Mariza: “Custa muito quando saímos de uma sala com 5 mil pessoas para um quarto de hotel vazio. Perguntamo-nos o que é que fizemos de errado”
Discos de platina, prémios, comendas, centenas de concertos um pouco por todo o Mundo, mas quem é realmente Mariza, a dona deste currículo impressionante, que ousou cantar fado com o cabelo muito curto e os sofisticados vestidos de João Rôlo? No livro Os Anéis do Meu Cabelo - A História de Mariza, escrito pela jornalista Dina Soares (edição Oficina do Livro), ficamos a saber tudo, desde a infância agridoce em Moçambique à solidão sentida pela mulher quando, depois do triunfo e das palmas, entra num quarto de hotel vazio. Ouçamo-la.

Máxima: O que a levou a querer contar-nos a história da sua vida sob a forma de livro?
Mariza: Era um desafio dos que me são mais próximos. À medida que me aproximava dos 20 anos de carreira, que deveriam ter sido celebrados em 2020, diziam-me: "Está na hora das pessoas que gostam de ti saberem mais sobre ti e de lhes contares um pouco da tua infância e da tua vida, mas eu ia dizendo que não. Achava que não tinha coisas interessantes para contar ou sentia-me desconfortável com a exposição que isso significaria. Até que me disseram: "Olha, há uma editora em que temos muita confiança e que gostaria de abraçar este projeto. Devo-lhe dizer que a Dina Soares, que escreveu o livro, sofreu porque havia dias em que eu tinha dúvidas, em que já não sabia se queria falar ou não. Mas o resultado está aqui.

E revê-se neste resultado?
Ao princípio estava zangada mas acabei por ter uma sensação boa.
Foi um processo nostálgico, de celebração ou um bocadinho de tudo?

Um pouco disso tudo, mas foi sobretudo um sentimento de invasão, quer da minha vida, quer da minha família que eu tento sempre proteger de tudo e de todos. Senti-o um pouco ao contar a minha infância, o casamento misto dos meus pais, que, ao chegarem aqui, em 1976, eram olhados de lado. A minha mãe é mulata escura, o meu pai é alto, louro, de olhos claros, e, como tal, andar na rua não era uma coisa fácil. Tenho muito presente a estranheza causada quando eu, branca, chamava "mamã" à minha própria mãe, o que obviamente não é uma memória simpática. Mas tenho uma noção muito clara de onde vim, aliás tenho uma mãe que todos os dias me puxa o pé para a realidade. Em casa não há a Mariza cantora, há a Mariza mãe e a Mariza filha. Na minha vida, o palco e a casa não se opõem, complementam-se. Preciso de ambas as partes para me sentir completa.

O mundo na Mouraria

A sua educação, como conta no livro, foi muito cosmopolita, por oposição ao mundo muito fechado da Mouraria, em Lisboa, para onde vieram viver quando chegaram de Moçambique.
O meu pai viveu em Macau muitos anos e tinha viajado muito, estivera com o meu avô na Venezuela, por exemplo, ou no Brasil. A minha mãe tem uma cultura africana, completamente diferente na forma de estar perante a vida. Foi ela que me ensinou a ler e que, de algum modo, me influenciou as leituras porque ela é uma grande leitora (hoje talvez menos). Em miúda eu lia um pouco de tudo, desde Pepetela à Bíblia. Até as revistas das Selecções do Reader's Digest. Devorávamos aquilo juntas. Quando penso nisso, acho que era uma espécie de Instagram da altura porque o Mundo nos chegava através daquelas páginas. Mas o melhor de tudo era a música que ela me ensinou a amar.
Havia música para além do fado?

Não me lembro sequer de a ver a ouvir fado. Hoje ouve a Rádio Amália, mas naquela altura tinha outras preferências como Miriam Makeba, com quem tive o privilégio de cantar muitos anos depois, o Bana, a Cesária Évora muito antes dela ser famosa, música das Antilhas, Mahalia Jackson, Nina Simone, Ella Fitzgerald, Frank Sinatra, Roberto Carlos, música do Brasil. O conhecimento que tenho da Música Popular Brasileira devo-o todo a ela. O meu mundo dentro de casa era, de facto, um mundo. Quem é que, nessa época, ouvia música da África do Sul? O meu pai, sim, ouvia fado, sobretudo vozes masculinas. Mas, claro, na Mouraria, muito diferente da de hoje, as senhoras limpavam as casas ao som dos discos (ou até de cassetes) do Fernando Farinha, do Fernando Maurício. Às vezes, elas próprias cantavam muito bem.
No entanto, estamos a falar dos anos 1970, quando o fado passou a ser associado à ditadura e passou a ser encarado com um certo desprezo. Alguma vez sentiu essa nova realidade?
No bairro não existia isso. Continuava-se a fazer as tardes fadistas e as coletividades tinham-no sempre na programação. Era a alma do lugar.

Mas, como diz no livro, a Mariza resistiu muito a cantá-lo em público…
Quando tinha uns 15, 16 anos, eu gostava de ouvir um grupinho local que cantava, nem era com guitarra portuguesa, mas com uma viola. Um dia, eu quis cantar e houve alguém que me disse: "Ó miúda, tu cantas diferente." Quando somos adolescentes, isto é a pior coisa que nos podem dizer. Diferente é mau. Eu já me sentia um pouco à parte porque na Mouraria a casa da minha mãe era a casa da preta. Então, deixei de cantar. Ouvia, ia para os Ferreiras, para todo o lado, mas não cantava fado. Cantava outras coisas, soul, r&b, música brasileira, na altura muito cantada em barzinhos. Ouvia outras pessoas a cantar e às vezes dava por mim a pensar: "Se fosse eu, dava aquela volta de outra maneira." Mas não me atrevia. Era o Fernando Maurício, que encontrava muitas vezes lá na Rua dos Cavaleiros (chamava-me "girafinha"), que me perguntava se eu continuava a cantar. Muito mais tarde, quando já cantava fado, tive o privilégio de cantar ao lado dele. Era um homem de enorme generosidade, que me disse que eu podia cantar o que quisesse dos fados dele. Esta generosidade é um maravilhoso reconhecimento. Também tive o Carlos do Carmo a dizer-me: "A menina cante o que quiser." É um reconhecimento mas é sobretudo uma forma de nos dizerem: "És daqui."


Também fala muito da Maria da Fé. É uma das suas maiores referências?
É uma mulher extraordinária. É muito engraçado quando ela se põe a explicar as métricas, a separação dos versos, o modo como ela transmite a sua experiência de décadas. É por isso que o fado é transmissão oral dos mais velhos para os mais novos. Já com o Carlos do Carmo eu fazia isso, ficava horas e horas a ouvi-lo contar histórias da mãe, do Alfredo Marceneiro. Tenho tantas saudades do Carlos! Não era uma pessoa a quem ligasse todos os dias mas eu sabia que ele estava ali. Aprendi a gostar de Paris com ele e com a sua mulher, Judite, ou com o Júlio Pomar e a Teresa. Fizemos viagens fantásticas juntos. Chegámos a ir ver concertos do Tony Bennett a Nova Iorque. Aprendi muito mesmo.
Fala muito de Moçambique, onde nasceu e de onde é originária a sua mãe. Vai lá com alguma frequência?

De dois em dois anos vou lá. E falo muito com a família que lá tenho (avó, tios, que são muitos porque a minha mãe é a mais velha de 16 irmãos).
Ainda tem memórias da sua infância lá?
Tenho memórias muito precisas dos meus dois anos, em Moçambique. Lembro-me da quinta dos meus avós, lembro-me da casa dos meus pais na cidade, da quinta do meu pai, de brincar com os coelhos bebés, deve ser por isso que ainda hoje não como coelho. Mas também tenho memórias menos bucólicas, como a de ir visitar o meu pai à cadeia, depois dele ser preso pela Frelimo, do próprio momento em que ele foi preso, até da cor do carro que o foi buscar e de o ver a fechar a porta de casa.

Mexer nos santinhos do altar do fado
Voltando à música, há quem diga que a Mariza "mexeu nos santinhos do altar do fado". Um dos aspetos em que mais inovou foi precisamente no modo como cuida da sua apresentação em palco, cortou o cabelo curtinho, não usa vestidos negros nem xaile. Como é que isso aconteceu?
Há coisas na vida que não se explicam: eu conheci o João Rôlo e o Eduardo Beauté através da Maria da Fé. Eles foram um dia ao "Senhor Vinho" e, passado uns tempos, perguntaram-me se eu não gostaria de ser vestida por eles. Nessa altura, eu tinha o cabelo muito comprido e o Eduardo Beauté cortou-me o cabelo.
O que causou um choque.
Um choque para toda a gente. E eu dizia: "Mas eu canto com a voz, não canto com o cabelo. Sou como sou e não vou mudar a minha personalidade porque canto este género de música." Mas esse cuidado todo foi a concretização de um sonho de menina: Eu sempre gostara muito de Moda, mas não tinha dinheiro para lá chegar. Ao princípio, o João moldava-me muita a imagem mas depois eu fui dizendo quero mais isto ou aquilo. Comecei a fazer as minhas escolhas porque fui percebendo o que é que funcionava ou não. Preciso de me mexer bem em palco porque danço muito.
O que é outro santinho derrubado.
Na verdade, sim. Quem é que se lembrou de cantar com o cabelo curto? Eu. O mesmo aconteceu com os vestidos completamente diferentes, com cores, com a dança, mas também do ponto de vista musical rompi com as regras. Sou eu que introduzo a percussão no fado, o piano, agora tenho acordeão. Tem a ver com a minha forma de estar. Não aceito que me coloquem limitações. Se eu não sinto, não canto. Se eu estiver em palco e achar que o caminho que estou a seguir não está correcto, mudo-o. Não há dois concertos iguais e não há públicos iguais. Eu quero que as pessoas que vão a um espectáculo meu, dispondo do seu tempo e do seu dinheiro, saiam dali a dar por bem empregues esse tempo e esse dinheiro.
Nunca quis estar fechada na gavetinha do fado?
Não quero porque não me considero uma fadista. Sou uma cantora, sou uma intérprete. O Chuva não é um fado, o Gente da Minha Terra também não. Ou O Melhor de Mim. Podem ter talvez uma interpretação próxima do fado mas detesto que me rotulem ou que me limitem. Gosto de explorar caminhos, de perceber outras coisas.

A solidão da mulher de sucesso
Esteve dois anos sem trabalhar a seguir ao nascimento do Martim, como é que foi?
Na verdade, foram quase três e foi muito difícil. Mas também foi algo muito poderoso. Sempre me tinham dito que não podia ter filhos e, de repente, engravidei e nasceu-me uma criança de 25 semanas e meia, que chegou a pesar 483 gramas. Sempre acreditei que as coisas iam melhorar, sou muito crente, todos os dias pedia a Deus que me ensinasse o caminho.
E às vezes zangava-se com Deus?
Claro que sim, os amigos também se zangam, não é? O Martim veio para casa, ainda muito frágil, e eu senti que não podia cantar enquanto ele não estivesse bem. Eu não podia dar-me ao público enquanto me sentisse vazia. Toda a minha preocupação e amor estavam voltadas para aquele ser pequenino que precisava da minha atenção constante. Fui voltando a trabalhar muito devagar.
Com uma frontalidade talvez inesperada para o leitor, a Mariza aborda no seu livro a solidão da mulher de sucesso…
É grande. A idade vai-nos trazendo uma segurança que não temos aos 20 ou aos 30 anos, quando não percebemos que mais vale estar só do que mal acompanhado e que a vida tem outras coisas para explorar. Há uma solidão grande, há o outro lado que não entende uma mulher trabalhadora, que tem muita visibilidade e que quando está em casa dedica a maior atenção ao filho. Mas custa muito quando saímos de uma sala para aí com 5 mil pessoas, em que tudo correu muito bem, mas o que nos espera é um quarto de hotel completamente vazio. Tenho que ser sincera: Dói que se farta. E aí perguntamo-nos porquê, o que é que fizemos de errado.
O sucesso ainda é mais cobrado às mulheres do que aos homens?
Creio que continua a parecer estranho que uma mulher tenha mais visibilidade do que o seu companheiro ou que ganhe mais dinheiro, mesmo que essa mulher se desdobre em cinco, se for preciso. Levamos o filho à escola, vamos ao ginásio, trabalhamos, fazemos o jantar, ajudamos o filho a fazer os trabalhos de casa, se for preciso. E ainda somos penalizadas se estamos muito tempo fora de casa. Para as mulheres independentes, o preço ainda é demasiado alto.
