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Mário Barroso: “O machismo societal da época era colossal. A mulher era um ser inferior”

O cineasta português regressa com um filme sobre uma das histórias portuguesas que mais suscita mistério, intriga e curiosidade. É a história de Maria Adelaide, a herdeira rica e “louca” que fugiu por amor com o motorista da família. Maria de Medeiros confere-lhe um toque masculino, feroz e autêntico.

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18 de setembro de 2020 às 08:15 Rita Silva Avelar

Ordem Moral, com argumento de Carlos Saboga e Mário Barroso, e realizado pelo último, é a história de "uma mulher livre e corajosa". É desta forma que o realizador explica aquilo que quis fazer com a vida de Maria Adelaide Coelho da Cunha, herdeira do Diário de Notícias, que em 1918 fugiu por amor com o motorista da casa, acabando por cair em desgraça social e por ser declarada louca, numa época patriarcal e em que a saúde mental não tinha discussão: ou se era louco, ou não se era.

Se Agustina Bessa-Luís narrou a história de Maria Adelaide de uma perspectiva em Doidos e Amantes, em 2005, Manuela Gonzaga fê-lo de outra, em 2017, em "Doida não e não!– Maria Adelaide Coelho da Cunha", e Mário Barroso fá-lo agora de outra, muito particular. O talento e a beleza inequívocos de Maria de Medeiros levaram a que fosse eleita para protagonista, aliada a um elenco de peso onde se incluem nomes como Ana Bustorff, Albano Jerónimo, Marcello Urgeghe, João Pedro Mamede, Júlia Palha, Ana Padrão, João Arrais ou Sónia Balacó.

Em entrevista à Máxima, Mário Barroso recorda como tudo começou, da ideia para Ordem Moral até ao momento atual, em que o filme está nas salas de cinemas portuguesas.

Como se proporcionou contar a história de Maria Adelaide Coelho da Cunha? Contar uma história verídica é sempre um duplo desafio para um realizador?

A história da Maria Adelaide é uma história que eu conheço há muitos anos. Foi uma coisa que eu ouvi falar em miúdo mas que não liguei grande coisa. Não me lembro a propósito de quê, mas em 2014 o Paulo [Branco] achou que eu estava a ser muito preguiçoso e desafiou-me a começar um projeto (risos). Nesse momento veio-me à ideia a história da Maria Adelaide, que era uma história de que eu gostava muito, e que mais tarde tomou uma outra força, em mim, a ideia de fazer um filme sobre uma mulher livre que tinha tido a coragem de assumir a sua própria vida e abandonar tudo, mesmo sem estar à espera das consequências. Nessa altura escrevi uma sinopse muito inventada, porque não tive logo acesso a documentação, mas integrando a Maria Adelaide no contexto da Gripe Espanhola, de toda a tensão, do sincronismo, do pequeno sentimento de que iria chegar algo a Portugal. Entretanto, tive um problema grave de saúde e fiquei muito tempo isolado das pessoas. Nessa altura comecei a escrever o argumento, mais para me ocupar. Quando o terminei, o Paulo queria submete-lo a concurso. Eu achei que não poderia ser, porque achava que estava escrito de uma maneira muito inventada. Foi ai que entrou o Carlos Saboga, que me ajudou a fazer uma longa limpeza a esse primeiro argumento, e que o reescreveu na totalidade.

Foi influenciado pelos livros de Agustina Bessa-Luís e de Manuela Gonzaga?

Evidentemente que há muita informação no livro de Manuela Gonzaga, mas quem vê o filme percebe que eu fiz tudo menos uma biografia. Não me apeteceria, nem eu gostaria de fazer uma biografia sobre uma pessoa. (...) Há detalhes a que chega a Manuela que não me interessavam, nomeadamente o lado mais conformista. Também li a Agustina, que já tinha lido há muitos anos, apesar de ela ser uma pessoa complicada e de ser um pouco "conflituosa" com a Maria Adelaide, é muito anti Maria Adelaide. Mas há detalhes que não surgem nos livros, como por exemplo a história da feminização do chauffeur e da masculinização da Maria Adelaide, que é puramente inventada.

Foto:

Como percebeu que Maria Medeiros seria a protagonista perfeita para reconstruir a personagem?

Quando sugeri a Maria de Medeiros ao Carlos Saboga, ele concordou de imediato. Nós os dois ficamos imediatamente sintonizados em relação à Maria, sem fazer a mínima ideia se ela estaria disponível ou quereria.  A Maria de Medeiros, para mim, do ponto de vista visual, era a atriz ideal. Tem uma beleza muito particular, rara, e voilá!

Reconstruir o ambiente sócio cultural de época foi desafiante?

Sem eu ter noção, percebi que há muitos anos, a minha segunda metragem, O Milagre segundo Salomé [2004], se passava neste mesmo tempo. Era exactamente a mesma época com o mesmo ambiente sóciocultural. Fiquei ligeiramente preocupado (risos). A reconstituição cinematográfica da época foi a recriação de uma rua, e o ambiente foi dado mais pelos diálogos. De facto, se eu beneficiei de qualquer coisa de raro, foi do talento do Carlos Saboga. Com muito pouca coisa conseguimos chegar ao ambiente que queríamos. Depois, entrou muito a ideia do teatro, há ali um jogo permanente nesta história.

É também uma história sobre as mulheres numa sociedade patriarcal, numa época em que ainda tinham menos liberdade? Hoje discutimos esses temas mais do que nunca.

Isto é, de facto, a história de uma mulher, não é a história da mulher que era Maria Adelaide em particular. É a história de uma mulher livre e corajosa que abandona uma fortuna colossal e um ambiente luxuoso porque está saturada e farta da vida que leva. Aquilo de que eu quis fugir absolutamente foi da ideia militante. Sim, foi um comportamento de revolta pessoal e libertário, de uma vingança, mais do que propriamente um comportamento militante. E custava-me muito estar a aproveitar a época em que vivemos de uma forma oportunista.

Foto:

A questão da saúde mental também atravessa todo o filme… Foi interessante, descobrir algumas coisas nessa área e relativa à época?

Hoje em dia, aquelas apreciações médicas sobre a saúde mental parecem-nos algo absolutamente absurdo, mas era assim que era na época. O machismo societal na altura era colossal. A mulher era um ser inferior, não podia sair do país sem autorização marital, era perfeitamente absurdo. Todo o percurso do Egas Moniz, que as pessoas acham que é inventado, não é. O diagnóstico que ele faz no filme, está escrito por ele. Fomos aos seus escritos, e retirámos aquilo que a ciência da época considerava como verdadeiro. Era uma condição profunda, e servia, claro, os interesses dos maridos, fosse o diagnóstico do Egas Moniz, do Júlio de Matos ou do Sobral Cid. Ainda assim, nesta história penso que não existiu um complot, mas foi uma humilhação colossal tal, para um homem como era o marido da Maria Adelaide, que ou bem que ela ou era louca ou leviana. Para uma louca, já o comportamento seria mais aceitável.

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