Eduardo Sá: "Receio que não seja possível ser-se feliz sozinho"
No seu novo romance, 'Nada no Amor é por acaso', editado pela Lua de Papel, o consagrado psicólogo narra duas histórias de amor que nos convidam a rever as nossas próprias vivências, num diálogo de reflexão constante.

O amor está sempre nas suas conversas, nos seus livros, na sua abordagem. Escrever este romance tão intenso como direto, era um desejo antigo?
Eu às vezes costumo dizer que ganho a vida a ouvir histórias, e portanto as histórias são formas muito bonitas de nos revermos em alguns episódios das nossas vidas. De alguma forma, quando uma história é bem construída, às vezes até ficamos com a sensação que ela foi escrita a pensar em nós. E portanto eu sempre tentei fazer este registo um bocadinho híbrido, que é ir do ensaio à história, e neste caso ter uma história que atravessa um conjunto de ensaios, todos eles em função do amor. Se é muito intenso? Por estranho que pareça, nós todos acabamos por ter uma noção muito precisa do quão indispensável é o amor na nossa vida, mas tenho a ideia de que conversamos muito pouco acerca dele. E que temos sempre, até, a ideia de que nascemos equipados com essa espécie de sabedoria quase inata, por isso às vezes não nos damos conta que quanto mais sabemos do amor mais precisamos de aprender. No fundo, por mais que estejamos a viver um novo amor, é sempre como o primeiro. Andamos sempre à procura de nos encontrar, de nos reconhecermos naquela pessoa.

Foi aí que entrou a tal necessidade de uma escrita com mais densidade e intensidade?
Tomando em consideração essa intensidade, eu achei que era importante pegar numa história de um psiquiatra, e de uma forma muito humana dar a entender aquilo que, em traços muito gerais, eram duas das pessoas com quem ele estava a trabalhar, com quem ele tentava costurar relações amorosas, para nos darmos conta que no fundo aqueles dilemas todos que essas pessoas viveram em nada são diferentes dos nossos. Isso torna o amor a experiência mais democrática do mundo, muito antes até da própria experiência de liberdade.


Começa logo por esclarecer que esta não é uma autobiografia. É possível escrever um romance sem pôr um pouco de si nessas palavras e histórias?
Jamais. Há lá muitos bocadinhos meus, como não poderia deixar de ser, em tudo. Naquele psiquiatra, na visão daquelas personagens… Eu acho que todos os livros são um bocadinho autobiográficos. Desde a forma como se conta a história, à forma como se escreve, àquilo que se valoriza na história. Todos eles têm muitas impressões digitais de nós próprios.
Há uma frase no seu livro que marca, já que começa logo por falar de como vivemos o amor uma e outra vez, casando e "descasando". É: "pode-se ter um primeiro amor uma segunda vez". Acredita mesmo nisto? Que a intensidade de um primeiro amor se pode repetir?

Acho que sim. E acho mais ainda. Acho que nós, muitas vezes, atribuímos ao primeiro amor uma intensidade absolutamente única, inimitável, irrepetível. Depois, à medida que ficamos mais experientes ficamos mais requintados, damos mais atenção aos pequenos pormenores. Aquele lado de ingenuidade no primeiro amor que nós valorizamos, repete-se quando nos apaixonamos de novo. Somos as pessoas mais transparentes e mais ingénuas do mundo. Ao mesmo tempo, vamos percebendo o que é o amor e o que é que nós queremos dele. Quando aparece alguém na nossa vida que nos interpela até ao fundo da alma, o amor adulto, de preferência correspondido, é um amor que em muitos aspetos é muito mais intenso que um primeiro amor.
Poderá a ideia contrária - que o primeiro amor é que foi - ter a ver com o nosso lado mais saudosista?
Eu acho que todos nós, mesmo quando não queremos, e nos relacionamos com uma nova pessoa, destapamos o baú das nossas memórias e vamos comparar aquela pessoa em todos os pormenores, com todas as outras que terão sido importantes (ou não). Em determinada altura, estamos a dormir ao lado dessa pessoa, e ali no meio de nós vagueiam todas as pessoas que existem na nossa vida, e na vida dessa pessoa. O que torna uma relação amorosa sempre um desafio absolutamente fascinante, porque se nós guardamos esses episódios ou historietas, e os pomos de certa forma em confronto, levamos a vida a inquinar uma nova relação com episódios que ficaram mais ou menos em aberto de relações que entretanto acabaram. E todos nós fazemos isso, quando conhecemos alguém novo, apresentamos as "faturas" de uma relação que acabou mal à pessoa que acabou de chegar. Como se no fundo o nosso coração tivesse uma espécie de controle de qualidade que à exaustão vai tentar perguntar se aquela pessoa vale de facto a pena, se merece aquele impacto todo que inevitavelmente vai ter na nossa vida.

Então não somos saudosistas?
Não, somos medricas. Porque nos magoamos uma vez com uma pessoa, porque nos magoamos uma vez com uma outra pessoa. Por isso às vezes tento equilibrar uma boa dose de humor com uma boa dose de cinismo. Costumo dizer que as mulheres falam muito melhor disto, e de forma mais saudável, mas claro que não podemos tomar por exemplo dois ou três casos infelizes para afirmar que não vale a pena acreditar no amor.
É um ouvinte nato. Ouvir deu-lhe uma perspetiva do mundo diferente? Como um enfermeiro que vê a doença ou a morte todos os dias, ouvir estas histórias, possivelmente muitas delas de aflição e agonia, outras de paixão e de alegria, atribuiu-lhe uma certa dose de frieza e distanciamento das coisas? Ou pelo contrário?
Pelo contrário. Por uma razão simples. Eu tenho a ideia que quando nós entramos numa história, encontramos sempre um lado absolutamente fascinante que nada tem a ver com outras histórias. Às vezes há alguns pontos de contacto - mas é só isso. São todas muito irrepetíveis e particulares. Quando nós entramos numa história de amor, é impossível que numa determinada altura não nos comovamos com ela. É aí que nos confrontamos com os lados mais bonitos e mais frágeis das pessoas, mas também impactantes, em termos daquilo que elas têm para dar. Nessas circunstâncias não há como conseguirmos ficar nem sequer distantes quanto mais indiferentes. Quando as pessoas se revelam nas suas relações amorosas puxam-nos para tudo aquilo que a vida tem de fantástico e que às vezes nós passamos a vida a atropelar com questões menores que não têm sentido nenhum.
O que é que estes anos todos lhe ensinaram, redondamente, sobre o amor?
Eu tenho medo que nós às vezes falemos do amor como qualquer coisa que é mais ou menos clara e esclarecida dentro de nós. Eu acho que o amor não é um sentimento, é uma consensualidade de sentimentos e ao mesmo tempo um compromisso. Num contexto desses, aquilo que eu acho que faz sentido quando falamos do amor é sabermos que todos nós já morremos de amor algumas vezes. E o grande desafio que o amor nos traz é este lado redentor que nos traz de volta à vida, como se a cada vez nos ajudasse a nascer. Morremos várias vezes de amor e só à conta dele é que acordamos para a vida.
Há uma pergunta no livro que nos paralisa a todos, e que a certo ponto das nossas vidas, possivelmente a fazemos. É possível ser feliz sozinho?
Sou tentado a dizer-lhe que não. Por outro lado, a felicidade é um estado de comunhão entre duas pessoas, um estado próximo do divino. Como se nós, no fundo, sentíssemos, que alguém diferente de nós, com histórias diferentes, coordenadas distintas, de repente criasse connosco uma cumplicidade inacreditável, que não é preciso nem sequer abrir a boca para a pessoa sentir como nós sentimos. Esta experiência de comunhão profunda, que faz com que tudo o resto pareça supérfluo, é uma experiência razoavelmente próxima do divino. Respondendo com clareza: receio que não seja possível ser-se feliz sozinho.
Fala no conceito de oposto, de infelicidade, também. Admitir a infelicidade num amor é admitir a derrota? É um "lugar" proibido?
Tantas vezes o é. Porque nós todos, às vezes, somos de uma censura muito grande. Sobretudo aqueles que têm a ousadia de ser verdadeiros. Nós todos temos a ideia de que no fundo a infelicidade é um território estranho. Curiosamente, quando temos a humildade e a coragem de reconhecer a nossa infelicidade, de repente, estamos a criar condições para nos podermos regenerar e ser felizes mais depressa. Nós temos um bocadinho a ideia de que é quase vergonhoso assumirmos a verdade de tudo isto. E à conta de não o fazermos, comprometemos o dia de amanhã e a tudo o que podemos descobrir quando depois percebemos porque é que somos infelizes e vamos à procura de quem nos faça feliz.
Diz uma coisa que pode chocar muitas pessoas. Só se acaba quando se deixa de gostar, não porque se caiu na rotina, não porque apareceu alguém. Foi uma coisa que aprendeu da sua experiência como psicólogo?
Como no texto inicial do livro eu acabo por dizer, nós namoramos muitas vezes com uma pessoa, casamos muitas vezes com ela. A determinada altura, quando deixamos de gostar de alguém, deixamos de o fazer em suaves prestações. É de surpresa em surpresa, o que na verdade é de desgosto em desgosto. E quando estes desgostos chegam a um patamar em que aquela relação já não traz esperança,quando desistimos de falar, de pedir para mudar uma ou outra coisa, nós estamos a desistir da pessoa. Eu receio que muitos de nós tenhamos relações em que acabamos por estar junto a alguém, mas por dentro estamos "divorciados" dessa pessoa. Às vezes é muito difícil reconhecermos que, enfim, chegou a altura de assumirmos a verdade. Eu reconheço que quando alguém que esteja connosco nos vai tirando vida em vez de nos dar vida, é altura de assumirmos que é sensato não estarmos ali mais tempo.
Como é que gostava que as pessoas olhassem para este livro?
Eu gostava só que fosse um livro onde as pessoas se pudessem perder livremente, e a pretexto disso pudessem encontrar respostas para algumas questões das suas vidas, e eventualmente se colocarem as perguntas que foram evitando colocar, e encontrarem uma ou outra resposta. No fundo, que se autorizassem a ser interpeladas a cada passagem do livro. Porque é assim que elas podem levá-lo para dentro delas.
