relação? Quem indica caminhos possíveis? Quem não cede ao equilíbrio precários dos silêncios mornos? A tendência é inegável. 

Só os casais com questões a resolver devem fazer terapia de casal? Ou podem fazê-lo como uma forma de se conhecerem melhor enquanto equipa?

Não sei se gosto de definir um casal como equipa, creio que isso pode ser uma parte importante de alguns casais, em algumas dimensões, como a parentalidade ou os projetos familiares, mas duvido que seja boa ideia fazer disso a questão central. A terapia de casal ou familiar de índole preventiva é sem dúvida uma boa ideia, se houver já questões concretas a trabalhar, algumas dificuldades que já se anteveem que possam ser um problema. Mas não sou defensora da ideia de que "toda a gente devia fazer terapia". É um recurso especializado, caro a vários níveis e praticamente inexistente no SNS - o que é um absurdo dado o seu potencial protetor da saúde mental e física e do ajustamento individual. Existem muitas outras sedes onde podemos encontrar ajuda, conforto e soluções, nomeadamente na comunidade em que nos inserimos.

"Já vi centenas de casais e sabe que, relativamente a casais de género diferente, só me lembro de dois (2!) onde este tema da desigualdade de género no trabalho reprodutivo não estivesse presente." Foto: D.R

Refere a forma de discutir a certo ponto na obra. Há formas corretas e erradas de se discutir? Devemos evitar uma discussão?

Evitar discussões tende a não ser boa política, mas é boa prática tentar, sempre, mantê-las relativamente organizadas em termos de temática (não andar a mudar de assunto ou a trazer mil estórias do passado), manter uma escuta empática e validante, assumir como paradigma que há sempre no mínimo duas perspetivas e que muitas vezes estas podem não coincidir totalmente e, sobretudo, ter muito cuidado com o nível de ativação emocional. Alguma zanga ou angústia podem ser essenciais para aceder a lugares mais expostos e vulneráveis, prenhes de soluções e descobertas, mas a partir de certos níveis de ativação podemos ficar inundados, dormentes, descuidados, aflitos e com isso fazer ou dizer coisas que podem provocar sérias feridas emocionais na relação. Intervalos ou time-outs e uma pequena lista de "regras para discutir" devem estar presentes na caixa de ferramentas de cada relação. 

O tema da autonomia na intimidade e a masturbação é outro que ainda é muito pouco abertamente falado. Com base na sua experiência, diria que Portugal ainda é um país conservador no que toca às experiências sexuais a solo? É algo falado com à-vontade entre casais? 

Diria que há uma mudança muito positiva. Cada vez mais os casais e outras configurações relacionais estão recetivos a discutir abertamente os seus desejos sexuais numa ótica de partilha, mas também de autonomia corporal. A crescente visibilidade dos movimentos feministas, da visibilidade das pessoas LGBTQIA+ e queer, a quem devemos muito a vibe sex-positive dos dias de hoje e também o aumento da discussão sobre saúde mental, têm contribuído para um ambiente onde as pessoas se sentem mais confortáveis em explorar e expressar a sua sexualidade de forma autêntica, assertiva e empoderada, com menos culpa e vergonha. Ainda assim, é importante reconhecer que existem diferenças individuais e culturais. Algumas pessoas têm mais dificuldade em discutir esses aspetos abertamente, especialmente se vêm de contextos mais tradicionais. No entanto, a tendência geral está claramente a mudar em direção a uma mentalidade mais aberta e inclusiva. 
 
O casal que lidou com o ato de traição no livro acaba por se separar, não há volta a dar. É isto que acontece na maior parte dos casais que tentam terapia devido a uma traição? Ou ainda há esperança?

Há esperança, mas não é garantido. Já acompanhei vários casais que conseguiram ultrapassar infidelidades, integrando-as numa narrativa partilhada que faz sentido aos dois, e é também isso que os estudos da área nos indicam, ou seja, a infidelidade é indicação para terapia de casal e tem bom prognóstico, mas isto não quer dizer que funcione sempre ou para toda a gente, e por vezes não há mesmo volta a dar. Uma traição tende a resultar num trauma, desde o horror da descoberta, ao "lixo tóxico" que se tende a gerar nos tempos a seguir, à influência direta na autoimagem e autoestima e até à noção de identidade do casal e confiança. Em suma, não recomendo.

"Insisto que não pode haver uma prática competente de intervenção em psicologia que não seja também ela politizada." Foto: D.R

Escreveu este livro com uma linguagem inclusiva, com expressões como "parceires". O que levou a esta decisão? 

Tenho uma visão muito clara em relação ao politicamente correto: é basicamente fazer as coisas de forma a minimizar o sofrimento que se causa aos outros, o que em geral não me parece um péssimo modus operandi, especialmente quando falamos de pessoas e comunidades que diariamente lidam com opressão e estigma. Na prática da psicologia sistémica, a forma como utilizamos a linguagem é de extrema importância, dentro e fora do consultório. O paradigma construcionista diz-nos precisamente que a forma como ilustramos a realidade através da linguagem influencia a forma como experienciamos essa mesma realidade. E, não, não quer dizer que se pusermos as lentes cor-de-rosa vai ficar tudo bem, mas se eu não "desbinarizar" a minha linguagem estou a comprometer a forma como penso sobre o binarismo de género, tal como se não descolonizar a minha linguagem estou a promover o racismo e o colonialismo, ainda que de forma implícita.

Não faço tudo certo a este nível e erro constantemente, mas procuro refletir sobre o que posso fazer para ser um agente de mudança. Por exemplo, se recebo pessoas não binárias na minha prática clínica, não me faz sentido apresentar-lhe um questionário onde só tenha escolha entre dois géneros. Se estou a acompanhar uma família afrodescendente, estou ciente, tanto quanto me é possível, do meu privilégio de mulher branca. Por isso, ao escrever este livro fiz questão que a linguagem fosse neutra, especialmente nos capítulos com pessoa trans ou não-bináries

Como vê a evolução dos desafios e dinâmicas entre casais hoje em dia? Quais têm sido as maiores mudanças? 

A que mais que preocupa é a questão do trabalho e da desigualdade. A partir do meu consultório, mas também de outras "lentes" que vou tendo, vejo que os casais enfrentam um conjunto complexo de desafios, muitos estão intrinsecamente ligados às dinâmicas do sistema capitalista e consequentes desigualdades sociais. Preocupa-me especialmente a crescente pressão e precariedade do trabalho, o que torna o impacto deste na vida pessoal e familiar absolutamente avassalador e muitas vezes destrutivo, deixando pouco tempo, energia e capacidade para o cuidado mútuo, a entrega, a criatividade, a curiosidade, o mais básico dos autocuidados e o fortalecimento dos vínculos.

A baixa valorização do trabalho contrasta com o aumento do custo de vida, particularmente da habitação, e cada vez mais dificultando o acesso generalizado a um serviço nacional de saúde de qualidade, especialmente no que toca à saúde mental, o que por si só também resulta em dificuldades financeiras e stress emocional para muitos casais e famílias, com foco nos que pertencem a populações mais vulneráveis e expostas à pobreza, a minorias e grupos marginalizados. Essas questões, que têm um carácter sistémico e estrutural, geram tensões nas relações, desviando quase totalmente o foco da conexão emocional para as preocupações financeiras e a luta por uma vida digna. Neste contexto, os casais são desafiados a encontrar maneiras de resistir coletivamente às injustiças do sistema e a redefinir o valor do tempo dedicado ao trabalho e à família. Por isso insisto que não pode haver uma prática competente de intervenção em psicologia que não seja também ela politizada.

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