“Não é verdade que se goste de todos os filhos da mesma maneira"

Tudo o que nunca lhe disseram, mas sempre quis saber sobre a gravidez, o bebé e a maternidade está em Quando Eu Estava na Tua Barriga, o mais recente livro do psicólogo Eduardo Sá. Para já, registe este statement: a gravidez não é sempre um estado de graça.

23 de julho de 2020 às 14:24 Pureza Fleming

Antes de mais, o que o levou a escrever este livro? Pode-se dizer que foi sentindo, ao longo da sua carreira, que havia muitas interrogações em torno do tema da maternidade?

 

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ES: Desde há muitos anos que eu trabalho com grávidas, com "grávidos" e com bebés e durante dez anos eu estive numa maternidade. Portanto, ao fim de muitos anos eu fui sentindo que haviam muitos aspetos na gravidez, na maternidade e no bebé que pareciam estranhamente obscuros, acerca dos quais muitas vezes não se falava de maneira clara. Invariavelmente as mães manifestavam-se com uma culpabilidade, como se fossem pessoas estranhas, como se fossem, de certa forma, piores mães por sentirem as coisas que iam sentindo. E eu notava muito isso. Parecia quase que havia a sensação de que falar-se do lado B dos momentos mágicos [da maternidade] podia afastar as pessoas de os quererem. Quase podia afastar as mulheres e os homens de quererem bebés e, de alguma forma, experimentarem essa vivência de parentalidade. E, portanto, foi nesse contexto que eu fui guardando muitos aspetos e fui trabalhando regularmente com estes até que a determinada altura achei que era muito importante nós podermos dizer às mães que, de facto, um filho é seguramente a experiência mais mágica que se pode ter, mas é uma experiência que nos vira absolutamente do avesso. Que vai buscar as nossas histórias mais guardadas, as nossas experiências enquanto filhos, mesmo aquelas que nós imaginávamos ter resolvido e que, ao mesmo tempo, nos atropela com vivências no dia a dia que são tremendas. Porque são muito interpelantes, muito exaustivas e é importante que se possa dizer às mães e aos pais que aquilo que eles sentem não só não é estranho, como faz parte e é absolutamente normal.

 

Acredita que este é um tema que está cheio de lugares comuns? Parece que, quando o assunto é maternidade, toda a gente tem uma palavra a dizer…

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ES: E às vezes de uma forma muito pouco razoável, sabe… Tão depressa uma grávida tem de se confrontar com as experiências menos agradáveis de outras mulheres que fazem questão, nessa altura, de as compartilhar: ‘Quando chegar a tua altura tu vais ver", que é quase uma espécie de presságio, muito mais do que uma experiência gratificante. Como a seguir estas mães, quando falam das suas conquistas como mães, parecem pessoas infalíveis, parecem nunca se terem enganado, nunca terem tido irritações e isso, tudo junto, faz com que uma mulher fique pequenina pequenina, sem muito espaço para poder falar nisso e sem muitas relações onde possa falar disso de uma maneira segura e que a faça sentir-se aconchegada. Porque a determinada altura é de um isolamento e de uma solidão muito injustas.

 

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É importante que as mulheres coloquem de parte as idealizações, bem como o romantismo, que gira em torno do universo que é dar à luz?

 

ES: É como se fosse uma verdade oficial… E ainda por cima eu tenho medo que, às vezes, as pessoas enganem as mães com a verdade. Porque se me perguntarem ‘é ou não é verdade que uma experiência de maternidade é rigorosamente mágica?’, é! Não tenho dúvidas nenhumas… Mas é como se a determinada altura nós ficássemos sempre no episódio ‘E depois foram felizes para sempre’. Uma mãe pode ser feliz para sempre como mãe, mas é como se em muitos momentos não lhe déssemos a oportunidade de dizer que está cansada, de dizer que já não suporta ver mais fraldas, que já não sabe o que é dormir uma noite como deve ser há meses, de quanto, às vezes, toda a gente tem olhos para o bebé e toda a gente parece esquecer-se de olhar para ela… E estas coisas todas são tão duras que, de repente, inquietam muito porque eu sinto que depois estas mães sofrem em silêncio. Como se já não bastasse toda a exigência que uma mãe põe sobre si própria, ainda surge mais esta: parecer que tem de ser absolutamente super-mulher quando é suposto que seja só mãe.

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Daqui até à culpabilidade feminina vai um tiro…

 

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ES: A máxima de qualquer grávida é que quer que o seu bebé seja "perfeitinho". É delicioso ver como elas [as grávidas] dizem isso. Porque elas não dizem que o bebé precisa de ser perfeito, a perfeição em pessoa, mas precisa sim de as fazer sentir a melhor pessoa do mundo. De tal ordem que quando o bebé, logo a seguir a nascer, perde uns breves gramas — porque às vezes são mesmo uns breves gramas —, todas as mães acendem os sensores em modo de alarme e põem-se a supor que, se o bebé perdeu breves gramas, é porque a mãe não esteve suficientemente bem. Como se o seu leite não prestasse e ficam logo numa culpabilidade sem sentido. Mas a culpabilidade das mães depois é uma espécie de bola neve — o que a mim me preocupa — porque é como se as mães quanto mais dessem, às vezes mais culpadas se sentem. Eu fico absolutamente comovido quando vejo uma mãe que não dorme há um rol de semanas, ou que dorme às prestações de duas horas — quando dorme —, e depois quando o bebé chora e ela está literalmente exausta de um ponto de vista físico e tinha um pretexto fora do vulgar para pôr todas as suas lamúrias cá para fora, aquilo que ela faz é exactamente o contrário. Vem do fundo da alma. Podem estar completamente exaustas, mas quando se trata de serem mães têm uns sorrisos e uns gestos de uma delicadeza e de uma bondade tais que abafa tudo o resto. E é aí que eu acho que nós não devíamos perder de vista este pormenor. Ou seja, que existem pessoas que amam de forma desmedida, mas que também têm bocadinhos de pensamentos maus ou de pensamentos assim-assim que ninguém lhes permite ter. E aquilo que eu gostava que ficasse claro é que quanto mais estas mães puderem assumi-lo, ainda melhores mães vão ser.

 

Escreve que as mães devem "estar cansadas ou tristes, esgotadas e entusiasmadas, furiosas ou nervosas, durante a gravidez". É legítimo uma mãe "perder a cabeça" de vez em quando?

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ES: Não há mal nenhum, antes pelo contrário. Faz bem às mães porem as suas pequenas fúrias cá para fora. As mães costumam dizer que os bebés, quando tentam aprender a dar beijinhos, mordiscam a cara porque estão a manifestar 'as suas raivinhas’— é esta a expressão que as mães usam. E as mães precisam igualmente de manifestar 'as suas raivinhas’ para que, finalmente, possam estar soltas, livres e fazerem aquilo que elas fazem muito bem que é ser intuitivas quando estão ‘descontaminadas’ destas coisas todas de perfeição, muitas vezes exigida por elas próprias.

 

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Acredita que uma gravidez sem uma figura paternal será sempre uma gravidez incompleta? Porque escreve que um pai deverá estar sempre presente na altura do parto, e antes e depois…

 

ES: Não entendo aquilo que é a atitude das maternidades em relação ao pai. A partir do momento em que uma grávida entra na maternidade, o pai devia ser ‘internado com ela’ ao mesmo tempo. Devia lá estar sempre com ela. Porque é isso que faz a diferença. Quando se trata de ir para ‘o grande momento’ uma grávida sente-se completamente injustiçada, porque aquelas contrações, os toques que se tem de fazer para ver se o bebé está a descer ou não… É tudo passado por ela, às vezes numa solidão tão soturna… Eu às vezes pergunto-me se nós estamos no século XXI e se perceberemos o quanto as mães e os pais merecem outro tipo de cuidados que não são cuidados só médicos, obstétricos, mas são cuidados humanos que nem sempre as equipas nos disponibilizam como deviam.

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A presença desta figura paternal é então completamente essencial…

 

ES: Absolutamente incontornável e fundamental, sim. (…) As experiências mais importantes e aquelas que, basicamente, mais nos viram do avesso, ganham se nós as pudermos dividir com as pessoas — ou com a pessoa — mais importantes para nós. Seja ela quem for. Ou seja, quando uma pessoa atravessa isso tudo, que tem momentos fantásticos… Imagine o que é estar num dia lindo de sol em Veneza e não ter ao seu lado alguém com quem poder dividir este sonho… E é a mesma coisa quando está num momento em que se sente simplesmente injustiçada e de rastos. Portanto, são muito mais duras essas gravidezes… No fundo, eu tenho medo que, às vezes, uma ‘produção independente', como por vezes se diz, nem sempre seja acompanhada por um certo manual de instruções, digamos assim. Por um conjunto de atitudes de bom senso que nos recomendem, que nem sempre esse grito de auto determinação, de independência no fundo, acaba por ser só um grito de ideias. Às vezes estas vitórias um bocadinho solitárias são, ou pelo menos podem ser, mais escorregadias do que parecem.

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E para o bebé, mesmo ao longo da gravidez, é importante esta presença?

 

ES: Nós fazemos estudos e [entendemos que] a presença do pai, no parto, é muito engraçada. Porque o recurso à analgesia é menor, quando o pai está; o trabalho de parto é mais pequenino, quando o pai está; o desenvolvimento do bebé, nos primeiros seis meses, é mais consistente quando o pai está. E portanto o pai dá um jeito (risos). O pai, que invariavelmente é tratado como um "asterisco"…

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Refere que não há um filho como o primeiro e que é verdade que os pais nunca conseguem ser ‘milimetricamente iguais’ ou serem sempre justos em relação a todos eles…? A teoria do filho preferido confirma-se?

 

ES: (risos) Nãoooooo… Eu não sei se é preferido, preferido. Eu às vezes costumo brincar a dizer que um primeiro filho tem algumas vantagens. Primeiro, tem o álbum do bebé mais bonito. Em segundo lugar, quando a chucha cai ao chão a mãe e o pai vão a correr esteriliza-la e quando estão no segundo ou terceiro filho sopram e toca a andar. Quando se é mãe ou pai numa primeira vez — e uma pessoa pode ter tido afilhados, irmãos, sobrinhos, etc — vive-se uma experiência que é como se estivéssemos a nascer outra vez — há uma espécie de antes e depois de Cristo, após o nascimento de um primeiro bebé. E isso traz-nos um sentimento de insegurança, que é um sentimento fantástico, mas ao mesmo tempo assustador, porque um bebé recém-nascido parece desmanchar-se, dar banho e virá-lo de barriga para baixo faz-nos ficar com o coração mínimo porque ele pode escorregar. Portanto, as mães de um primeiro filho são muito mais dedicadas, muito mais atentas. Então, acabam por ter mil cuidados mais em comparação com aqueles que têm com um segundo ou com um terceiro [filho]. Eu não digo que seja preferido, porque, na verdade, eu acredito que nós aprendemos a ser pais à medida que somos pais. Mas reconheço que, muitas vezes, o primeiro filho — então quando nós o comparamos com o filho mais novo —, é sempre um bocadinho mais frágil, menos autónomo, porque, independentemente de ser o mais crescido, a mãe continua a lidar com ele como se ainda fosse — e coloque aqui muitas aspas, evidentemente — o seu "bebé". Não digo que seja o preferido, mas que ali há uma cumplicidade fora do vulgar, há. E não é mau! O que eu acho que é mau, é aquele slogan que nos diz — quase nos impõe — ‘eu gosto de todos os filhos da mesma maneira’. Porque não é verdade, óbvio. Quando impomos que seja igual voltamos ao lado politicamente correcto disto tudo que não tem pés nem cabeça.

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Termina o seu livro a defender o direito às famílias imperfeitas. "Estamos fartos de famílias demasiado normais", escreve. Esta ode à imperfeição, à aceitação de que somos perfeitamente imperfeitos, revela-se fundamental?

ES: Uma família é quem mais nos faz crescer, mas é também quem mais dores nos traz ao longo da vida. Não vale a pena nós termos a ideia de que, numa família, tudo se passa num registo bucólico, atento, empático… Porque as famílias saudáveis são desarrumadas, ruidosas, e são às vezes muito trapalhonas… Mas eu acho que é óptimo nós podermos desmistificar esta ideia que nos cerca por todos os lados. Era ótimo que nós percebêssemos que estas pessoas imperfeitas, ou os nossos filhos com as suas imperfeições, podem ser isso tudo. Mas depois, são essas mesmas pessoas que nos trazem, ao longo da vida, experiências sagradas e é isso que, de facto, faz a diferença. Não a perfeição.

 

O que é que, ao fim ao cabo, acontece a uma família onde, aparentemente, está sempre ‘tudo ótimo’?

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ES: Sabe que eu acho que os gritos da mãe, o lado esganiçado da mãe, devia ser património imaterial da Humanidade (risos). Porque faz parte… É quase estranho que as famílias sejam tão silenciosas assim. As famílias perfeitas são famílias suficientemente más; erram e tudo. São aquelas famílias onde tudo aquilo que há mais de imperfeito dentro de nós não é taxado com imposto de luxo, como se de repente não pudéssemos ir para além dos limites. E portanto quando uma família nos ama e ao mesmo tempo nos obriga a ser falsos… talvez não seja bem uma família. É importante pôr verdade nisto tudo. Eu acho que as redes sociais também contribuíram um bocadinho para isso porque, de repente, até as sopas, quando se fotografam, são perfeitas (risos), é tudo perfeito! Há uma frase muito bonita do Sérgio Godinho que pergunta se "é possível ser-se quem não é"? E eu às vezes tenho vontade de responder: "Basta ir-se às redes sociais". E mesmo em relação à maternidade, à forma como se expõe os filhos, ou à maneira como se fala dos filhos, como se de repente fosse realmente tudo um mar de rosas… E isto é publicidade enganosa que não ajuda ninguém.

 

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