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Elliot Page, ator: "É realmente um sentimento maravilhoso quando consegues aceitar-te plenamente." 

O livro de memórias Pageboy relata a longa jornada de Elliot Page até se assumir como homem trans. Conheceu o sucesso planetário com o filme Juno descobrindo uma Hollywood carregada de preconceitos e agressões. Conversámos com o ator depois de ler a sua autobiografia.

Foto: Catherine Opie
20 de julho de 2023 Tiago Manaia

Há um compasso de espera à frente do computador. Estamos numa sala virtual da aplicação Zoom, uma assessora internacional deverá carregar num botão a qualquer momento dando assim início à nossa conversa com Elliot Page. O canadiano fala com outra jornalista antes de aparecer no nosso ecrã. Nesta espera, de uma entrevista que será cronometrada, refletimos sobre a vida do ator de 36 anos, que representa desde os dez. 

48 horas antes, como a possibilidade de lhe fazer algumas perguntas foi confirmada, precipitamos a leitura do seu livro Pageboy. Ficámos com a sua voz na cabeça, dormimos poucas horas para o conseguir ler até ao fim.  

"Pageboy" livro de memórias lançado em Junho pela Vogais – Penguin Livros. Foto: Penguin

São quase 300 páginas de uma escrita sóbria, factual e fragmentada. Essa fragmentação surge de um relato feito com pudor que aos poucos se liberta – na libertação há a poesia de uma vida que se mete a nu. Page procura a verdade que vai além do preconceito do olhar exterior, um olhar que muitas vezes se verbalizou na sua vida de ator mundialmente conhecido. No trabalho, na imprensa, na vida quotidiana com familiares, todos pareciam ter a certeza de como deveria comportar-se. Pageboy relata um mundo de sonhos alimentado pela maldade, Hollywood é grotesca e hostil, regida pela norma que afasta a diferença.

Há um longo percurso onde a inocência de Page é abalada, a evocação das suas brincadeiras infantis em que, na sua cabeça, consegue transformar um beliche numa montanha, contrastam com os agentes e produtores que tentam sexualizar e tornar mais feminina a sua presença nos média. A sua nomeação para um Óscar, com a interpretação de Juno, faz com que Page conheça outro tipo de pressão, as revistas vasculham a sua vida, querem saber se dorme com homens ou mulheres. Page esconde-se, leva a namorada para rodagens, simulam ser sua assistente. Escreve sobre filmar nessa altura, "outra hipótese de me perder num mundo de mentira que me parecia mais real que o meu." Pageboy é um livro sobre a banalização da homofobia num meio onde se esperaria outro tipo de aceitação. É também um relato sobre o assédio que sofrem as mulheres em Hollywood.

Em 2014, o discurso em que Page faz o seu coming out em público, numa conferência sobre direitos humanos, tornou-se viral. No livro, nas palavras que escreve, vivemos a dificuldade que foi dar tal passo, entre soluços de alívio. "Pareces tão diferente" dizia-lhe então o produtor de X-Men Dias de um Futuro Esquecido, filme que Page filmava na altura, "eu tinha deixado um saco de tijolos para trás", escreve. 

Page procura a verdade que vai além do preconceito do olhar exterior.
Page procura a verdade que vai além do preconceito do olhar exterior. Foto: Reuters

Um ator célebre vai dizer-lhe dias depois numa festa: "vou foder-te para que percebas que não és gay (...)". É uma estrela mundial, o seu nome nunca será revelado. Desde o lançamento de Pageboy que a internet procura saber o nome de tal agressor. São fortes os momentos em que o livro nos toma como testemunhas de uma época.

Nos relatos de Page envolvendo momentos seus em público (passadeiras vermelhas ou célebres sessões fotográficas), percebemos que a sua linguagem corporal há muito denunciava um mau estar. Page sempre se sentiu masculino, depois de se assumir como gay irá assumir-se como homem trans, numa verdade que tentou camuflar muitas vezes. Em Pageboy descreve a disforia de género, relata-a intimamente, tornando as suas sensações concretas. "Não quero desaparecer. Quero existir no meu corpo, com estas novas possibilidades." A sua jornada até se assumir como trans é relatada consciente de que o mundo escrutina todos os seus passos (por ser um ator célebre há décadas), ainda assim a profundidade do relato é desarmante, "irei sempre ser alvo de enormes ondas de ódio, não porque fiz piadas nefastas, mas porque existo", escreve.

A janela da aplicação Zoom abre outro quadrado. Elliot aparece sorridente de óculos no rosto e um boné preto, um sorriso de orelha a orelha e a voz pausada não esconde emoção em alguns momentos da conversa. Elliot está à nossa frente. Temos orgulho

De onde estás a dar esta entrevista? 

Estou em Nova Iorque, no meu apartamento.

No Instagram publicaste uma fotografia tua numa livraria queer de Nova Iorque onde apresentaste o teu livro, na Bluestockins Cooperative. São espaços seguros para pessoas queer...E isto serve para te perguntar quais são e têm sido as diferenças nas reações das pessoas que se identificam com os episódios que relatas no teu livro, e as pessoas que no passado se identificavam com as personagens às quais davas corpo nos filmes?

Oh, isso é uma pergunta interessante. Bem... (pausa). Oh meu deus...(pausa).

Diria que quando as pessoas se identificam com o livro e interagem comigo há uma profundidade diferente na comunicação. Isso não quer dizer que as personagens dos filmes não se liguem com as pessoas de forma emocional (pausa). Houve um senhor ontem, não sei bem que idade tinha, mas era certamente mais velho que eu... Esse senhor parou-me na rua e começou a chorar, porque ele tinha andado a ler o livro no comboio e andava a refletir sobre a representatividade e a frequência com que os sentimentos das pessoas queer e trans não são validados nas suas próprias experiências. Acho que há mais momentos de ligação em que as pessoas se vêem a elas próprias, independentemente de termos todos a mesma identidade ou não. Sabes o que quero dizer? Noto que há uma ligação profunda com este meu trabalho e isso é uma sensação muito especial. 

“Um senhor parou-me na rua e começou a chorar, porque ele tinha andado a ler o livro no comboio”.
“Um senhor parou-me na rua e começou a chorar, porque ele tinha andado a ler o livro no comboio”. Foto: Catherine Opie

A tua voz fica na cabeça depois da leitura. Leste muitas biografias ao longo da tua vida? E sentes que esta obra literária poderá ser capaz de vingar os atores, que ao longo de várias décadas, tiveram de se esconder e viver no armário sem nunca contar a verdade das suas vidas? Falamos desse sistema chamado Hollywood que o mundo observa e toma como exemplo, e ao qual tu pertences.

Caramba... (pausa). Sim, eu leio muitas memórias e biografias.E são esses alguns dos livros que mais me comoveram. Relativamente à outra pergunta, sinto muito por todas essas pessoas particularmente neste momento... É óbvio que para mim fazer o meu coming out enquanto gay em 2014, e mais tarde enquanto trans, intensificou e dificultou a minha experiência. Mas eu estava num ambiente em que algo assim era possível, eu pude fazer o meu coming out e ser apoiado e continuar a trabalhar. E sei que isso não foi o caso para muitos. Portanto sim, suponho que dê voz a isso e dê voz a outros que não ocupam um lugar como o meu nesta indústria. Aqueles que não podem falar sobre certas coisas (pausa). São dinâmicas de poder. Espero que isto signifique algo para as pessoas.

Sentes que descobriste as pessoas do teu passado ao longo do teu processo de escrita? Fazes referência aos livros da Maggie Nelson (o livro Argonautas foi publicado no ano passado na Orfeu Negro). Achas que descobriste essas presenças do passado no teu processo de escrita?

Do género, descobrir mais sobre as experiências? É isso que queres dizer?

Sim, não só quando falas da tua mãe, mas também dos teus amigos, por exemplo o Jack que te dava a deixa nas tuas primeiras audições. Que espaço davas a cada uma dessas pessoas todos os dias, enquanto escrevias? Às vezes na escrita descobrem-se coisas, certo?

Sim, em muitos sentidos. Eu acho que escrever foi algo que me trouxe muita humildade. Descobri as minhas próprias formas de não aparecer (risos). Ou não apareci da forma que eu deveria ter aparecido...  Ou seja, sendo egoísta nas relações ou projetando coisas nas outras pessoas. Por exemplo, quando escrevo sobre a Ryan, a atriz com quem tive uma ligação, lembro-me de olhar para as páginas e dizer: "Elliot isto parece um pouco presunçoso e zangado". Tentei pensar mais no papel que tive naquela relação, tentei navegar e olhar para as coisas de forma diferente, isso foi importante para mim, ajudou-me a curar aquela amizade, porque agora somos amigos. Escrever também me fez refletir mais na relação com a minha mãe, e fez-nos ter conversas que nunca tínhamos tido antes. Escrever o livro foi definitivamente catártico, ajudou-me na reflexão que fiz sobre as relações do meu passado e o meu comportamento. 

“Hollywood funciona como um enigma muito complicado em que ficas preso num espaço no qual idealmente deveria estar a ser feita arte”.
“Hollywood funciona como um enigma muito complicado em que ficas preso num espaço no qual idealmente deveria estar a ser feita arte”. Foto: Getty Images

Evocas a tua primeira grande audição, em que um realizador te pediu para improvisares como se estivesses perdido numa floresta. Vimos aí uma metáfora relativamente à tua jornada e descoberta enquanto pessoa queer. 

(silêncio de Elliot)

Podes evocar essa Hollywood extremamente binária que conheceste? A floresta parece indicar que não sabias no que te estavas a meter quando começaste a fazer cinema mais comercial. Descreves Los Angeles como uma cidade "que te vai sugar até secares" (p.225). Porque é Hollywood tão binária e dura? É que no fundo representar, como ator, é algo inocente que pede o uso da imaginação.

Sim, eu sei. É tão estranho, não é? Hollywood funciona como um enigma muito complicado em que ficas preso num espaço no qual idealmente deveria estar a ser feita arte (risos)... E a arte não deveria ser tão cara e deveria permitir-nos crescer e explorar coisas em nós. Isso, em alguns casos acontece, claro. Mas é um negócio, e como qualquer grande indústria, no final do dia, muito do que está em causa é o resultado final. Existe uma grande pressão para nos conformarmos, as pessoas têm medo de sair dessas linhas rígidas que delimitam as regras. Não é normal isto tudo, porque muito do trabalho de um ator é sobre abandono, é sobre estar o mais presente possível. 

Penso que isso só acontece por causa das estruturas de poder em Hollywood e das pessoas que ocupam lugares de poder. As coisas têm vindo a mudar desde que o filme Juno estreou (2007). Tenho esperança de que a mudança continue.

Escreves a certa altura, "Fiquei intrigado ao ver atores cis heterossexuais a interpretarem personagens queer e trans e a serem celebrados. Nomeações, vitórias, pessoas a gritarem: que coragem!" (p.121). Podemos falar de um mundo em que há uma aceitação falsa e superficial? Mesmo que exista uma evolução no que toca os direitos LGBTQI+ podemos falar dessa falsidade?

Sim, tem-se falado muito daquele básico que é as pessoas mostrarem que apoiam a causa durante o mês do orgulho gay (junho), mas o que estão certas organizações a fazer realmente? Falo daquelas que têm poder. Que estão a fazer para apoiar pessoas queer ou trans e as situações em que muitas vezes nos encontramos? Falo desta inundação de leis e proibições que estão a acontecer nos EUA e no Canadá. Podemos dizer que relativamente a isso temos uma espécie de espetáculo (vamos chamar-lhe assim), sem ter um apoio tangível e ações concretas. 

 “Os sentimentos que te estão a impedir de avançar, na verdade não são os teus, são deles
“Os sentimentos que te estão a impedir de avançar, na verdade não são os teus, são deles". Foto: Getty Images

No livro falas de uma rodagem que fizeste em Portugal ainda antes de fazer o Juno, no filme Mouth to Mouth (2005) tiveste uma temporada a filmar aqui e descreves um momento em que aceleras na estrada a ouvir Bob Dylan. Observas os sobreiros portugueses. Escreves: "As árvores que produzem cortiça e que constituem mais de um quarto da floresta do país(...)Têm vinte metros de altura, galhos contorcidos, subindo em direção ao céu(...)Tanta resiliência a crescer continuamente na sua casca." (p.267). Pareces identificar-te com elas. Que memórias guardas da tua passagem por Lisboa?

Meu Deus! Passei uma época tão especial em Portugal. Isso foi mesmo uma época especial. Eu tinha 16 anos e estava rodeado de pessoas mais velhas que eu, não havia smartphones. Do género, eu nem sei como é que fiz para andar por Lisboa sozinho (risos). Lembro-me de como a cidade era linda, das pessoas e da comida, e lembro-me de estar nas ruas a sair à noite... Havia muita alegria, é alegria que me vem à cabeça quando penso em Portugal.

Pareces ter um prazer gigante com a adrenalina que é ir para um plateau de filmagens no começo de um novo filme, e mesmo que tenhas conhecido algumas agressões no trabalho, ficamos com a sensação de que tens realmente prazer nas filmagens, é ali que pertences. Depois de ter contado a tua verdade, com este livro, queres voltar a sentir essa adrenalina? 

Estou entusiasmado, sim. E só porque o meu dia a dia é muito melhor, sinto-me muito mais fiel a mim próprio e confortável. Agora tudo parece diferente, a ideia de entrar num cenário e interpretar uma personagem é emocionante depois de passar pela experiência de escrever tudo isto. Há os aspetos conciliadores disto, dentro de mim. E há o facto de me sentir bem em partilhar isto com as pessoas, o facto de eu estar a ultrapassar isso... Especialmente se compararmos com o quanto eu estava no armário no meu passado. Há este sentimento de que posso avançar para novas situações e de que sou encorajado [a fazê-lo]. Isso é algo que não conhecia de todo anteriormente..

Falas muito de música no livro. Vais ver um concerto da Peaches, tens 16 anos, e ao aproximares-te do palco ela toca-te, deixando-te com um rasto de sangue falso no braço (Peaches é muito teatral nas suas performances). Não lavas o braço para não perder esse rasto de esperança. Ela dá-te esperança. Creio que talvez estejas a fazer a mesma coisa para muitos miúdos agora, ao falar em público estás a deixar-lhes um rasto de esperança. O que gostavas de dizer aos que se preparam para assumir algo de novo nas suas vidas?

Caramba... (longo silêncio). Para mim, o que foi realmente importante, quando algo fez clique em mim... Foram aqueles sentimentos que carregas contigo. Bem, os sentimentos que te estão a impedir de avançar, na verdade não são os teus, são deles. Foram colocados em ti e dentro de ti. Amem-se com todas as vossas forças e não se torturem com as perguntas, do género: ‘eu sou isto ou sou aquilo?’ Eu, antes de chegar onde queria estar, percebi que tinha dúvidas que vinham de um lugar de incerteza...E pensei: isto não tem de me derrotar, talvez eu seja simplesmente aquilo que sinto. Que excitante é podermos explorar quem somos, abraçar as partes de nós próprios que se expandem para além deste sistema binário intenso. Temos de nos exprimir e ser quem somos realmente. E é realmente um sentimento maravilhoso quando consegues aceitar-te plenamente. Aceita o amor que tens por ti, avança, e larga toda essa vergonha que não tem nada a ver contigo. 

(O cão de Elliot ladra) 

Peaches em 2003. Elliot tocou em Peaches no seu concerto, viveu a experiência como um sinal de esperança para seguir as suas convicções.
Peaches em 2003. Elliot tocou em Peaches no seu concerto, viveu a experiência como um sinal de esperança para seguir as suas convicções. Foto: Getty Images

Como estão a reagir os teus amigos, ao facto de serem mencionados e homenageados no livro? E a tua mãe? Dás-lhe uma importância muito grande, como se estivesses a reconhecer as mães que sacrificam tudo para educar os seus filhos...

Tem sido comovente. Os meus amigos têm-me apoiado muito e sinto que de alguma forma isto criou entre nós uma ligação profunda. Algumas das experiências de que falo no livro, falava muito pouco delas na vida ou até nem falava. Portanto as pessoas que são próximas de mim leram sentimentos meus muito profundos, talvez isso lhes tenha dado um maior entendimento de quem sou.A minha mãe tem sido incrível. Li-lhe tudo antes, e houve apenas uma pequena coisa que me pediu para mudar. Ela tem sido muito generosa e recetiva relativamente a tudo o que partilho no livro, algumas coisas são muito pessoais e são da vida dela. Isto é uma prova para a minha mãe, de certa forma. Ela aceitou bem o facto de estar tudo no livro. E acho que deve estar quase a acabar de o ler, porque é um pouco demais...(risos) Disse-lhe que não precisava de ir até ao fim (risos).

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