Histórias de partos de mães coragem
Há quem tenha os filhos em casa, quem não passe sem o conforto da maternidade ou quem opte por métodos alternativos. E há depois as que não têm escolha. Mães coragem, capazes de enfrentar a fúria da natureza ou de levar de vencida o terror da guerra. São histórias destas que aqui contamos. As delas e as de quem as ajudou, em condições extremas, a trazer uma nova vida ao mundo.

Patience Ibrahim era uma menina quando casou. E continuava a ser uma menina quando perdeu o marido para a violência do Boko Haram, um grupo terrorista islâmico. Como ela, muitas outras meninas na Nigéria sabem que o seu destino é traçado cedo, entregues a um homem mais velho a quem têm de chamar marido. O que Patience Ibrahim não sabia é que a tragédia ainda lhe iria bater mais vezes à porta. E que teria de ter de esconder uma gravidez e ter a filha sozinha, sem a ajuda de ninguém, em fuga de um pesadelo ao qual apenas poucas conseguem escapar.
Não foi fácil contar a sua história, que a jornalista alemã Andrea C. Hoffman decidiu publicar em forma de livro (Filha das Trevas, edições ASA). Foi duro, explica à Máxima a autora, "recordar o horror que viveu". Mas a vontade de partilhar levou-a a ultrapassar o medo. "Ela queria que o mundo soubesse o que se está a passar no Norte da Nigéria. Foi quase como se quisesse que acordássemos. Partilhar a sua história foi um pedido de ajuda." E um testemunho de força.

Patience estava grávida quando foi raptada pelo Boko Haram, um grupo terrorista que deixa um rasto de destruição à sua passagem. Depois de ter perdido um marido e de ter regressado a casa dos pais, estes acederam a que voltasse a casar em troca de uma vaca e uma cabra. Foi do segundo marido que engravidou. E foi da casa deste que foi levada, ainda quase sem barriga visível, para uma viagem ao mundo do terror. Foi espancada, violada, obrigada a comer carne humana. Fugiu para ser novamente apanhada, apenas um dia depois. Dentro dela, a vida que crescia dava-lhe força. Servia-lhe de motivação para continuar viva, quando outras como ela não conseguiram resistir. Escondeu sempre a gravidez, até porque, num país onde a maioria é muçulmana, assim como os terroristas, Patience era cristã. E cristão seria o filho que trazia no ventre, ambos alvos de uma fúria que sabia não ser possível aplacar.
As dores do parto, essas, começou a senti-las pouco depois de mais um massacre, depois de ter conseguido fugir aos agressores pela segunda vez, de ter reencontrado o marido e de o ter perdido, agora para sempre. Mas desistir não era uma opção. "Eu tinha de conseguir", conta no livro. "Afinal de contas, eu não tinha andado a esconder o meu filho e a protegê-lo da morte, durante meses a fio, para nada. Fi-lo para lhe poder dar vida." As dores foram insuportáveis. Sem medicação que as amenizasse, sem uma voz amiga que a acompanhasse, fez força. E mais força. "Centímetro a centímetro, transportei a cabeça do bebé para a frente", recorda. Até o ter finalmente nos braços. O cordão umbilical cortou-o com os dentes e foi com alívio que deu as boas-vindas a uma menina, "uma linda menina". Uma dádiva, a que deu o nome de Gift.
Hoje, Andrea C. Hoffman confirma que Patience "está a tentar encontrar o caminho de volta para a normalidade", embora não seja fácil regressar a casa, à aldeia que chama sua, por questões de segurança. "Os elementos do Boko Haram continuam na zona. E, além disso, a família dela toda foi morta por eles. Por isso, ela tem de conseguir sobreviver sozinha. Está a ter lições de costura e comprámos-lhe uma máquina de costura para que possa ter uma fonte de rendimento."

Casar novamente está fora dos planos da jovem. "Mas acredito que possa mudar de ideias, se aparecer o candidato certo", refere a jornalista. No entanto, para já, o seu grande objetivo é conquistar a independência financeira, para que se possa sustentar, a si e à filha. E garantir a sua segurança. "Depois de tudo o que lhe aconteceu, gostava de a proteger de um destino semelhante. Mas sabe que não pode fazer muito. Quer que a menina vá para a escola e tenha uma educação, para que possa ter um emprego e viver num ambiente mais seguro."
Um símbolo de resiliência
Patience não é única com a experiência de um parto em condições extremas, longe de um hospital, do apoio conferido pela experiência médica, das tecnologias da saúde ou do conforto dos medicamentos a que a evolução da medicina já nos habituou, ou pelo menos habituou os que vivem em países mais desenvolvidos. Nem será a última. Em zonas mais ou menos remotas, em cenários de guerra, no meio de uma qualquer catástrofe, a natureza faz destas coisas, e segue o seu curso, como de resto é suposto, indiferente ao cenário que a rodeia. Umas vezes o final é feliz, outras nem tanto. Para estas mães coragem fica a história.

Como a da moçambicana Sofia Chubango, de 26 anos, que se tornou um símbolo de resiliência. Quando as águas dos rios subiram, em março de 2000, resultado de uma chuva intensa que, ao longo de duas semanas, caiu sem parar naquele país africano, submergindo aldeias inteiras, foram muitos os que se viram obrigados a abandonar as suas casas, a fugir sem destino certo, em busca de um abrigo nem sempre fácil de encontrar. O cimo das árvores foi o refúgio possível para os habitantes da aldeia de Chockwe, a cerca de 50 quilómetros da capital, Maputo. E foi lá também que uma equipa de resgate do exército sul-africano, que seguiu para o local de helicóptero, foi encontrar Sofia Chubango. Há três dias que por ali estava, rodeada de água por todo o lado, sem hipótese de fuga. E quase sem esperança de ser salva. Exausta e com fome, enfrentava ainda as dores de um parto que não se compadeceu com as condições em que se encontrava. E quando a equipa de resgate conseguiu finalmente chegar até ela, não resgatou uma, mas duas pessoas: a mãe e uma bebé recém-nascida.
Nascer em tempos de guerra
Maria Afonso é ginecologista e obstetra. Trabalha no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, numa maternidade que, todos os anos, faz centenas de partos em salas preparadas para o efeito, com equipas especializadas e medicação à disposição. Gosta do que faz mas desde muito cedo sentiu o desejo de abraçar uma missão humanitária. E foi assim que, em 2013, partiu para o Paquistão, onde esteve dois meses inserida num grupo dos Médicos sem Fronteiras. Mais tarde rumou ao Afeganistão, país onde a saúde materna e neonatal é das mais pobres do mundo. "Quando lá estive fui colocada numa maternidade em Khost, uma província de talibãs, onde se faziam mil partos por mês – agora até já são dois mil", conta à Máxima. Por ali viu de tudo: corpos em choque na sequência de partos sem qualquer tipo de assistência, a maioria deles feitos em casa; mulheres mal nutridas; cesarianas que apenas se poderiam realizar com o acordo dos homens da casa, algo válido mesmo para os casos em que a vida da futura mãe estava em risco. Homens que, ao contrário do que acontece por cá, não estão presentes no momento do parto. Não ajudam, não acompanham ou dão apoio, limitando-se a um papel de espectadores ausentes.

São muitos os momentos que não vai conseguir esquecer. Mas há alguns que ficaram mais gravados do que outros. Como a primeira vez que ouviu e sentiu uma explosão. "Fiquei branca. As enfermeiras olharam todas para mim, mas tentei manter a calma." Ou o dia em que, no meio de uma guerra que ainda hoje parece não ter fim, ajudou a trazer ao mundo uma criança. "Eu estava a tentar fazer o parto de um bebé que tinha os ombros encravados, quando se ouviu um rocket a cair mesmo ali ao lado. Naquela altura, o mais importante mesmo era conseguir tirar aquele bebé. Só depois é que reagi ao facto de ter havido um ataque."
O 1.º sargento Miguel Rego também tem uma história para contar. Esta passada aqui bem mais perto, nos Açores, onde têm sido muitos os bebés a nascer... no ar. Durante seis anos, foi um dos elementos da tripulação do C295 da esquadra 502 da Força Aérea Portuguesa, destacada naquele arquipélago nacional. E ao longo desses anos, muitas foram as missões de que fez parte. Mas nenhuma como aquela a que, numa manhã de junho de 2015, a aeronave e a equipa, estacionada na Base das Lajes, foram chamados a participar. Eram por volta das seis da manhã e o trabalho consistia no "transporte de uma grávida que estava na ilha das Flores". A viagem foi de aproximadamente uma hora, mas estava muito mau tempo, vento forte, o avião abanava por todas as partes. Aterrámos e foi com uma certa urgência, já que o médico nos avisou logo que estava iminente o parto". Começava então uma aventura de que dificilmente se irá esquecer. Apesar de, confessa, a equipa estar preparada "para qualquer eventualidade", a verdade é que nos anos em que ali esteve nunca lhe tinha acontecido fazer o transporte de uma grávida, muito menos de uma quase a dar à luz não um, mas dois bebés.
"Descolámos e a descolagem até foi razoável, tendo em conta os ventos fortes que estavam, mas não durou nem dez minutos até que começasse a nascer a primeira menina. Nem queríamos acreditar. Informámos o piloto, para que marcasse as coordenadas para a certidão de nascimento e foi tudo um pouco surreal. O mau tempo que estava, o avião a abanar. Eu e o Ricardo Martins, o outro 1.º sargento que estava a bordo, não estávamos preparados para aquilo, mas tentámos ajudar, sem saber bem o que havíamos de fazer, enquanto as duas enfermeiras que voavam connosco nos davam indicações", recorda. Foram os dois homens que limparam a bebé, que lhe aspiraram o nariz e que a envolveram numa manta térmica. "Lembro-me de olhar para aquela coisa pequenina… Foi inacreditável!"
Miguel Rego tem dois filhos. Mas confessa que não assistiu ao parto de nenhum deles. E, ainda hoje, não se escapa às cobranças da mulher. "Ela costuma dizer: ‘Tu não foste capaz de ver os teus filhos...’ Mas não é que eu tivesse muita hipótese de conseguir ‘escapar’ àqueles partos."
Uma bebé estava cá fora. Faltava a segunda, que não tinha tanta vontade em conhecer o mundo como a irmã. Miguel Rego recorda que foi necessário quase uma hora até que o segundo milagre acontecesse. "Já estávamos na fase final para aterrar na Base das Lajes e foi nesse momento que a mãe começou a gritar para sair a segunda. As enfermeiras ajudavam ao máximo, o Ricardo Martins segurava na outra menina e eu estava ali, com as enfermeiras… E dissemos ao piloto: ‘Não podemos aterrar agora, está a sair, está a sair.’ Ele teve mesmo de abortar a descida. É que a altura de aterrar é sempre crítica e nós estávamos em pé, nem sequer estávamos amarrados. Foi uma aventura enorme!" Tal como a irmã, a segunda menina nasceu também no ar. Quanto à mãe, Miguel Rego recorda que estava calma. "Mais calma do que eu."
Histórias que não se esquecem
Guiné-Bissau, Angola ou o Ruanda foram países que a enfermeira Maria Duarte visitou nos anos 90 do século passado. Não na pele de turista, mas enquanto membro das equipas da Assistência Médica Internacional (AMI), que por ali davam apoio. Ainda que a sua área de especialização não fosse a obstetrícia, assistiu a muitos partos e ajudou a nascer algumas crianças em condições bem diferentes das que temos por cá. Mais tarde rumou a Timor-Leste, numa altura em que o país se encontrava em estado de sítio, onde a destruição, o medo e a guerra estavam ainda bem presentes. E há momentos que não esquece, que ficam para sempre e que, confessa, mudaram a forma como trabalha, como olha para quem precisa de ajuda e como participa nessa ajuda. Um desses momentos foi um nascimento. "No primeiro mês estive em Díli e depois passei para Manatuto. E lá fazíamos um trabalho que era percorrer, de jipe, as montanhas, visitar as aldeias e as povoações do interior, que não tinham acesso a nada. Isto numa altura em que ainda não era seguro, havia recolher obrigatório e por aí fora", conta. Foi num desses dias que a equipa da AMI soube da história de uma jovem que estava em casa, já em trabalho de parto, tendo o bebé um dos braços de fora. "Lá fomos nós, com o jipe da AMI, pela montanha, à procura do local. Em Timor, a comunicação também era uma grande complicação, porque as pessoas não falavam português e essa barreira complicava muito as situações, impedia-nos de conhecer as histórias, o que tinha acontecido para trás, o que também não ajudava nada."
A informação confirmou-se. Depois de encontrada a casa da senhora, uma das poucas que tinham escapado à fúria das chamas, que consumiram grande parte das habitações feitas de adobe e colmo, a observação deu conta de problemas acrescidos. "De facto a criança tinha o braço de fora. Então colocou-se a questão: o que fazer? Ela não estava a fazer a dilatação como deve ser, nós não tínhamos meios para provocar o parto e optamos por levar a parturiente para Baucau, que era a cidade principal mais perto e onde estavam os Médicos sem Fronteiras com uma equipa de cirurgia."
Começava então uma nova aventura. De jipe, pelas estradas desertas e sinuosas, transportaram a grávida, "com pouquíssimas condições, com dificuldades de comunicação, ela cheia de dores, um caminho horrível, aos saltos, cheio de buracos... Éramos os únicos na estrada e tínhamos algum receio de sofrer uma emboscada", recorda. E lembra também que foi o caminho todo "de mão dada com a senhora. De vez em quando limpava-lhe o suor da testa, trocávamos muitos olhares porque o acompanhamento foi muito feito do contacto, do tentar acalmar, mas sem palavras. E estes momentos tenho dificuldade em esquecer, momento de grande intensidade, em que nos sentimos muito próximos da pessoa e não temos forma de o manifestar, a não ser através do toque. Ali, num jipe sem condições nenhumas, a senhora deitada no chão..."
Mas conseguiram chegar ao destino. E a história acabou por ter um final feliz. "Correu tudo bem e na semana seguinte, quando voltámos ao centro de saúde mais próximo daquela aldeia, lá estava a senhora, o marido e a família toda, muito gratos porque o bebé estava bem e eles também."
Parto dentro de água
Ter um filho no interior de um carro nem é assim tão raro. É daquelas coisas que, ainda hoje, acontecem, lá fora e também por cá. Mas ter um filho num carro parcialmente submerso num lago já é outra história. E esta foi protagonizada por uma norte-americana de 21 anos. Kennyetta Biggs acordou de madrugada com as primeiras dores que sinalizavam o início do trabalho de parto. Vestiu-se, saiu de casa e começou a conduzir em direção ao hospital, tudo isto sem avisar os pais, com quem vivia, e de quem tinha mantido a gravidez escondida.
No meio do caminho, uma contração mais forte fez com que perdesse o controlo da viatura e fosse parar dentro de um lago. Com o carro a afundar lentamente, a jovem acabou por ter a filha sozinha, sem ajuda. Um verdadeiro milagre, nome que acabou por dar à filha. E foi apenas a sorte que fez com que um elemento da polícia local tivesse reparado no carro e fosse encontrar a recém-mamã presa no seu interior, com uma perna partida. E no banco, ali ao lado, uma bebé, ainda ligada à mãe pelo cordão umbilical.
*Originalmente publicado na edição 344 da Máxima, Maio de 2017.
