Rita Redshoes em estado de graça

Ao quinto disco, Rita Red Shoes canta em português e escancara o coração num disco onde cabe a maternidade, as alegrias maiores e os medos mais profundos. Conversa com uma mulher no 'Lado Bom' da vida.

Foto: Vitorino Coragem
26 de novembro de 2021 às 12:40 Patrícia Barnabé

Nunca as canções lhe ficaram tão bem: honestas, despretenciosas, charmosas, cintilantes. Rita Pereira, que conhecemos com o apelido mágico de Red Shoes, chega na sua saia rodada e nas suas sandálias em corda com umas cerejas bordadas para conversar sobre o seu disco iluminado e feliz. Uma mulher em estado de graça e de graciosidade.

Tivémos o Golden Era de 2008, o Lights & Darks de 2010, o Life Is a Second Of Love (2014) com pozinhos do Brasil e dos You Can’t Win Charlie Brown e o Her (2016), gravado em Berlim e produzido por Victor Van Vugt, que já colaborou com PJ Harvey, Beth Orton, Nick Cave ou Depeche Mode. Mas só agora fazes um disco integral na tua língua materna. Como é que chegaste a este Lado Bom?

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Cheguei com algumas experiências, na verdade. Como comecei muito cedo a tocar e a cantar e a escrever em inglês, tinha um bocadinho de pudor de me ouvir cantar em português. Tive a sorte de ir tendo desafios de outras bandas e pessoas que já escreviam e cantavam há muito tempo em português, para concertos e coisas imediatas ao vivo, e fui ganhando alguma confiança, fui fazendo umas gravações em casa e pesquisando. Porque, de facto, é muito diferente a forma como se canta em português, o próprio som da voz. No meu disco anterior já tenho três canções em português e de repente quando comecei a compor para este disco apareceu-me tudo em português e, bom, vamos respeitar isto que está aqui pra sair. E fiquei super contente, na verdade, de conseguir passar para o papel uma escrita mais narrativa, uma coisa adaptada à musicalidade, e foi um desafio muito importante que abracei.

E este disco é uma viagem interior, por muito bem que se conheça outra língua, é sempre mais profundo expressarmo-nos na nossa.

Sim, é verdade e acho que o pudor também vinha um pouco daí, parece que, de repente, ficas muito mais exposta, quem está ao teu lado vai compreender tudo mais facilmente, não há grandes barreiras, e o que isso tem de assustador também tem de mágico porque quando há essa interação com as pessoas e com o público, é muito mais imediata e viva. A dificuldade era: como expor isso de uma forma poética e musical, de acordo com o que estás a sentir, e que caiba na tua voz.

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Foto: D.R

Escrito e gravado entre 2018 e 2019, chamaste-lhe sobrevivente e o disco mais pessoal já que relatas a maternidade: "exploro emoções desconhecidas, exponho dúvidas, muitos medos, certezas e incertezas, antigas e novas, que me permitem uma leitura diferente da vida e da minha existência." Estiveste a cuidar de outra obra.

Sim! De uma obra para a vida! (risos) Engravidei, que era um desejo antigo e todo o processo é muito forte, foi uma gravidez tranquila, mas é uma avalanche, por muito que partilhe a experiência, só passando por ela é que se tem o seu sentido e os seus desafios. E foi uma grande oportunidade também para renascer, para além daquele paralelismo de que voltas à infância e às memórias, com os teus pais mas também como é que te relacionavas com o mundo, as descobertas, é quase um reviver disso tudo. É bonito, mas também remexe com as entranhas. Foi um processo bom, hoje posso dizer isso, mas o pós-parto foi muito complicado para mim porque tive uma depressão pós-parto e foi duro. Mas a partir do momento em que te consegues reencontrar numa nova pele e realinhar-te, é uma experiência incrível e tem sido um processo de crescimento. O que sinto é que tudo isto que passei, toda esta transformação física e emocional criou uma versao melhor de mim. E quando é assim, é bom, desafio superado. (risos)

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Foi uma escolha consciente fazer um disco mais pessoal ou foram as atribulações e as alegrias da vida?

É um disco que me aconteceu, é um disco que dediquei à minha filha e à minha mãe. Mas nunca pensei que fosse tão sobre mim, no fundo, é um mergulho profundo em mim. Mas também é sobre a condição de ser mulher, como gerir ser mãe e profissional, com a profissão que tenho, onde é que fica a criatividade, o tempo para nós, a introspeção, tudo isso, de repente é um mundo novo. E a urgência de escrever foi mais forte do que qualquer outra coisa que pudesse pensar. Muitas canções são escritas ainda com a minha bebé na barriga ou com ela a dar passeios infinitos a ver se dormia, há uma narração de todos esses processos, sempre em paralelismo com a Rita pequenina, inevitavelmente.

É um disco que te assenta bem, muito Rita, o que quer que isso queira dizer.

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É uma boa expressão porque no fundo o que eu ando sempre à procura é de chegar ao que sou como artista e deixar as influências.

Para alguns de nós sempre foste um mistério, apesar de teres uma imagem muito acessível, há sempre um lado reservado, aqui abres a porta.

Sim, abro mesmo escancarada! (risos)

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Foto: Vitorino Coragem

Na primeira música, Lado B, há uma espécie de prólogo, um sussuro a avisar: "(…) escrevo a história, aceito o tom e deixo ir o que não fez bem para me encontrar neste vai e vem da vida"

Leste bem, é muito isso, eu encontrei esse pedacinho já as gravações estavam feitas, e foi naquela fase pós-parto, é como se sentisse: ‘Bom, vou abrir aqui a porta e sou assim, estou assim neste momento, é o que consigo, é o que posso, mas estou bem com isso, ou seja não estou frustrada nem amargurada’. É claro que tem a ver com a idade e com a própria vida, mas hoje sinto-me muito mais inteira, com defeitos e a consciência deles, dificuldades, etc. Não resignada, mas em paz com isso.

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O primeiro single foi lançado no final de 2019, O Amor Não É Razão, porque escolheste esta canção?

Na altura o disco ainda não estava terminado, pareceu-me a que me fazia mais sentido. A letra é do Pedro Silva Martins e expliquei mais ou menos ao Pedro onde é que estava naquele momento, enviou-me esta letra e fez-me todo o sentido, apesar de ser uma letra de outra pessoa, ainda por cima um homem, é muito esta ideia de aceitares, de te tornares resiliente e muito mais exposta, e isso faz com que te tornes mais humana e aceites melhor o outro dessa forma. Claro que todos temos dificuldades e questões, tem de haver essa compreensão e esse abraçar, no fim acabamos todos da mesma maneira, para quê complicar, não é? E a canção tem muito a ver com isso, com o respeitar, não apontar o dedo, não excluir.

O amor é o tema que mais inspira canções, em geral, porque é que é assim?

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Genuinamente, acho que o amor salva. E mesmo no fim de uma vida, e mesmo que saibas que chegou o momento, um ato de amor, o sentirmo-nos amados é mesmo aquilo que dá sentido à vida, tudo o resto torna-se muito insignificante ao pé disso. E amar genuinamente e incondicionalmente, diz-se que é só pelos filhos, mas não é só, também se pode sentir por um amigo, por familiares, por uma situação. Ok, se eu tiver que tirar tudo o que é que resta? Acho que é ter-me sentido amada e isso permite-me amar o outro, porque se não me tivesse sentido amada, nalgum momento da minha vida, possivelmente não teria aprendido a amar. Sinto-me afortunada, mesmo que muitas vezes me tivesse questionado, mas tenho essa capacidade. E eu acho que é aquilo que dá mesmo sentido a tudo. Tive um professor, o Coimbra de Matos, que faleceu há pouco tempo, psicanalista, que dizia que toda a doença é um mal de amor, psíquica ou não, e isso faz mesmo muito sentido.

Foto: Vitorino Coragem

Escreveste mesmo: "o amor não deve assustar". Temos-lhe um fascínio e um medo de morte também, é que quando é bom é muito bom, mas quando é mau é muito mau.

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Sim, entregarmo-nos a alguém é um ato de fé, porque nada nos garante que amanhã não seja diferente, que a pessoa se vá embora e deixe de gostar. Tudo pode acontecer, é um risco, mas é daqueles riscos na vida que vale mesmo a pena correr. Mesmo que a dor possa vir, aquilo que se ganha é mais do que aquilo que se perde, porque o sentimento de união é mágico, como dizes, e isso não desaparece apesar de a pessoa poder desaparecer e é essa memória que alimenta muito o sentido da vida.

No segundo single, Contigo é pra perder, escreves a letra e convidas o Camané para cantar contigo "o amor mesmo que vença eu perco-me em ti".

Sim, é assim o amor incondicional, mesmo que se perca há qualquer coisa que fica. Escrevi essa canção de rajada, estava bastante grávida, e sentia-me sempre numa espécie de dança com a minha barriga, a tentar desviar-me das coisas, então vou ter de escrever uma valsa. E quando a escrevi era uma bocado: eu ainda não conheço este ser que está aqui dentro, mas já existe uma ligação brutal. E sei que esta é a minha maior força, mas também será a minha maior fraqueza, porque vou ficar muito vulnerável através desta criatura. Sempre fui fã do Camané, tem a vida na voz, as amarguras todas, então pensei que podia ser mesmo uma valsa a dois e em estúdio fez todo o sentido. Enviei-lhe timidamente a achar que ele não ia querer entrar neste mundo mais pop, mas ele adorou a canção e disse logo que sim, fiquei super contente e fomos para estúdio ainda antes do primeiro confinamento, ainda houve aquela coisa de dar abraços e estar a cantar, parecial normal o mundo. Quando ele cantou, regravei a minha voz para ficar mais juntinha à dele, ele também tinha sido pai há pouco tempo e foi engraçada essa sensibilidade: "Eu sei do que estás a falar". (risos)

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O videoclip foi gravado durante o primeiro confinamento, com cenas domésticas, como correram os dias de pandemia?

Acabou por ser a solução possível. O confinamento, inicialmente houve uma certa magia: "Uau, temos de ficar todos em casa!" Como se estivesse a nevar e ninguém podia sair, por mim estava bem. Fazia-me confusão não poder estar com o meu irmão, com a minha mãe e o meu pai, mas fizemos uns concertos no quintal, o meu companheiro também é músico, e o Ricardo Toscano [músico jazz] era nosso vizinho, foi uma experiência muita gira, as pessoas vinham à janela: "Ok, esta malta está toda bem!", essa coisa foi bonita. Ficou tudo preso ao sofá, eu procurei criar com o pouco tempo que tinha, com a minha bebé não dava para muito, mas criei uns videos de atividades criativas para as crianças e para os pais, e um podcast em casa sobre sonhos (os ouvintes enviavam os seus sonhos e eu narrava-os e insonorizava-os, passaram uns episódios na [Rádio] Comercial). Fui fazendo coisas para não sentir um travão forçado. O segundo confinamento foi mais pesado, já não se estava a contar, concertos cancelados e começas a sentir o peso nos ombros, não só da tua circunstância, mas dos teus colegas. Foi duro.

Foto: Vitorino Coragem
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O tema Rosa Flor, que é o terceiro single, é dedicado à tua filha, o que é que querias dizer à tua mulher pequenina?

É uma grande responsabilidade teres uma menina. O que tento todos os dias passar-lhe é que é muito importante ela sentir-se livre e respeitar-se, essa ideia de que os filhos não são nossos, o que é uma grande chatice porque uma pessoa tem uma trabalheira a tratar deles e depois eles vão à sua vida, que é o que é saudável. E é eu a preparar-me já um pouco para isso. E essa autonomia e auto-respeito, pela sua identidade e as suas escolhas. É aquela coisa: vai e eu fico a ver-te, se precisares, estou aqui, mas vai.

Somos as filhas das primeiras mulheres portuguesas a trabalhar fora de casa, na sua maioria. O mundo já evoluiu muito nos temas feministas, depois de alguém já ter queimado os soutiens por nós, o que falta fazer?

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Tenho grande responsabilidade como mãe de uma menina, mas na verdade as mães dos meninos têm uma maior responsabilidade porque essa consciencialização do passado e da história tem mesmo de ser falada, ser compreendida e ser discutida. Só dessa forma se pode despertar consciências e não na luta de mulheres contra os homens, que não faz sentido nenhum. A igualdade também é respeitar as diferenças, não somos iguais, há que retirar o melhor partido delas. Já se deram alguns passos importantes, principalmente no ter uma voz, mas ainda estão enraizados costumes e mentalidades muito presas ao que a mulher deve ser, como se deve comportar, qual é o lugar e o seu espaço. E isso sente-se em pequenas coisas, e nas próprias mulheres, porque isso vem de família: só quando as avós e as mães se começam a questionar é que se acorda um bocadinho, se não é questionado, são pensos rápidos de igualdade. Tem de dar-se sentido e perceber porque há ainda muito trabalho por fazer e isso passa por um grande trabalho na escola, uma consciência cívica e não só, claro que em casa é sempre o principal. Sinto, surpreendentemente, de amigas e até de gerações mais novas, que as coisas já estão mais evaporadas e não estão. Ainda há muito a coisa da submissão, de ter de cumprir determinado papel. E isso pesa e pesa também em cima dos homens, e muito. Lá está, estamos aqui a tentar cumprir papéis que não fazem sentido absolutamente nenhum. Há ainda muito caminho a percorrer, e estamos a falar da Europa, no resto do mundo é chocante… Os talibãs não deixarem as meninas irem à escola é atroz.

As mulheres deveriam ser mais amigas umas das outras, para começar?

Quando digo que deve começar pelas mulheres, deve mesmo, deixar de ver a outra mulher como uma inimiga ou uma rival, e mais como, olha, boa, vamos brincar, vamos fazer coisas que eu acho que tu também gostas e de que eu gosto. Há imensas explicações, como a luta da reprodução, enfim… e isso parece que nos afasta umas das outras, parece que não há espaço para todas e há, somos todas diferentes, a irmandade é mesmo boa, sermos uma equipa.

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Em vez de fazer de conta que se está sempre bem perante as outras, uma certa competição de felicidade…

No pós-parto, na depressão, sentia-me anormal porque me disseram que ser mãe é a melhor coisa do mundo, era o que eu achava, e acho agora, vais sentir um amor incondicional, mas eu não estava a sentir, eu não conhecia aquele bebé de lado nenhum e ele não me conhecia a mim… quer dizer, há muitas coisas sobre a maternidade que não são expostas entre as mulheres, era tão mais fácil que fosse. O pós-parto é horrível, não é lacinhos, tive de deixar a minha vida antiga e não vejo uma série no sofá há três anos. Há muitas coisas de que sinto falta da minha vida anterior, mas o peso que sentes para partilhar isso… eu tinha vergonha. É tão importante dizê-lo e não é por isso que não se é boa mãe, de todo. As mulheres até isso têm medo de dizer, é sempre uma culpabilidade e uma responsabilidade em cima das costas que não é humana. Existem tribos em que quando um bebé nasce, a tribo trata dos dois, ou seja, a mãe fica de cama também, isso é que faz sentido, a mãe está muito vulnerável e isso não é falado. Senti-me muita aflita e comecei a ler blogues porque não podia ser a única a sentir isto! E de facto, havia testemunhos, mas tímidos, e sempre a culpa, a culpa, a culpa. Sinto mesmo que é importante partilhar esta minha experiência porque te sentes muito sozinha e às tantas tens de ir procurar ajuda. E eu considero-me uma pessoa com liberdade e autonomia e isso pesou-me brutalmente, porque está enraizado socialmente.

Foto: Vitorino Coragem

Que sintomas tiveste dessa depressão e como foi o processo?

O que eu sentia basicamente, e não difere muito de mulher para mulher, era uma ansiedade brutal, uma responsabilidade gigante e uma impotência muito grande, tive ataques de pânico, tive ligeiros sintomas de querer pôr um stop na minha vida, "eu não estou preparada para isto", muito questionamento: a minha vida vai ser esta, aqui o dia todo com o bebé, a dar de mamar, é isto que é a maternidade? E a culpabilidade, só chorava, tudo muito pesado. Depois li um livro, Os bebés também querem dormir da Constança Cordeiro Ferreira que me ajudou muito, ela partilha a vulnerabilidade que sentiu com a primeira filha: "Estou aqui, à três da manhã, na terra de ninguém, sozinha com a minha filha". E isso tocou-me, porque a privação do sono é uma tortura real, eu não dormia, não descansava e estava com uma adrenalina brutal. Depois descobri que ela tem o Centro do Bebé, onde tem uma equipa incrível de psiquiatras, psicólogos, enfermeiras, para a mãe e para o pai – que também tem depressão pós-parto e é uma coisa muito pouco falada, é um grande tabu – e ela disse logo: "A prioridade agora és tu". E isso é tão importante, ajudou-me tanto nessa altura, iniciei uma terapia. É bom que se diga também que sou deprimida desde pequenina (risos), crónica, por isso tive muitos episódios de depressão profunda ainda ao longo da adolescência e na idade adulta. Claro que num momento destes… A única coisa que não queria era ser medicada porque achava que não podia amamentar, é possível e foi uma conquista para mim. Fui e sou medicada, e vou ser a vida toda, porque o meu metabolismo não produz serotonina – nem toda a doença mental tem a ver com circunstâncias da vida ou com fragilidades de carácter e de personalidade, há um lado químico como se tivesses problemas de diabetes ou de rins, igual. No meu caso, eu não produzo serotonina e descobri-o numas análises aos 38 anos, até lá sofri horrores a achar que era eu que estava a ver mal o mundo. Tirei um peso de cima de mim gigante, pronto, tenho aqui uma falha. Há ajuda.

Durou quanto tempo todo este processo?

O primeiro mês e meio depois da Rosa ter nascido foi duro até eu perceber, ter ajuda e depois foi relativamente rápida essa recuperação, é preciso é saber que há ajuda.   

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E há toda aquela sacralização da mulher que é mãe, como se fosse a Nossa Senhora, ainda mais na nossa cultura.

Às vezes digo: ou és a Virgem Maria ou a Maria Madalena. Parece que não há nada no meio, ou poder ser-se as duas coisas de vez em quando ou ao mesmo tempo! Também tem muito a ver com aquela coisa de os homens pensarem sobre as mães: "A minha mãe é a mãe!" (risos) Pronto, mas também é mulher e tem desejos e zangas, tem tudo.

Achas que há um patamar, quando se é mãe, que as pessoas olham para ti com um respeito diferente?

Talvez, eu acho que existe e também existe essa união das miúdas que são mães. Passei a ter algumas mulheres com quem falo mais, às vezes já nem tem que ver com os filhos, falamos de nós, esse elo é muito bonito e é um suporte bom. Em relação aos homens costumo brincar, como diz uma amiga minha: és mãe, sais do mercado como mulher. De todo estou viva!

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A tua música sempre foi muito "feminina", embora não goste do rótulo, é o que é. O feminino sempre foi importante para ti, cresceste numa família de mulheres fortes?

A minha avó materna e a minha mãe tinham muito a atitude de "eu fazer a minha vida". A minha avó discutia com o meu avô e levantava a voz e trabalhou, foi costureira de alta-costura, teve uma vida feminina com voz. A minha mãe também teve uma carreira. Não é que se falasse muito conscientemente das coisas, mas sempre houve esse exemplo e onde aprendes mais é a ver, mais do que aquilo que te digam, ver a atitude delas acho que me ensinou a defender-me e a querer isso para mim. A minha avó, a coisa que me dizia mais vezes quando eu estava a crescer era: "Nunca dependas de um homem financeiramente, porque assim vais estar no sítio certo pelo motivo certo". Foi super forte para mim e ficou.

Tiveste um espetáculo, o The Other Woman - O Mundo nas Canções d'Elas, criado por ti em 2012, uma homenagem às músicas que te inspiram como PJ Harvey, Loretta Lynn, Lhasa de Sela, Joan Jett, Nina Simone, Dolly Parton, Joni Mitchell, Amélia Muge, Patti Smith ou Sheryl Crow. O que existe em comum a todas elas?

Terem uma voz, marcaram a sua identidade, "estou aqui para dizer isto agora", e é o que me comove. Porque, infelizmente, muitas vêm de gerações para trás, o espaço que havia para a mulher na música era reduzido e elas desbravam caminho e vieram dizer: "Não, o palco agora é meu e tenho pessoas que querem vir ouvir o que eu tenho para dizer". E isso é muito forte.

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Foto: Vitorino Coragem

Não sabia que a tua avó era costureira, mas o teu amor à Moda e às coisas bonitas parece evidente. Continuas a gostar de sapatos vermelhos?

Continuo, não tenho muitos, sinceramente, agora tenho estes com cerejinhas. Mas adoro sapatos, desde adolescente que parava nas montras a ver as cores. A Moda para mim é muito isso: peças que me me contam histórias e levam a viajar. Não é o glamour propriamente, é a beleza. E marcou-me muito, além de ver a minha avó a costurar os vestidos para as senhoras em casa, no jardim de infância havia um baú com coisas para brincar que tinha roupas, disfarces e era o momento do dia, disfarçarmo-nos e brincar, porque para mim a roupa é um veículo para contar histórias. Ok, se eu vestir esta capa ou este vestido, posso ser… E a partir daí vais ser.

Estudaste Psicologia Clínica e és Caranguejo, deves sentir muito e pensar muito sobre o que sentes – isso ajuda-te ou desajuda-te?

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Aquela ideia de que vais tirar um curso de Psicologia e ajudar-te, esquece. Tu só és tu também através dos outros e do olhar dos outros e da relação com o outro. Se me perguntares coisas técnicas sobre traços de personalidade consigo identificar, mas no meu dia a dia não estou com isso presente, nem avalio as pessoas: olha, este é um narcisista ou tem um comportamento assim. Ajuda-me em determinadas circunstâncias, quando digo que sou deprimida e sei porquê, e se o vir à minha frente também saberei, ajuda-me a identificar sintomas mais rapidamente. Não gosto de rotular, os bons psicólogos e psiquiatras dão um nome qualquer, mas entendem o todo, ninguém é só doente mental, tem um outro lado saudável e livre. E descobrir isso é importante, a Psicologia só assim é que faz sentido. Tens um sentido do comportamento humano mais aprimorado, podes não ser tão surpreendida ou não te decepcionares tanto.

Neste disco pareces pairar sobre as coisas que te aconteceram, ou nos acontecem a todos, falas da fragilidade dos afetos, do medo paralisador do que não controlamos, das quedas e da dor que não se evitam. Nós não decidimos quase nada, pois não?

Não e eu cresci com um medo gigante disso, e ainda tenho muito medo que a vida me surpreenda pela negativa. Mas o que é que posso fazer? E acho que essa é a verdadeira resiliência, e que se vai conquistando aos poucos, eu diria que é o maior ensinamento. Somos tudo e não somos nada, é um cliché, mas é verdade e aceitar isso com humildade e disponibilidade, "estou aqui, vamos lá ver o que é que me calha", e aceitar isso, ter esperança e fé, obviamente, de que o aí vem é bom. Somos felizes quando conseguimos dar esse clique, somos livres e isso é poderoso.

Foto: Vitorino Coragem
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