Uma pessoa olha em redor, faz uma ronda pela atualidade, e nem sabe no que pegar ou por onde começar. São tantos os casos em que a sociedade se atira de uma maneira agressiva e ostensiva à figura feminina que se torna difícil escolher um só ponto.
Lá de fora, continuam a chegar novidades acerca de como a Inteligência Artificial - ou o recurso a ela - tem vindo a gerar novas e criativas formas cruéis de violência contra as mulheres, atingindo um novo píncaro de degradação na tendência das violações simuladas. “It’s trending.”
Cá dentro, é notícia a violação de uma adolescente de 14 anos por um grupo de rapazes também adolescentes - que filmaram e distribuíram o vídeo online. Podemos e devemos pensar “em que é que nós falhamos?”, e certamente chegaremos a conclusões, mas o flagelo do aumento deste tipo de violações não pode ser dissociado do crescimento daquelas tendências na pornografia, nem dos influencers ultramachistas que vão povoando tik-toks, instagrams e podcasts que são consumidos pelos mais novos.
Conseguimos evoluir ao ponto de controlar os gramas de sal num papo-seco, prevenindo a tensão alta, mas somos incapazes de regulamentar, enquanto estado (ou estados), as emissões em plataformas de ampla, vastíssima difusão, mesmo com as consequências que observamos? Como é que isto é possível?
Prossigamos. Podíamos também falar das mulheres grávidas, que dão à luz em ambulâncias, ou que perdem os seus bebés por negligência e recusa das instituições de saúde, ou ainda, como num caso recente e inaceitável de tão trágico e grave, morrem depois de terem sido recusadas por hospitais (nesse caso absolutamente dramático, também o bebé acabou por perder a vida). Podemos e devemos sublinhar que tudo isto não teve - e, parece-me, não terá - qualquer consequência política. A ministra da Saúde, que aparentemente é quem decide sobre a sua permanência no cargo, sobrepondo-se ao próprio primeiro-ministro, avisou logo, e mais uma vez, que não se demite.
Já perdemos a conta às vezes que pensámos “é desta que a ministra cai”, mas ela não cai. E só há duas justificações plausíveis para esta resiliência de Ana Paula Martins, que se mantém na posse de uma das pastas mais importantes do Governo, mostrando-se imune a qualquer polémica, caso, escândalo ou falhanço inequívoco: ou a ministra sabe sobre o chefe de Governo alguma coisa indizível, que o compromete ao ponto de Ana Paula Martins se tornar intocável, ou então, e ao contrário da percepção geral acerca do seu desempenho - abaixo de miserável -, está a cumprir muitíssimo bem a missão de que foi incumbida. É que a ministra da Saúde, mais do que errar sucessiva e incontornavelmente, parece vir a cumprir uma agenda bem clara de destruição do Serviço Nacional de Saúde, acima de tudo. E essa missão passa também por afrontar o direito da mulher à saúde, nomeadamente os direitos das grávidas.
Podíamos continuar por outros assuntos, porque está visto que este País não é para mulheres. No meio da avalanche antifeminina, emergem ainda as declarações de Rosário Palma Ramalho, ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, que afirma que os direitos exclusivos às mulheres que trabalham e são mães lhes é “muito prejudicial” no mercado de trabalho. A ministra referia-se, mais especificamente, às licenças de amamentação e de maternidade.
O raciocínio de Rosário Palma Ramalho é, para dizer o mínimo, perverso. Há uma inversão de fatores que é tão descabida que uma pessoa dá por si a tentar desmontá-la e decifrá-la. Contudo, quando apanhamos o fio à meada, percebmos que, da mesma maneira que a nossa ministra da Saúde está a concretizar um trabalho que vem sendo feito ao longo de mais de duas décadas - refiro-me ao desmantelamento do SNS, ao ponto de o tornar obsoleto, levando-nos à ilusão de que estamos a pagar impostos para um sistema que não funciona (obviamente que não funciona, se todos os dias desinvestirmos um bocadinho mais) -, a ministra do Trabalho parece cumprir uma outra agenda. E é uma agenda muito conservadora, que me parece bastante clara: a devolução da mulher ao lugar que a nossa sociedade lhe consagrou em tempos, e que agora se prepara para recuperar, ainda que ligeiramente remodelado. Resumidamente, esse lugar é o de mãe, em casa, a cozinhar para o marido e para os filhos, a tomar conta do lar. Parece que é a isto que queremos reduzir a mulher - e poupem-me, por favor, ao discurso de que há mulheres que preferem esse modo de vida: se preferem e se o conseguem manter, as minhas felicitações sinceras, porque aqui não se trata de dizer o que está certo ou errado no modo de vida de cada um; trata-se de permitir a cada um escolher o seu modo de vida em igualdade de circunstâncias com os demais.
As palavras da ministra do Trabalho apontam, não sei se voluntária ou involuntariamente, para uma dicotomia: a mulher, se quer ser mãe, não pode estar a trabalhar, é incompatível. Tem de escolher.
Trata-se, em certa medida, de uma escolha semelhante à de uma freira: se quer seguir o chamamento e a vocação, tem de abdicar da vida secular, nomeadamente da possibilidade de ser mãe. Da mesma maneira que dantes, durante o Estado Novo, ser freira era uma alternativa de vida para muitas mulheres, nesta nova era, as mulheres que tenham elevadas ambições profissionais, devem tornar-se religiosas do liberalismo empreendedorista. Em vez de se devotarem a Deus, tornam-se devotas do mercado; no lugar de ascenderem aos céus no fim da sua caminhada espiritual, ascendem, na melhor das hipóteses, numa hierarquia corporativa ao longo de uma caminhada que a sociedade quer e exige que seja exclusivamente profissional. Não vamos exagerar afirmando que a prática exige o celibato, mas, pelo que se pode observar, dir-se-ia que é desaconselhável constituir família: ter filhos é, à luz da defesa dos direitos das mulheres que a ministra do Trabalho diz que tem feito, um handicap.
Qualquer mulher que queira ser mãe e mantenha ambições profissionais é, hoje, perante esta reformulação dos direitos de maternidade e amamentação, uma mulher condenada ao fracasso em, pelo menos, um dos campos. Ter sucesso nos dois afigura-se uma impossibilidade, porque, por mais voltas que Rosário Palma Ramalho dê ao texto - e a ministra dá-as, pretendendo transformar direitos em obstáculos -, essas duas vertentes da mulher são inconciláveis.
Considerar que uma mulher, porque tem direitos, deixa de ser preferida pelo mercado, em detrimento dos homens, que não podem engravidar e, logo, não têm os mesmos direitos, é uma enorme falácia. Se queremos evitar que tal aconteça, porque não se penalizam as empresas que contratam dessa forma? Porque estamos, então, a negociar um novo Código do Trabalho que facilita os despedimentos sem justificação clara e comprovada? Porque não se beneficiam as outras empresas, as que mostram boas práticas? Elas existem e merecem que se lhes reconheça o trabalho e o mérito na equiparação de homens e mulheres. Mas não, em vez disso, punimos o elemento da equação que está, à partida, mais fragilizado e que devíamos sempre proteger: as mulheres que querem ser ou que são mães.
Quando uma sociedade considera a maternidade um defeito, não me resta senão acreditar que estamos muito perto do colapso moral - e, por conseguinte, da falência do sistema vigente. O que é muito assustador, tendo em conta as alternativas que se vão configurando no horizonte.