Estebaliz Solaguren, realizadora. "Não é justo que uma pessoa trans seja sempre retratada em sofrimento."
Uma conversa sobre o filme 20 000 Espécies de Abelhas - apresentado em abertura do Curtas de Vila do Conde e vencedor de um prémio no Berlinale – com a cineasta, de passagem por Lisboa.
Durante um verão no País Basco, uma criança de oito anos explora a sua identidade, de férias com a família, rodeada de colmeias e num cenário idílico que nos embala numa nuvem de doçura do princípio ao fim deste ensaio cinematográfico. Trata-se da primeira longa-metragem de Estebaliz Urresola Solaguren, realizadora basca, que faz este retrato terno e muito atual sobre a identidade de género, a família e o crescimento, numa espécie de experimentação visual constante. No Festival Internacional de Cinema de Berlim, 20 000 Espécies de Abelhas recebeu o Urso de Prata de Melhor Interpretação, atribuído a Sofia Otero, de apenas 9 anos, a mais jovem premiada no festival, e encontramo-nos agora com Estebaliz, em Lisboa, depois de vir de Vila do Conde, onde apresentou o seu filme, que entretanto estreou nas salas de cinema portuguesas.
A força matriarcal é um dos aspetos mais fortes do filme: aliás, as mulheres são quem move a narrativa. É um aspeto biográfico?
É certo que a minha família é maioritariamente composta por mulheres, somos quatro mulheres de seis filhos. Mas não penso que isso tenha contribuído como um aspeto autobiográfico, o que me interessava era abordar a infância trans, um tema que nos faz, com frequência, chegar à pergunta: como podem saber, tão pequenos, que se sentem como uma rapariga ou como um rapaz? O que nos leva a outra pergunta: porque é que nós, os adultos, cremos que temos isso tão claro? E que, por vezes, nos sintamos legitimados para descartar isso numa criança, quando uma criança rapaz se diz sentir menina, neste caso? Queria reunir todas estas mulheres desta família, de várias gerações, para refletir sobre as diversas formas de ser mulher, que todas elas experimentaram, à sua maneira, em função do momento histórico que viveram, da sua relação com o desejo, de todas as condicionantes.


A questão da infância trans é raramente retratada, como se cruzou com tema em particular dentro do género?
Para mim, é um mistério [a questão da disforia sexual]. A pergunta que me moveu, e que quis explorar sem esperar ter resposta – porque entra nesse abismo do mistério – foi: "de onde vem a origem/questão da identidade?" Pertencerá a um sítio íntimo e essencial de cada um e de cada uma, ou a identidade é algo que se constrói em relação com os outros? Com base na expetativa que os outros têm de nós? Ou é uma negociação simultânea e constante – um duo interno e externo? Quando encontramos uma criança de 8 anos, menor – e encontrei-as na Associação de Famílias Menores Trans do País Basco -, crianças de 3, 4 ou 5 anos, que já utilizam o género de forma determinada, referindo-se a si mesmas com o género oposto ao seu, vamos dizer o quê?
Teve essa experiência in loco? O que foi que observou que a deixou mais interessada neste domínio?
Em muitos casos, de tanto que se lhes corrige [às crianças] constantemente o género – "rapaz não, rapariga" – acabam por desistir [de o fazer]. Estão em crescimento, em aprendizagem. Em certos casos, não se deixam corrigir, noutros aquilo fica latente, há vivências muito distintas; dos casos que conheci, e o que a maioria dos pais relata é que quando há muita contrariedade, as coisas manifestam-se com falta de apetite, somatização de doenças, apatia, tristeza crónica, pesadelos… E que, mais tarde, quando precisam de aceitar esse passo e compreender os seus filhos, percebem tudo. Pareceu-me importante trazer essa realidade ao cinema. Embora exista cada vez mais representatividade das pessoas trans, creio que no caso da infância nem por isso. Era importante, porque muitas vezes penso que acreditamos que o trans é um assunto político, ideológico, e com uma decisão, de alguém que se quer submeter a um tratamento, que faz uma escolha "livre".

Quanto tempo demorou a fazer a pesquisa histórica e social? Passou muito tempo com estas famílias?
Comecei com as famílias no princípio de 2018, e no final do ano fiz um primeiro tratamento da informação, fase anterior do guião. No início de 2019 tinha a primeira versão do guião. Um ano de entrevistas, a criar relações com as famílias, com muita conversa, perguntas sobre coisas concretas, tudo se tornou mais pessoal. Em 2020 escrevi distintas versões do guião, e nessa altura percebi que a sociedade avançou imenso em matéria de conhecimento, em dois anos. As novas informações e as novas ferramentas tornaram-se melhores. Então, nesse momento iniciei novas rondas de entrevistas, para perceber que desafios existiam nesse momento. Nessa segunda ronda, afinei a personagem da mãe.

Como foi o processo de recrutamento dos atores?

Com as crianças, abrimos um casting geral. A convocatória, lançada de forma massiva, trouxe pessoas, nomeadamente a Sofía, que veio logo na primeira sessão dos castings. É curioso que é uma criança tão alegre, extrovertida, não a vimos logo como a personagem que eu tinha escrito, e tornou-se difícil de encontrar. Tínhamo-la para outro papel. Vimos 500 castings… Até que voltámos a chamar a Sofía para um outro casting, num registo mais dramático, e foi incrível. Apercebi-me que é perigoso quando colamos uma etiqueta a uma pessoa, quase me perdi ali.
Ir ao País Basco, filmar, foi especial? Que sítio era este?
O cenário do filme é uma aldeia fictícia. Mas as mais importantes, a casa e as colmeias, ficam no sítio onde eu nasci. Para mim foi muito importante, senti-me em comunidade. Como nos meus projetos anteriores, parte deles rodados ali, o sentido de comunidade dá-nos um alento invisível que nos ajuda. Senti-me muito apoiada, embora as pessoas não soubessem o que sairia dali.

As abelhas representam aqui um significado especial, são como que um elo de ligação. Porquê retratá-las aqui?
O nome do filme foi sempre o mesmo. É verdade que nas primeiras versões a abelha não estava tão integrada no filme, mas eu, intuitivamente, sabia que a queria ter lá. Parti de umas canções antigas em língua basca, que falavam sobre as abelhas, consideradas um animal sagrado para os bascos - e parte de rituais importantes, como o da morte ou do nascimento, que precisavam de ser "comunicados" às abelhas. Tudo isto me pareceu, também, um mistério. Embora seja um animal que nos intimide, tentando nós espantá-lo quase sempre, não é considerado violento. Como tudo o que é desconhecido, também as abelhas no dão medo. Às vezes é preciso aproximarmo-nos delas para que isso se evapore. Fala-se, no País Basco, das abelhas como "você" (usted), sinal de reverência.

O envolvimento visual do filme, as paisagens, tudo é sensível e belo. Que mensagem gostava que as pessoas tirassem deste filme?

Queria fazer um filme que não fosse naïf, mas que cultivasse um espírito luminoso, agradável, sensível. Porque sabia que muitas crianças possivelmente iriam ver o filme, e que poderiam identificar-se com a personagem. Não podia ser uma personagem conflituosa, torturada, obscura. Não é justo que uma pessoa trans seja sempre retratada em sofrimento. Queria, também, aproximar-me de forma natural às pessoas que não conhecem esta realidade, a da infância trans. Queria oferecer ao espetador uma ponte para aceder a esta realidade. E sim, evitei as sombras, evitei o sensacionalismo, tentei sempre um exercício de aproximação – leitor/filme.
* A AMPLOS, Associação de Mães e Pais pela Liberdade de Orientação Sexual e Identidade de Género, estará este domingo, 30 de julho, pelas 18h30, no Cinema Fernando Lopes em Lisboa, para conversar sobre os temas da identidade, do corpo e do género, bem como das relações familiares, retratadas no filme. Os bilhetes para assistir à sessão estão à venda no cinema e em Ticketline.pt

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