RBG. A juíza que lutou pelos direitos das mulheres (mas não só)

Ícone feminista, figura histórica da justiça norte-americana, Ruth Bader Ginsburg morreu esta sexta-feira aos 87 anos. Enquanto se multiplicam as homenagens e tributos, o clima político pré-eleitoral adensa-se. Por Joana Moreira

Ruth Ginsberg Foto: Getty Images
21 de setembro de 2020 às 08:54 Joana Moreira

Três letras bastam para descrever Ruth Bader Ginsburg, RBG, a segunda mulher a chegar ao Supremo Tribunal dos EUA e uma pioneira na defesa pela igualdade de direitos entre homens e mulheres. A vida de luta chegou ao fim na sexta-feira, 18 de setembro, na sua casa, em Washington, fruto de complicações do cancro prolongado.

Pequena, de aspeto frágil, a sua aparência era frequentemente comentada, mas a sua resiliência era inabalável. Ginsburg treinava com um personal trainer para se manter ágil e, pese embora batalhasse contra o cancro (primeiro no cólon e depois no pâncreas), nunca deixou de trabalhar. "Já passou por dois tipos de cancro sem nunca faltar um dia no tribunal", aponta a filha, Jane Ginsburg, num documentário biográfico sobre a mãe.

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Considerada da ala progressista do Supremo Tribunal, Ruth Ginsburg fez da defesa dos direitos das mulheres e das minorias a sua missão muito antes da chegada ao mais alto tribunal federal dos Estados Unidos. Fez parte da União Americana pelas Liberdades Civis (ACLU), onde cofundou o Projeto dos Direitos das Mulheres, e também o Women's Rights Law Reporter, um jornal de direito centrado exclusivamente nas mulheres.

Foto: Jim Davis, Getty Images

 

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Formada em Direito nas Universidades de Cornell, Harvard e Columbia, foi rejeitada diversas vezes por ser mulher, apesar das qualificações e recomendações. Defendeu casos de mulheres que perderam o emprego com a gravidez, bem como de homens injustiçados por leis assentes em estereótipos. Um dos processos mais emblemáticos da sua carreira foi o de Stephen Wiesenfeld, um homem que, após ficar viúvo, percebeu que não tinha direito ao subsídio da segurança social norte-americana que lhe permitiria trabalhar menos para cuidar do filho pequeno. Tudo porque, nos anos 70, nos Estados Unidos, apenas as mulheres estavam elegíveis para tal subsídio. Esta distinção entre pais e mães baseada em papéis de género estereotipados no seio familiar levou Ginsburg a guiar o caso até ao Supremo Tribunal, que considerou inconstitucional esta discriminação.

"As diferenças inerentes aos homens e mulheres, conforme as apreciamos, continuam a ser motivo para celebrar, mas não para denegrir os membros de qualquer dos sexos com base em limitações artificiais às oportunidades de um indivíduo", escreveu a magistrada mais tarde, já no Supremo Tribunal, desta vez sobre um caso contra a política de admissão que excluía mulheres de uma escola militar pública.

A discriminação de género, os direitos parentais, os direitos dos imigrantes, a defesa do casamento entre pessoas do mesmo sexo, a legalização do aborto, o alargamento ao voto ou os cuidados de saúde universais foram apenas alguns dos temas que RBG fez por dar visibilidade, sempre de olhos postos num futuro marcadamente feminista. "As mulheres só vão alcançar a verdadeira igualdade quando partilharem com os homens a responsabilidade de educar a geração seguinte", defendia, sem esconder que só ficaria satisfeita com o seu trabalho "quando existirem nove mulheres no Supremo Tribunal".

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Em 1980 foi designada pelo Presidente James Carter para o Tribunal da Relação do distrito de Columbia. Em 1993, entrou para o Supremo Tribunal dos Estados Unidos, por escolha do Presidente Bill Clinton, aquando da saída do juiz Byron White. "Vi-me como uma educadora de infância, naquele tempo, porque aqueles juízes nem sequer sabiam que a discriminação de género existia", admitiu. Quando a juíza Sandra Day O’Connor se retirou em 2006, Ginsburg tornou-se a única mulher no Supremo Tribunal. Esse tempo, viria a confessar mais tarde, numa entrevista ao The New Republic em 2014, foi particularmente difícil: "A imagem para o público ao entrar na sala do tribunal era de oito homens, de um determinado tamanho, e depois esta mulherzinha sentada ao lado. Não era uma boa imagem para o público ver".

Foto: Ron Sachs, Getty Images

O Supremo Tribunal só viu mais mulheres três anos depois, com a chegada de Sonia Sotomayor e, em 2010, Elena Kagan. Ambas nomeadas por Barack Obama, que, no adeus a Ginsburg, a descreveu como "uma guerreira pela igualdade de género". "Ajudou-nos a ver que a discriminação com base no sexo não tem que ver com um ideal abstrato de igualdade; não prejudica apenas as mulheres; tem consequências reais para todos nós. Tem que ver com o que somos e com o que podemos ser", disse.

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O nome Ruth Ginsburg nem sempre foi sinónimo de progressismo, mas com o lado conservador a ganhar espaço na instituição, a juíza aproximou-se cada vez mais da ala progressista. "O trabalho da Ruth fez me sentir protegida pela constituição norte-americana pela primeira vez", afirmou a ativista Gloria Steinhem. Na verdade, o nome Ruth Ginsburg sempre foi reconhecido no meio ativista, mas foi já no final da sua vida que a juíza filha de pais judeus ganhou um protagonismo global, conquistando admiradores entre várias camadas da população norte-americana, particularmente a mais jovem.

O documentário biográfico "RGB", de 2018, nomeado para os óscares e para os prémios BAFTA, explora precisamente como Ruth se tornou um ícone da pop culture que lhe valeu até a alcunha de Notorious RBG, um trocadilho com o nome do rapper Notorious B.I.G, nascido em Brooklyn, tal como a juíza. O merchandising, de t-shirts a canecas ou pins, não é só popular como aprovado pela própria, que o enviava de presente para colegas, com o mesmo humor com que se ria até soluçar quando observava a sua caricatura no programa Saturday Night Live, interpretada por Kate McKinnon. "Para muitos de nós, a juíza Ginsburg foi uma heroína da vida real: um farol de esperança, uma guerreira pela justiça, que salvava o dia uma e outra vez" partilhou com o USA Today a atriz, este sábado, em comunicado. "Interpretá-la no SNL foi uma alegria profunda porque pude sempre sentir o amor e a gratidão avassaladores que o público tinha por ela. Foi uma das grandes honras da minha vida conhecer a magistrada Ginsburg, apertar-lhe a mão e agradecer-lhe pelo seu serviço de uma vida a este país", disse McKinnon.

As mensagens de carinho e admiração têm-se reproduzido um pouco por todo o mundo. O juiz-presidente do Supremo Tribunal dos Estados Unidos, John Roberts, declarou que o país "perdeu uma jurista de dimensão histórica". "Perdemos uma colega estimada. Hoje estamos de luto, mas confiantes de que as gerações futuras recordarão Ruth Bader Ginsburg como nós a conhecemos, uma incansável e decidida campeã da justiça", disse. A jovem deputada Alexandria Ocasio-Cortez escreveu nas redes sociais: "Perdemos uma gigante da história da nossa nação com a morte de Ruth Bader Ginsburg. É de partir o coração que nos momentos finais ela tenha estado, como muitos outros, preocupada com o que acontecerá após a morte. Quero deixar uma coisa bem clara: podemos e devemos lutar."

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Já o Presidente dos EUA reagiu à morte de Ginsburg da seguinte forma: "Teve uma vida fantástica. Que mais se pode dizer? Foi uma mulher fantástica, concordasse-se ou não com ela, foi uma mulher fantástica que teve uma vida fantástica". A relação da juíza com Donald Trump tem um histórico. Ginsburg chegou a chamá-lo de "fingidor" ("faker"), antes de este ser eleito Presidente dos EUA, uma atitude pela qual viria a pedir desculpa mais tarde, não pela substância das suas palavras, mas por estas não se adequarem ao seu papel enquanto membro neutro do Supremo Tribunal.

E depois do adeus?

Enquanto as despedidas a Ruth continuam, ergue-se a controvérsia em torno da sua substituição. A poucas semanas das eleições presidenciais norte-americanas, o líder do Partido Republicano no Senado, Mitch McConnell, defende que é o Presidente Donald Trump que deverá nomear o sucessor de Ginsburg. Já o Partido Democrata defende que se aguarde pelo resultado eleitoral. "Esta noite e nos próximos dias vamos estar focados na morte da juíza e no seu legado imortal. Mas para que não haja qualquer dúvida, deixem-me ser claro: os eleitores devem escolher o Presidente e o Presidente deve escolher o juiz para que o Senado o considere", afirmou Joe Biden, o candidato democrata à Casa Branca. Biden lembrou ainda que em 2016, após a morte do juiz conservador do Supremo Tribunal Antonin Scalia, o líder da maioria republicana do Senado, Mitch McConnell (sim, o mesmo), ignorou o substituto escolhido pelo então Presidente Barack Obama e não submeteu a sua nomeação a voto, com o argumento que não fazia sentido uma aprovação em ano eleitoral. Na época, como referiu Biden, faltavam quase nove meses para as presidenciais. Agora faltam apenas 46 dias.

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Entretanto, Donald Trump já fez saber que escolherá uma mulher para o Supremo Tribunal já na próxima semana.

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