“A saúde mental pode medir-se, tal como pode medir-se a dor”
Quando é que a ansiedade que sentimos deixa de ser normal para passar a ser patológica? Em que momento os sintomas silenciados se tornam preocupantes? Na recém-inaugurada Clínica de Neurociências e Saúde Mental do Hospital da Cruz Vermelha, avaliação e diagnóstico cruzam-se num método inovador que traz às ciências mentais uma nova (e necessária) objetividade.

Em 2019, de acordo com números avançados pela Organização Mundial de Saúde (OMS), eram mais de mil milhões as pessoas que viviam com algum tipo de perturbação mental. Depois, já sabemos, chegou a pandemia e o cenário agravou-se, com as taxas de depressão e de ansiedade a subirem cerca de 25%, apenas durante o primeiro ano. Hoje, fala-se mais de saúde mental, o estigma parece ser menor do que em décadas passadas, mas os números não param de crescer, ao contrário do investimento público na área - apenas 2% dos orçamentos nacionais da saúde lhe são destinados (dados da OMS).
Inaugurada em fevereiro deste ano, a Clínica de Neurociências e Saúde Mental do Hospital da Cruz Vermelha surge como uma resposta a esta necessidade crescente. Coordenada pelo psiquiatra António Lains (AL) e com uma equipa interdisciplinar, na qual se inclui a psicóloga Roberta Frontini (RF), apresenta-se como um espaço diferenciado e de atendimento (hiper)individualizado, onde tudo começa com um diagnóstico rigoroso, em função do qual é definido um objetivo terapêutico. "Durante muito tempo, achou-se que a saúde mental não era possível de medir e essa subjetividade levou-nos a uma certa inércia nos tratamentos. Isso é uma ilusão. A saúde mental pode medir-se, tal como pode medir-se a dor. Essa abordagem com medições é algo que aqui estamos a fazer, a chamada visão quantitativa da pedagogia", esclarece António Lains. A ideia – contrária ao que tantas vezes se julga ser um processo desta natureza – não é prolongar o processo indefinidamente, mas torná-lo eficiente num curto espaço de tempo.

Depois da pandemia fomos ouvindo falar mais sobre saúde mental. Por um lado, o estigma parece menor, por outro, os números de perturbações não param de aumentar. Atravessamos um momento crítico?

(AL) Sim, e por muitas razões. Há uma maior prevalência das perturbações e não sabemos exatamente a que se deve esse aumento. Obviamente que o ato de se diagnosticar mais contribui para uma maior expressão destas doenças, mas não explica por si só. A depressão é a doença, em termos de anos de vida com qualidade perdidos, que tem um maior peso a nível mundial. A nível científico também vivemos um momento interessante: há cerca de 20 anos que não tínhamos formas diferentes de abordar determinados tratamentos e, agora, começam a aparecer outras possibilidades. Temos medicamentos bons e eficazes, mas que não funcionam com cerca de um terço das pessoas, que revelam resistência ao tratamento. Agora, há uma série de novas opções terapêuticas que estão a surgir, uma delas já aprovada pelo Infarmed (mas não comparticipada), que reverte os sintomas depressivos em cerca de 48 horas. Também os psicadélicos que, nos anos 1960, representavam uma promessa, estão a ser resgatados e testados no sentido de perceber que resultados podem ter em certos contextos, com bons resultados.
(RF) Importa também lembrar uma certa tendência geral de pensarmos que a necessidade de agir surge no momento de crise. Isso é verdade, mas nas alturas de crise estamos sobretudo focados na resolução dos problemas. Só passado algum tempo conseguimos ver as consequências que eles trouxeram. Creio que ainda estamos a perceber quais foram as consequências da covid e do isolamento. Com base na minha prática, posso dizer que há cada vez mais pessoas a pedir ajuda – inclusivamente crianças e adolescentes que têm, eles próprios, a iniciativa de vir.
(AL) Esse aumento da prevalência de perturbações mentais em adolescentes era algo que já estava em evidência desde 2012, de uma forma vertiginosa, e só ganhou expressão com a pandemia. É mais ou menos desse período, um estudo que revelava que as mortes por suicídio, em Portugal, já superavam as mortes por acidente de automóvel. No entanto, consideramos os segundos um problema de saúde pública e os primeiros não.


A ansiedade, com o estilo de vida atual, é uma inevitabilidade?
(AL) Como profissionais de saúde, temos a responsabilidade de distinguir uma variação da normalidade de uma patologia. Em saúde mental, a quantidade é importante. Qualquer pessoa pode ter ansiedade, ela faz parte, cumpre uma função. Mas quando os sintomas de ansiedade se tornam incapacitantes estamos na presença de uma perturbação. Mesmo quando a ansiedade é causada por fatores externos, e ainda que esses fatores justifiquem a ansiedade, quando a pessoa se sente incapaz de resolver os problemas, entra num ciclo vicioso.
(RF) As pessoas chegam muitas vezes à consulta pedindo que lhes retiremos a ansiedade. Isso seria extremamente perigoso, porque a ansiedade ajuda-nos a sobreviver numa série de situações. Aquilo que fazemos é ajudar a geri-la.
(AL) É importante distinguir as intervenções para a saúde das intervenções na doença. Nós não prescrevemos medicação para potenciar a saúde, mas para uma doença incapacitante, isso faz sentido.

Tudo começa com o diagnóstico. E, no caso específico da Clínica de Neurociências e Saúde Mental do Hospital da Cruz Vermelha, com uma avaliação. Trata-se de um passo essencial?
(AL) Não é essencial, mas ajuda a fazer um diagnóstico mais fino.
(RF) E a entender a evolução. Ajuda a quantificar algumas questões para que, ao longo do tratamento, possamos ir avaliando em que áreas precisamos de trabalhar mais e, essencialmente, se estamos a avançar no caminho certo. Só por si não funcionaria, precisa de ser interpretado. Em muitos casos, só um clínico que conhece a história da pessoa consegue compreender determinados resultados.
(AL) Funciona um pouco como as análises. Têm de ser integradas no contexto clínico da pessoa.


Que teste é esse?
(AL) Aquilo que fizemos foi uma compilação dos testes que consideramos mais relevantes e que permitem fazer uma avaliação transversal que contempla sintomas de ansiedade, de depressão, perturbações do sono, de alimentação, consumos, memória e concentração, medicação e seus efeitos. Por outro lado, há perguntas que resultam melhor num questionário, como por exemplo se a pessoa já teve algum episódio traumático. É mais fácil escrever que sim, do que dizê-lo. A pessoa pode querer desenvolver esse assunto, mas, mesmo que não o faça, sabemos que ele existe e pode ser relevante.
(RF) Muitas vezes precisamos de várias consultas para conhecer as pessoas e só chegamos a determinadas questões depois de muita conversa. Com estes testes, a cujos resultados temos um acesso quase imediato, conseguimos analisar desde logo algumas questões que eventualmente só surgiriam mais tarde.

(AL) Este tipo de intervenção está muito validado. Há um ensaio clínico que demonstra que, só pelo facto de os médicos receberem o feedback destes questionários, a taxa de remissão é do dobro e o tempo de tratamento reduz para metade. Há uma eficácia muito grande. O facto de trabalharmos em equipa e de termos desenvolvido um software que faz a leitura dos resultados ajudou a simplificar muito o processo.
A clínica tem uma equipa interdisciplinar: a psiquiatria, a psicologia, a neurologia e a neuropsicologia. De que forma é que estes esforços se articulam?
(AL) A maior parte dos utentes beneficia se houver um tratamento conjunto.
(RF) Toda a investigação diz que os tratamentos serão mais eficazes a longo prazo se houver uma combinação entre psicoterapia e medicação (se esta for necessária). Há quem manifeste uma grande resistência à medicação (eventualmente por ter havido uma medicação errada no passado) e quem chegue à procura de uma pílula mágica que lhes resolva o problema. Ir a uma consulta de psiquiatria não implica tomar medicação.

(AL) E a medicação não serve para aplanar a pessoa, mas sim para que ela volte a ser como era. Uma pessoa não é ela própria quando está em estado de ansiedade, quando não dorme, quando responde mal aos outros. O objetivo da medicação é ajudar a limpar essa nuvem e a recuperar a funcionalidade. Houve e ainda há más práticas de medicação, mas os antidepressivos, ao contrário do que se pensa, não causam sonolência nem alterações de memória e não são aditivos.
Há uma maior prevalência da depressão entre mulheres? Porquê?
(AL) Não há uma razão única. Na sua origem estará também a desigualdade que as mulheres sofrem na sociedade, acentuada pela pandemia – isso viu-se, por exemplo, na divisão de papéis. Todas estas pressões acumulam (...) É importante ter algum espírito crítico, até em relação àquilo que se aprende nas universidades sobre a apresentação da psicopatologia nas mulheres. Existe uma narrativa global de que as mulheres são mais fracas e pedem ajuda com mais facilidade do que os homens, naturalmente mais fortes. Isto está completamente errado. A verdade é que as mulheres são submetidas a maiores pressões e as desigualdades económicas são um fator de risco para a saúde mental.
Elas tomam mais antidepressivos?

(AL) Sim, mas isso será mais um sintoma do que um problema. Há uma enorme prevalência de perturbações mentais leves a moderadas que beneficiaria de psicoterapia, mas não existe essa resposta porque a maior parte dos subsistemas de saúde não comparticipa ou fá-lo de forma insuficiente e o SNS não dá resposta a nível de psicoterapia. Não havendo a possibilidade de referenciar a pessoa para esse recurso, tem de se optar entre a medicação (que é segura e vai atuar) ou deixar a pessoa em sofrimento, podendo haver um agravamento dos sintomas. A grande maioria dos médicos que prescrevem antidepressivos e ansiolíticos são médicos de atenção primária, médicos de família que têm de gerir a farmacologia da saúde mental como a da diabetes ou de outras doenças. É normal que a qualidade das intervenções não seja tão boa. O nosso dever é dar informação, mas nem sempre há tempo para isso. Por outro lado, gostava de chamar a atenção para o estigma que persiste. Fala-se muito do consumo de antidepressivos ou de ansiolíticos como se fosse um bem de consumo. Isso não acontece relativamente a outro tipo de medicamentos porque há a ideia implícita de que os problemas de saúde mental são uma decisão da pessoa.
Como se um problema de saúde mental fosse resultado de uma incapacidade, de uma fraqueza ou de uma falha pessoal…
(AL) Diria que há questão filosófica mais profunda, que tem a ver com a ideia de que este órgão não falha ou que pode ser controlado. O cérebro é o órgão mais complexo que temos. Quando temos uma doença nos rins, por exemplo, não nos questionamos sobre aquilo que fizemos de mal ou de que formas podemos evitar a medicação. Com o cérebro é diferente.
(RF) As pessoas vêm muito à procura do porquê e nem sempre seremos capazes de dar essa resposta. O mais importante não é o porquê, mas resolver as dificuldades de funcionamento. É importante olhar para a saúde física e para a saúde mental e perceber que a abordagem não é assim tão diferente.

O tempo também pode ser um fator importante. Há, da parte da generalidade das pessoas, uma urgência num diagnóstico, numa cura?
(AL) Se a pessoa não tivesse de estar funcional, se tivesse dinheiro e não precisasse de trabalhar ou de cuidar dos filhos, talvez não tivesse essa urgência. Temos de ter empatia para compreender isso. Não estamos a falar de querer estar mais em saúde, mas de tratar uma patologia. E quem é que não se quer ver livre da doença o mais depressa possível?
(RF) Na psicologia há muito essa ideia de que vamos entrar num processo terapêutico demorado, que vai consumir muito tempo e energia. Se calhar numa fase inicial teremos de ser mais incisivos, mas trabalhamos para chegar ao objetivo terapêutico. Nesse momento, o processo está encerrado.
É possível identificar os principais sinais de alerta?
(RF) Não é preciso passar por uma experiência traumática para precisar de um acompanhamento psicológico. Basta que a pessoa não se reconheça como era: não se concentre tão bem, não consiga tomar decisões, cometer erros que não cometia antes, não ter capacidade para tirar prazer das coisas. Antes, achava-se que quem sorria não podia estar deprimido ou que obrigatoriamente perdia o apetite. Não é necessariamente assim. Os critérios de diagnóstico foram evoluindo. A pessoa tem de perceber se há algo que a esteja a limitar e procurar ajuda. A nossa função é diagnosticar. E seremos os primeiros a dizer-lhe que não precisa de algum tratamento se o caso for esse.
(AL) Quando vamos ao dermatologista mostrar um sinal, não estamos à espera que nos diga que temos cancro de pele, mas queremos um diagnóstico que nos tranquilize. O nosso papel aqui também é esse.

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