
Esperamos sempre uma centelha de esperança a cada início de ano. Aquela brisa, a aberta, a luz que entra por uma fresta, discretamente e sem avisar e ilumina a sala desenhando os seus contornos. Mas neste mundo doido que parece poder implodir a qualquer momento – mas não, já passou por isto antes e safou-se – às vezes dá a sensação - e somos mais a pensar assim -, que entrámos numa outra dimensão, distópica e assustadora, que a globalização da tecnologia acelerou. Há muito louco e revoltado e frustrado a destilar ódio nas redes sociais e com opiniões sobre tudo e sobre nada, lembram-me logo os zombies que vagueiam nos filmes gore. Terreno fértil para os salvadores da pátria do populismo e os seus discursos inflamados e primários, que encantam maiorias como o flautista de Hamelin.
O mundo é feito de maiorias. A população mundial não pára de crescer, e a ilusão da independência e da originalidade, de onde nasce o futuro, é um discurso bonito, mas, na prática, quem manda são as maiorias, como o mercado, as audiências… a lógica é a mesma. Uma ditadura velada da maioria, de onde nunca vem nada de novo, genial ou transformador, mas massifica, uniformiza, homogeneiza, padroniza. E todos falam ao mesmo tempo numa cacofonia ensurdecedora e pouco pensada. As massas são incríveis em concertos de verão, com os isqueiros acesos naquela canção, ou a fazer a onda em uníssono e a ecoar cânticos na bancada do estádio, mas delas não vem clareza nem presença de espírito. Muitas vezes, e curiosamente, nem o que mais devia sobressair quando estamos encostadinhos uns aos outros: humanismo.

Por isso, quando vemos jovens fascinados pelo Chega, a ensaiar uma falsa rebeldia por se julgarem fora do mainstream, não só estão enganados como nos abala a velha esperança. Sabemos o perigo que pode ser um grupo de pessoas sem rumo e poucas ideias. Como uma manada desembestada pode levar tudo à frente. Só que os animais são mais bondosos do que nós, e essa massa acéfala não segue uma flauta, mas um tom bélico que mascara ideias pobres, absolutas, desumanizadas. Onde é que já ouvimos isto? Por isso se inventaram as revoluções e a liberdade. Nem sempre a ordem é progresso, e uma certa visão do todo nem sempre soma todas as suas partes. No populismo não há elegância ou gentileza, atropela-se o outro porque é só mais um.
O populismo é um espectáculo que pretende amestrar os descontentes, e agora há imensas razões para se estar pouco saltitante. Por isso, está a espalhar-se por todo o mundo, em toda a sua boçalidade de agradar à maioria. Os likes. Os populistas são os influencers da política, mas com piores penteados. Também são espertalhões a querer dar nas vistas e a ganhar aplausos (e dinheirinho, claro) com isso e, quiçá, chegam a famosos, o que quer que isso queira dizer hoje. Os populistas apontam ao mais primário e sobrevivente em nós e acertam oportunamente nos medos e nas vontades secretas de uma maioria agastada, que somos quase todos e as nossas vidas mais ou menos banais.
Nunca quis gastar palavras no Chega, como não sigo youtubers, tiktokers e semelhantes, mas quando o seu líder loquaz, candidato único à liderança do partido, foi reeleito com 98,9% de votos e caminha para se consolidar como a terceira força política do país, é assustador. E acorda a jornalista profunda que vive em mim. Sempre que ouço farrapos do seu discurso preconceituoso, conservador, intolerante, e se observa a tontaria dos seus militantes cegos pela lábia do líder palavroso que promete tornar os nossos sonhos realidade, é assustador. Porque, por detrás das falinhas mansas, vem uma vontade de que tudo fique como dantes: as mulheres na cozinha, os gays na sombra, os imigrantes nos países onde nasceram. Lobo com pele de cordeiro, mas com a cauda toda de fora. É uma regressão civilizacional, dos valores mais básicos e fundamentais aos direitos humanos, aqueles em que concordámos não mexer nunca, e vejam-se as guerras tontas, o mundo não aprendeu e a maioria não sabe mais nem melhor.

E lá vem ele, o salvador da pátria, o líder incontestado, onde é que já vimos isto? Diz que o seu partido vem "limpar Portugal", como tentaram Trump ou Bolsonaro, péssimas prestações em palco, ainda por cima, e que pouco divergem de outros que têm o rótulo de ditadores. Repare-se no novo presidente da Argentina, que no World Economic Forum, em Davos, considera errado taxar a ultra minoria de trilionários que é dona disto tudo. Um estudo da organização não-governamental britânica Oxfam, baseado em dados do banco Credit Suisse relativos a outubro de 2015, avisou-nos que a riqueza acumulada pelo 1% mais abastado da população mundial equivale à riqueza dos 99% restantes. Por isso sempre tiveram sucesso as histórias eat the rich quando a comida não chega para todos.
A cobardia é sempre simplista como os raciocínios populistas, mas mascara-se de coragem, que é o que engana meio mundo. O porta-voz do Chega, líder incontestado de um rebanho político, quer arrebentar com os portões do estábulo e tomar conta da quinta. Masculinidade tóxica e complexo de superioridade moral? E onde está o cavalheirismo e a ética? Começou por condenar-se as burcas e, qualquer dia, voltamos a ser proibidas de usar mini saias. Se chegar ao Governo, diz que cortará os subsídios das associações que promovam "ideologias de género e a igualdade de género": "Eu garanto-vos uma coisa, aquele dinheiro todo que damos para as ideologias de género e para promover a igualdade de género […], vou pegar nesses milhões todos e vou dizer às associações: ‘esqueçam, não vão receber um tostão’".
Podíamos informá-lo de que o crime de violência doméstica, por exemplo, é o mais denunciado (só em setembro do ano passado tinham sido feitas 8400 denúncias e as associações de apoio à vítima dizem que aumentam os pedidos de ajuda), mas é o que mais mata em Portugal. Só no ano passado foram 18 mortes. Só para começar uma conversa, mas seria impossível – o populismo é a cereja no topo de um mundo onde se perdeu o amor à edificação e à inteligência do debate.

Por isso, os partidos populistas e de extrema-direita, que estão a crescer no mundo e na Europa usam o TikTok e o Instagram como marketing, lá está, influencers, coreografias, cantorias e talentos domésticos. Claro que os líderes do Chega não escapam à regra, e além das redes sociais, apostam em visitas a escolas secundárias. Imagine-se. Segundo o "Retrato Digital de Portugal 2015-2023", um estudo da Obercom, que a revista Visão trouxe para a sua capa, 26% dos portugueses internautas já usam o TikTok, frequentado maioritariamente por jovens entre os 18 e 24 anos. E o Chega é o partido com mais plateia, com tem 9,7 mil seguidores, seguido pelo Bloco de Esquerda que tem 24 mil seguidores, mas soma muito mais nas contas pessoais dos seus líderes, só o presidente do partido tem 177 mil seguidores. E, segundo os investigadores Pedro Magalhães e André Azevedo Alves, do centro de sondagens do ICS-ISCTE, e citados pelo Expresso, são os jovens, entre os 18 e 25 anos que têm uma maior probabilidade de escolher o Chega, não os mais velhos e menos escolarizados, como sempre se pensou. Por isso assistimos ao triste episódio dos jovens da Católica expulsarem um jornalista deste semanário, da sua reunião. O que dizer mais? Tenha medo, tenha muito medo.

As mulheres de Maria Lamas, “a mais extraordinária portuguesa do século XX”
Tardou demasiado até vir a público o espólio fotográfico de Maria Lamas para o seu inédito livro "As Mulheres do meu País", lançado em fascículos entre 1948 e 1950. Está agora, e até maio, na Biblioteca de Arte da Fundação Gulbenkian, em Lisboa, numa exposição bela e imperdível.
Anália Torres: “A consciência da desigualdade leva algum tempo a conquistar”
Porque é que a igualdade de género é uma batalha que ainda precisa de ser travada? E, afinal, de que falamos quando evocamos a igualdade de género?A socióloga e diretora do Centro Interdisciplinar de Estudos de Género (CIEG) e uma das mais respeitadas especialistas nacionais nesta matéria, responde.