Opinião

Sam Smith, a liberdade e os pais das crianças ofendidos

"Os internautas que se queixaram do concerto de Sam Smith em Lisboa – os que foram e os que não foram, porque haverá de tudo – não conseguem processar o conceito de performance, de staging, de espectáculo, em último caso." Porque ofende, afinal, o rabo de Sam Smith?

Foto: Getty Images
11 de julho de 2023 Rita Silva Avelar

"Lisboa, este show é sobre liberdade. It’s about freedom", disse Sam Smith, com um sorriso bem aberto, no início do seu concerto durante o NOS Alive, no palco principal: três dias depois, há quem ainda não tenha compreendido a mensagem do artista britânico, que é bastante literal até. Nas horas seguintes ao concerto abriu-se espaço - aquele espaço que não tem peso nem medida - para um escrutínio coletivo no Twitter, com críticas a Smith por mostrar nudez, promiscuidade e cenas bondage na sua tour (Lisboa foi uma das últimas paragens europeias).

Sam Smith era o terceiro
trending topic em Portugal, 24h após o concerto, por causa dessas mesmas críticas, que já vinham arrastadas do seu concerto em Madrid. Aparentemente o mundo está ofendido porque os bailarinos de Smith se beijam em palco, se abraçam, dançam próximos, imitam cenas sedutoras de cabaret, simulam posições sexuais, abanam os rabos. E porque o próprio Smith se despe da cintura para cima, mostrando o seu próprio rabo com uma tanga, durante apenas breves segundos, quando se vira de costas para os fãs. A nossa descrição acaba aqui: foi tudo isto durante cerca de duas horas, uma dezena de outfits depois, e várias canções de sucesso que o lançaram, que foram em cadência crescendo até ao Sam Smith da atualidade, enfim assumido binário, livre e pela felicidade com que se apresenta em cima do palco: mais realizado, mais ele.

Quem critica Sam Smith ou não viveu na altura das grandes estrelas da pop e do rock, e simplesmente não conhece nomes nem performances como as de Prince, de Alice Cooper, de David Bowie, de Freddie Mercury ou de Jim Morrison - nomeando apenas homens -, ou simplesmente não aprecia música, de todo, e vai na onda da censura fácil. É difícil pensar que alguém não tenha visto pelo menos um dos espectáculos de Madonna, nem que tenha sido na televisão, que não ter assistido às centenas de vezes que a cantora foi provocadora e sexy – sim, sexy – em palco. Mas num passado mais recente, e pegando nas simultaneamente controversas e adoradas cantoras da geração millennial, recordamos um episódio da tour do disco Bangerz – o nome já fazia adivinhar uma parte do que se passaria - quando Miley Cyrus, ao cantar o famoso hit Wrecking Ball e vestida com um body de lantejoulas, se abeirou do palco e convidou os fãs a tocar-lhe nas partes íntimas – com a sua permissão e incentivo. Liberdade para escolher, foi o Miley fez, porque deu permissão e consentimento, e sim, foi gráfica.

Cyrus num concerto, durante o qual toca nas suas partes íntimas e pede aos fãs que o façam também.
Cyrus num concerto, durante o qual toca nas suas partes íntimas e pede aos fãs que o façam também. Foto: Getty Images

Os internautas que se queixaram do concerto de Sam Smith em Lisboa – os que foram e os que não foram, porque haverá de tudo – não conseguem processar o conceito de performance, de staging, de espectáculo, em último caso. São as vozes da cultura woke que tudo julga e controla, que tudo critica e dita regras, sem querer saber do que é realmente a Arte. Não têm bagagem cultural: são aborrecidos, pouco sexy, pouco capazes de ver além da estética, ver além do óbvio.

Que diria esta audiência, em 1983, quando os Red Hot Chili Peppers se apresentaram ao mundo no Kit Kat Club, em Santa Mónica, ostentando apenas um par de meias nas partes íntimas, nus como vieram ao mundo? (Por acaso, foi esta a primeira banda de peso a abrir o NOS Alive 2023). E quando, em 2014, durante a tour ArtPop, e no Madison Square Garden, Lady Gaga se despiu praticamente durante um concerto? Só não o fez no Dubai, disse na altura, porque sabia que seria imediatamente removida do palco, possivelmente.

Red Hot Chili Peppers num concerto em 1988.
Red Hot Chili Peppers num concerto em 1988. Foto: Getty Images

Os críticos de Smith, que avaliam em particular dois segundos em que um bailarino simula sexo com o cantor, apelidando-o de "grotesco" e "nojento", serão os mesmos que ligam animadamente as televisões ao domingo para ver os programas da tarde, em que tantas vezes se expõem níveis bastante inferiores de "sedução" (deixamos para o leitor classificar se há alguns casos excepção), com reduzida qualidade artística comparando com o megalómano espectáculo da tour Gloria de Smith, durante os concertos pimba? Serão os mesmos que acham engraçado que os filhos estejam dentro das tendências do TikTok e oiçam as músicas sexualizadas da cantora brasileira MC Pipokinha? Porque se há hipocrisia, falemos de todos os exemplos. Sam Smith evoca a palavra liberdade, mas ele tem um longo caminho pela frente. Há meses, quando lançava o videoclipe da sua nova música I'm Not Here To Make Friends, foi mundialmente atacado por ter "um guarda-roupa desajustado ao seu peso e estilo musical".

Tudo mudou para Smith em 2019, quando o cantor assumiu ser não-binário, durante uma entrevista à atriz, apresentadora e ativista Jameela Jamil, e não foi para melhor. No vídeo em questão, Sam veste diversos looks extravagantes ao longo de quatro minutos, de folhos rosa-choque que lhe cobrem o corpo todo a lingerie estilo Moulin Rouge. Este outfit em especial - corpete creme e tapa-mamilos da mesma cor, luvas altas e uma tiara recheada de brilhantes – foi o que irritou os críticos que tudo sabem da internet, que acabaram por incorrer em dois julgamentos: fatphobia (discriminação contra pessoas obesas ou com mais peso do que o padrão de beleza atual) e homofobia (discriminação contra membros da comunidade LGBTQIA+). "A parte mais difícil foi estar em casa e ter pessoas a gritarem comigo da rua. Alguém cuspiu na minha direção, na rua. É uma loucura", disse, na altura. Haters à parte, no final do concerto de Smith em Lisboa, em Algés, sentiu-se amor, cumplicidade e admiração entre performer e público, e os aplausos ao longo das músicas demonstraram que há esperança na aceitação a que o cantor tanto apela.

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