José Gameiro: “Há muita gente não encartada a fazer psicoterapia que pode fazer mal às pessoas.”
Há conversas que não têm fim e esta seria uma delas. O médico é um alvo fácil. Conversador nato, cronista, aviador, viajante e psiquiatra. A dificuldade foi selecionar a matéria-prima.

Tendo como objeto de estudo o livro Ser Psiquiatra – Uma vida entre voos e famílias roubámos a José Gameiro uma manhã de verão. Além das histórias contadas no livro, ficámos a saber que sente um apelo por África – continente -, onde a mãe nasceu e onde vai para conhecer tribos africanas. Amante de música, foi de propósito a Zurique ver Elton John na sua última tournée. Mas, se tivesse de escolher uma música preferida seria a que lhe fez companhia durante a pandemia: The Sound of Silence, de Simon & Garfunkel. Ficou interessado em consultá-lo? Ávido de liberdade, o psiquiatra especialista em terapia de casais e fundador da sociedade de terapia familiar já não aceita novos pacientes.
Acha que toda a gente devia fazer psicoterapia?
Não. Para fazer psicoterapia há condições básicas. A primeira é haver sofrimento. A pessoa pode não estar em sofrimento e querer apenas conhecer-se melhor. Mas deve perceber se tem motivação para aguentar um processo que será longo. A psicoterapia - como deve ser – não demorará menos de um ano e meio, dois anos. Depois deve escolher-se bem com quem se faz. Porque há muita gente a fazer psicoterapia não encartada e a psicoterapia pode fazer mal às pessoas.
Porquê?

Pode ir buscar temas que a pessoa não tem de ir buscar. Nem tem consciência deles. Às vezes são coisas que o psicoterapeuta acha que a pessoa tem, mas não tem. Um dos riscos é o médico dar sempre razão ao doente. Quando alguém se queixa da mãe ou do marido é preciso ter muito cuidado e não dar logo colo e razão. Não vai ajudar a pessoa. Há o perigo de estimular conflitos com pessoas significativas. Às tantas pode convencer o paciente que tem uma mãe tóxica, em vez de trabalhar com ela o que pode fazer para melhorar a relação. A psicoterapia tem riscos e há pessoas que não precisam da psicoterapia para nada.
Já há muita abertura quanto às doenças mentais, mas ainda há um preconceito em relação há consulta psiquiátrica. Há quem diga: "vou ali ao médico dos malucos".
Há menos. Antigamente as pessoas que tinham problema mentais iam ao neurologista para não serem rotuladas. Hoje já não é bem assim. Mas sim, ainda é o "médico dos malucos". Tenho 40 e tal anos de carreira e ao princípio era completamente diferente. Apesar disso ainda há quem me peça para na descrição do recibo escrever consulta médica, em vez de psiquiatria. Há quem esconda que é seguido psiquiatricamente com medo de ser penalizado.
No livro, no capítulo "aviões", fala da relação desta classe com as depressões.

"Vejo" muita gente da aviação, porque sou piloto. Na aviação um piloto profissional pode voar se estiver estabilizado, mas se ele disser à companhia que está com depressão e está medicado…
Acabou ali a carreira?
Pode não acabar, mas perante os colegas é visto como um tipo fraco. Como se a depressão ou a ansiedade fossem sinais de fraqueza. Como é uma profissão de excelência, os pilotos têm "forçosamente" que ser fortes e às vezes dá disparate.
Conta também um episódio em que não houve distância suficiente entre si e uma paciente. Como se aprende a separar as águas?

É com treino e com a maturidade profissional e pessoal. Essa experiência serviu-me de lição. Não tive a noção que me tinha sentido atraído pela senhora. Obviamente que tinha. Em conversa com o Daniel Sampaio, ele preveniu-me que há coisas que não se podem dizer a uma paciente. Neste caso, por causa do "talvez seja preferível fazer amor", ela terá pensado que estava a engatá-la. De facto, a doente nunca mais apareceu. Deve ter ficado assustada.

Sentiu alguma coisa na altura, ou foi só depois a fazer a catarse?
A fazer a "autópsia do caso" é que me apercebi. Houve algumas situações de cegueira de que só me apercebi mais tarde. A doente estava a erotizar a relação comigo e eu não tinha visto.

Foi alvo de assédio?
Nunca me senti assediado. Senti-me uma vez um bocadinho, entre aspas, "violado", porque houve uma doente que avançou para mim. E tive a sensação do que é ser violado.
Isso não é assédio?
Pode chamar-lhe assédio. Tive de controlar-me para não lhe mandar um empurrão. A história mais impressionante não a conto no livro. A de uma mulher com uma depressão terrível. Vivia fora do país e tinha sido alvo de violência doméstica. Morrera-lhe um filho com nove anos. Uma depressão como vi poucas na vida. Tinha imobilidade séria, ou seja, não tinha expressão nem falava. Durante várias sessões manteve-se em silêncio. Um dia abriu a boca e disse: "gostava de ir para a cama consigo". Respondi: "Sabe que isso não pode acontecer, mas é sinal de vida. Vamos trabalhar isso", e começámos a falar. Falou da vida e da morte do miúdo. Quando fui de férias avisei-a. Ela alertou-me: o que sinto por si não vai passar. Quando regressar, voltamos a falar. Com esta frieza e limpeza. Quando voltei de férias, ela disse: "continuo a querer ir para a cama consigo. Portanto agradeço que me indique um colega seu". Nunca mais soube dela. É uma história do diabo.
No livro refere que a morte da sua paciente mais antiga o deixou devastado.
Marcou-me imenso. Morreu de morte súbita. Era uma esquizofrénica estabilizada que me dava aulas de história de arte. Foi ela que inventou aquilo. O discurso dela era tão pobre que lhe sugeri que não viesse ao consultório semanalmente. Tenho um molho de fichas feitas por ela com história de arte desde o século XVII. Quando morreu estávamos a dar os impressionistas.
Isso é amor...
Era uma doente muito especial. Em alturas delirantes, chegava ao consultório e dizia-me: "vamos ter um bebé". Não era erotização, era delírio.
Gosto da ideia [expressa no livro] de que é "o sofrimento que aproxima as pessoas".
É o sofrimento e a infância. Sobre a infância, aprendi com o João dos Santos (criador da saúde mental infantil), que era psicanalista e com quem tive uma relação muito próxima. Até fiz um filme sobre ele para a RTP. Dizia ele: "se tiverem dificuldade com um doente falem sobre a sua infância." Como não simpatizar com uma criança? Mesmo que seja uma besta. Há pessoas muito complicadas. O sofrimento também é mais fácil de empatizar. As pessoas vêm ter comigo porque estão a sofrer. Fui treinado para trabalhar com o sofrimento. É uma coisa que me facilita a vida.
Diz, também, "compreender não significa apoiar a forma como o paciente vive o problema". Como reage o doente ao confronto?
O confronto é complicado. Não pode ser imediato. É fundamental criar uma aliança terapêutica. O doente tem de confiar em nós. O que me interessa não é alimentar a queixa, mas a forma de encarar aquilo. Dou-lhe este exemplo que tem mais a ver com mulheres. São as mulheres que se ocupam das mães, no fim de vida, muitas acamadas. Já tive algumas que o fazem muito contrariadas. Não é ao fim daqueles anos todos, com a mãe a morrer, que a relação vai melhorar. Tento trabalhar com elas, como é que se pode funcionalizar aquilo. Como se pode fazê-lo com menos sofrimento.
Em que é que a sua biografia influencia a sua profissão e vice-versa?
A história da separação dos meus pais é uma história heterodoxa para a época. Nasci em 1949, eles separaram-se em 57. Os meus pais, a minha irmã e eu dávamos passeios clandestinos por volta dos anos 60. Imagine-se o Portugal da altura. Na noite de Santo António saímos os quatro e encontrámos uns amigos que ficaram surpreendidos. A separação fora conflituosa. A minha mãe dizia-nos: os avós não podem saber, senão cortam-nos a mesada. O meu pai era muito irresponsável. Só há pouco tempo é que tive consciência da razão pela qual os casais me fascinam tanto. Passei a minha vida a fazer terapia a casais e acho que tenho jeito para aquilo. Nada do que já presenciei nas consultas me é estranho. Não faço juízos de valor. Não penso coisas más, acho que vale tudo.

Mas foi acusado de favorecer alguém por ser homem e piloto…
Claro que nem sempre consigo manter a neutralidade. Às vezes até penso: "esta gaja é uma chata, ou este gajo não devia ter casado". Há períodos na vida de um casal que são uma seca. Mas depois vêm as fases de empolgamento. Já eu, o que prezo na minha vida conjugal é ir tomar café e conversar. São pequenas coisas, aparentemente sem importância. Para mim são tão necessárias como fazer uma grande viagem.
Diz que chegou a chorar numa consulta por causa da morte da sua mãe. Acha que o luto é uma doença mental?
Não. O luto é um processo normal. Há é o luto patológico.
Que é…?
O luto patológico é quando a pessoa, ao fim de um tempo razoável de luto normal, não consegue viver com o mínimo de prazer. Há pessoas que vão ao cemitério diariamente. Outras que reagem mal quando à sua volta há manifestações de alegria. Isto ao fim de alguns anos. Acontece muito com a morte de filhos. É o luto mais complicado que há. Tinha um doente a quem morreu um filho de morte súbita. A filha tinha casamento marcado um par de meses depois. Ele achou que não se justificava adiar o casamento. Mas a mulher não aceitava. Eu disse-lhe: venham cá e conversamos. Fizemos três sessões. A mãe lá aceitou ir à igreja, mas não ao copo de água. Foi este o acordo. A morte de um filho é mesmo avassaladora.
Conta no livro que foi o serviço médico na periferia que o trouxe até à psiquiatria…
A minha irmã mais velha era psiquiatra. Morreu subitamente, há quatro anos. Faz-me muita falta. Ela sempre quis ser psiquiatra. Eu não. Eu queria ser internista. Tenho muitas saudades de auscultar doentes. A periferia foi importante porque a malta do grupo dizia: "vai lá falar com o doente, que ele precisa de ti". Eu era médico de clínica geral quando comecei a falar com os doentes. "O marido está com um cancro no estômago, fala tu com a mulher", diziam-me.
Depreendo que ainda não fez o luto da sua irmã.
Quando falo da minha irmã ainda me emociono. Dediquei-lhe o livro. No lançamento rocei a emoção.
Ainda se emociona agora.
A minha irmã era muito importante para mim. A minha mãe costumava dizer: "devo ser muito maluca para ter dois filhos psiquiatras". Éramos o único caso de irmãos psiquiatras em Portugal. Mandei-lhe muitos doentes, numa altura em que tinha doentes a mais. Mas era raro falarmos de psiquiatria.
Eram sobretudo irmãos…
Falávamos sobre tudo. Ela era médica e péssima doente. Tinha crises renais e ligava-me de madrugada. A última vez que estivemos juntos levei-a à Cruz Vermelha com uma crise. Vivia com o marido há 30 anos e resolveu casar. Os dois já andavam nos 70 anos. Foram fazer um cruzeiro e ela morreu com uma rutura da aorta. Mesmo se estivesse à porta do hospital, não teria a menor possibilidade.
A morte súbita é chocante.
Para quem morre é o ideal, para quem é próximo é terrível. Numa morte por doença crónica, a pessoa prepara-se. Um homem a quem morreu o filho com um tumor no cérebro aos dez anos confessava-me: a morte é horrível, mas já estávamos preparados para ela. Contou-me isto lavado em lágrimas. A morte súbita não.
Nunca se vai abaixo?
Então não fui. Fui com a morte da minha mãe.
Mas ficou deprimido?
Fiquei claramente deprimido, era muito próximo dela.
Como se tratou?
Tratei-me. Não tomei nada, nem procurei ninguém. Cheguei a pensar que tinha que procurar ajuda. A nossa dificuldade é que conhecemos toda a gente. Formei gerações de psicólogos. Não me sinto à vontade como outra pessoa que não é da área para ir falar com alguém. Mas não foi isso que me impediu de ir. Às tantas achei que não era preciso.

Nunca tomou medicação ao longo de todos estes anos?
Já tomei ansiolíticos. Às vezes, para dormir, tomo um Lexotan. Durmo muito pouco, mas não acordo cansado.
Um médico faz o luto de um doente que se suicida?
Faz. Tive três suicídios na vida. Um já não era meu doente, mas era jovem. Outra era minha doente há 30 anos e era psicótica. Tinha delírios, ofereci-me para ir vê-la ao parque Eduardo VII e matou-se. O outro era um doente relativamente recente, com uma depressão, sem razão aparente. Um homem dos seus 60 anos, ligado à justiça. Estava medicado com antidepressivos. Via-o amiúde. Ele garantiu-me: "isto está a passar". Um dia liga-me a mulher a contar que se atirou da ponte Vasco da Gama.
O que deve fazer a comunicação social nestes casos?
Tenho dúvidas. Há uns anos houve o compromisso de não se falar de suicídios nos média. Agora acho que quando pessoas conhecidas se matam devíamos aproveitar para a prevenção. Tenho hoje uma opinião diferente da que já tive.
Quando há um suicídio há uma preocupação acrescida, que logo é esquecida…
A doença mental não vende.
É um privilégio ter uma doença mental e poder tratá-la…
O tratamento é um privilégio. A doença mental, a pessoa tem ou não tem. Os serviços de doenças mentais em Portugal são uma vergonha.
Já não aceita pacientes novos, nem abre exceções?
Se abro uma exceção estou feito. Não posso dar primeiras consultas. Quero ter liberdade total para sair. De vez em quando vamos a África. Quero ser livre.

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