
Escrevo esta crónica num voo de Berlim para Lisboa e é extraordinário observar como a tolerância se exerce num povo que viaja muito – e sim, já passou por muito, pesa-lhe a consciência da História, mas também a sua reflexão. Mesmo sabendo que Berlim não é a Alemanha, foram os alemães que inventaram as Birkenstock com meias para palmilhar o mundo e levar a família toda atrás. Viajar é curiosidade pura, a primeira forma de conhecimento. Por isso, a sua capital é curiosa e tolerante, dos lugares mais modernos e sofisticados do mundo. Sobre as cinzas do passado, os berlinenses reconstruíram a sua capital e deram um salto civilizacional, aberto a todas as nacionalidades, credos e manias. Ninguém quer saber se vais ao supermercado de pijama, aqui a força é a do autêntico - a bola é sem creme.
Berlim está cravejada de museus, é a cidade da Filosofia e da música experimental. Nos seus muitos jardins e esplanadas, as pessoas descalçam-se a ler nos jardins onde passeiam os rafeiros recolhidos nas ruas dos países desfavorecidos e fustigados pela guerra. Não se vêem engarrafamentos porque os transportes funcionam e todas as gerações andam de bicicleta. A abertura de Berlim não é de braços escancarados, como nas cidades do sul, mais treinadas na sedução e na circunstância. É um acolhimento reservado, com algum pudor, como é costume no norte. Berlim sorri-nos no metro onde as pessoas se oferecem para nos decifrar a complexa e eficaz rede de transportes, e até nos corrigir o sotaque. Nunca recebi tantos sorrisos, e até inesperadas partilhas de ternura, numa capital tão gigante. Berlim trata-nos como se todos tivéssemos o mesmo valor, até os diferentes e os punks, que ali sobrevivem genuínos. Como se todos fôssemos de lá, porque todos podemos ser, essa é a grande definição do cosmopolitismo.
Não creio existirem muitas cidades onde o quintal é partilhado pelos vizinhos e se trata uma pequena floresta de árvores altas onde pousam os corvos. E é talvez a metrópole onde mais se tropeça em supermercados bio e restaurantes vegetarianos, a preços justos. Deixa-se o jornal da manhã no café para o próximo apanhar. Como se o mundo pudesse ser um lugar mais confortável e melhor onde se celebra o que une e não o que separa. A parcialidade é sempre mais imatura e superficial, ainda não consegue abranger todos os lados de uma questão. Berlim é uma cidade da Arte e da Política que, juntas, promovem o debate, a reflexão, o futuro. E estes só se cumprem com a ponderação, que parece a coisa mais difícil do mundo. Porque é. O bom senso e o meio termo exigem treino, como um músculo, uma flexibilidade que nos permita fazer uma espargata mental ou dar um pulo no ar para ver tudo melhor, de cima. Só assim se chega a um real lugar de abertura.
Depois de a vermos como a capital do impiedoso extremismo - que permanece na música, na moda, na sexualidade descomplexada, palpitante e dark da sua cena clubbing – hoje é uma das capitais da reflexão, para onde convergem, de todo o mundo, os estetas, os doidos, os ousados, os pensadores. Por isso, a maioria das exposições rebate as causas do momento, é ativista e humanista, como o jornalismo sempre quis ser, com a candura e a alegria do debate. O debate está a desaparecer das nossas sociedades. E quanto mais ignorante um país é, menos exerce o seu exercício profundo de troca e reflexão. Já para não rebater a barulheira oca da internet, o moralismo saloio e a reatividade do escândalo e do juízo, tão comuns aos absolutos e aos desinformados, lá está, às cabeças menos viajadas.

O caminho do meio fica exatamente entre um lado e o outro, à distância, nem sempre confortável e exata, da reflexão. Só esta nos dá perspetiva e, quem sabe, a grande fotografia sobre os temas mais complexos da vida. E são muitos. É no caminho do meio que se escutam as diferentes cintilações das muitas opiniões, sem saltar e abocanhar antes do tempo que demora uma exposição de ideias. É o caminho da curiosidade, que procura a inteligência, e o verdadeiro outro. Por isso, cada vez que uma cabeça viajada usa as ferramentas da ignorância para atrapalhar o debate ou acusar o outro, quase sempre do que ele não é, uma tristeza obscurantista se abate sobre a conversa. O discurso do politicamente correto não é apenas básico e acusador, imaturo e impiedoso, ele varre toda a possibilidade e empobrece pois divide o mundo entre os bons e os maus, que nunca é (bem) assim, e, pior, tem a arrogância de acreditar que é sempre o bem e os outros são o mal. Um desentendimento desnecessário, ruidoso, por vezes ofensivo.
Depois, já reparou que quem mais fulaniza é quem menos arregaça as mangas? É só garganta. Fala-se do alto de uma moralidade impoluta que se mascara de grande bondade, como um apaziguador de almas, um salvador da pátria, mas não mexe uma palhinha para mudar o real estado das coisas. Nem nunca mexeu. E, sem dar por isso, esconde uma pequena sobranceria e um grande paternalismo. Há dias li um especialista de marketing dizer que vivemos numa autêntica montra, mais naquilo que parece do que naquilo que se faz. A cultura portuguesa é pródiga em comentadores de bancada, na sua maioria privilegiados, que é uma palavra que já não se aguenta, que lançam uma tiradas humanistas bem generalistas e esperam receber palmas ou, pelo menos, limpar a consciência. O pior é quando lêem sempre maldade no outro - como fazem as ditadura e como fez sempre a santa igreja: nós somos os bons, vocês são os selvagens.
Por isso, sinto-me em casa quando encontro culturas frontais e que preferem o desconforto e o entusiasmo do debate, do que as palmadas nas costas ou a machadada que dá aquela frase pobrezinha do "isso depende". Tudo depende. Porque é que em vez de sermos feministas zangadas, não esclarecemos os pequenos tiques de machismo sobreviventes até nas mulheres? E em vez de rebater o passado colonial, que não podemos mudar, infelizmente, não falamos do neocolonialismo por detrás da gentrificação? Ou da escravatura que chega à Europa aos milhares, em insufláveis, agora e em directo? Porque não discutir os novos imperialismos, a extrema-direita, as grandes empresas que mandam na nossa vida, os juros pornográficos dos bancos? Porque não celebrar a diversidade das nossas origens, géneros, idades, em vez de camuflá-los para parecermos todos iguais quando não somos? Visitar uma cidade como Berlim é chegar ao caminho do meio, à terra do debate saudável que é sempre mais atento, cuidado, florido, consequente. É como apertar os atacadores e desatar a correr ou esticar os pés na relva num dia de sol.

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