Carloto Cotta, derrubar tabus com a Arte. "Não há homossexuais no futebol? Contar estas histórias faz com que daqui a uns anos isto já não seja notícia."
A série espanhola ‘Elite’, da Netflix, está a agitar o nome de Carloto, mas há uma década que é um dos mais prolíficos atores da sua geração. 38 anos, foge às normas que a sua profissão impõe - dá poucas entrevistas, não cultiva o ego nas redes sociais ou passadeiras vermelhas.
Foto: Rui Palma23 de junho de 2022 às 17:26 Tiago Manaia
A mota verde de Carloto Cotta faz mais barulho que as outras. Quando o ator tira o capacete à nossa frente, descobrimos o sorriso de orelha a orelha que lhe dá um entusiasmo infantil ao rosto. Com a luz do sol, os seus cabelos castanhos-claros deixam aparecer pequenos brancos. "O jovem agitado fez-se homem", dizemos – Carloto ri-se com a observação.
Afasta-se de nós para falar ao agente de polícia que vigia os movimentos no Miradouro do Adamastor, em Lisboa. Esta pequena atenção poderá ser eficaz na proteção da mota reluzente que o ator tanto estima. Carloto chegou de Sintra, no caminho sentiu o vento a bater-lhe na cara, nos últimos anos escolheu viver perto do campo rodeado dos seus animais. Frente ao miradouro, o Palácio de Santa Catarina transformou-se num hotel de luxo, os épicos botellón que brindavam os fins de tarde no Adamastor são agora menos espontâneos e constantemente vigiados.
A tribo desta zona continua diversa, tenta beber na rua livremente apesar da especulação imobiliária que imagina para o centro de Lisboa algo mais luxuoso. Nesta constatação e a olhar para o rio Tejo sentamo-nos a falar no chão feito de pedra branca perto da estátua tornada celebre n’Os Lusíadas. Iniciamos uma longa conversa com mais de 7 horas. Uma travessia que começa uma hora antes do sol se pôr.
Foto: Rui Palma
Onde está a realidade?Carloto chegou há dias de São Tomé e Príncipe, onde passou mais de dois meses a filmar com Margarida Cardoso um filme que sentiu ser urgente fazer. Fala da rodagem numa cidade agitada com muitas motas e lixo a encher as ruas, nas poucas folgas que teve. O ator empenhou-se num processo de adoção, "os animais em São Tomé estão em grande sofrimento. Há colónias de cães na rua. E os cães que vêm de uma linhagem de sobrevivência, assim que sentem uma primeira promessa de afeto, ficam logo contigo. São de uma delicadeza e bondade incríveis", conta. Ele adotou dois.
Perguntamos-lhe como é voltar a casa, depois de tantos meses emaranhado em dias e noites de ficção. O que acontece ao corpo do ator quando volta à realidade do quotidiano?
"A minha vida tem sido passada a trabalhar, tive muito poucas pausas entre projetos, séries ou novelas, principalmente filmes. Sinto-me mais longe da realidade quando estou aqui no Adamastor, porque nestes últimos 20 anos, a minha vida tem sido estar a filmar num plateau. Fingir a realidade acaba por ser a minha realidade." Carloto faz longas pausas para pensar nas respostas que dá, às vezes durante quase um minuto, e continua o raciocínio.
"Nós acabamos por fingir realidades nas nossas vidas também, as narrativas que nós construímos na nossa cabeça, no dia a dia, acabam por criar uma paisagem espiritual que não é diferente daquilo que faço com as minhas personagens na ficção." Um detalhe importante: tínhamos reparado que ao chegar perto de nós, Carloto coxeava de uma perna. A personagem à qual deu vida estes meses, em São Tomé e Príncipe, também está magoada. Carloto evoca um dos seus mestres, "vou ter de citar Fernando Pessoa, ‘O poeta é um fingidor. Finge tão completamente que chega a fingir que é dor, a dor que deverás sente’ (pausa)… E eu roubo-me a mim próprio, eu roubo à minha vida porque as outras eu não as conheço." A força que resulta das personagens que tem interpretado explica-se nesta frase.
Há algo fora de comum na forma como se entrega na construção dos seres que o seu corpo encarna. "Eu crio-lhes memórias interiores e a certa altura não sei se as memórias são minhas ou se são delas. Imagino até como as personagens reagem ao cheiro das coisas." Na curta-metragem premiada com a Palma de Ouro no Festival de Cannes, Arena (2009) de João Salaviza, interpretava um jovem a viver em prisão domiciliária.
"O Arena era uma realidade que conhecia bem. Por exemplo, o meu melhor amigo foi preso com 16 anos e saiu aos 24. A vida em Portugal não era fácil. Eu cresci dentro de um bairro (Belém) onde havia minorias que foram uma consequência direta de uma colonização atroz, feroz e injusta, inconsequente.... E por isso acredito que quando chego a esses sítios [a rodagem aconteceu no bairro da Flamenga, em Lisboa] de certa forma já lá estava."
Carloto recorda depois outro episódio, aconteceu no dia em que lhe deram a pulseira eletrónica que iria usar como adereço no filme de Salaviza. Passou uma tarde a convencer os conhecidos do bairro, que estavam no jardim, de que a sua liberdade estava mesmo restrita, "Camuflei a minha identidade de maneira a sentir que estava a viver a verdade naquela situação. A reação dos que lá estavam levou-me à minha personagem."
Ao longo da conversa Carloto usa diversas vezes a palavra "mistério". "Para mim a espiritualidade é uma coisa muito natural, é como estar aqui a beber uma coca-cola. Eu não sigo nenhum mecanismo espiritual ou filosófico, mas há um grande mistério na vida. E para mim a espiritualidade é estar na busca desse mistério. E questionar o mundo. Porque é que uma pessoa como a Gisberta foi assassinada no Porto? Porque é que existe esta maldade? Porque é que há Guerra? O porquê da bondade e da maldade, esse velho maniqueísmo. O confronto com essa dualidade é o caminho da espiritualidade... E se pensarmos bem, o que é isso de maldade e bondade?"
Nos últimos anos debruçou-se sobre o sentido da vida, "porque quanto mais és consciente mais dói", remata. Para ele, consciência racional não serve sem a consciência espiritual. Carloto quer servir o mundo e não se servir do mundo, "e isso tira-te logo da ideia do ego". Acrescenta: "O sentido está para lá da nossa compreensão...Eu tive momentos de felicidade, mas não me considerei uma pessoa feliz durante décadas. Só aos 30 e tal anos é que me consegui considerar como uma pessoa feliz. A felicidade para mim é a aceitação das coisas que eu não posso modificar. Ter coragem de mudar aquelas que eu posso, e a sabedoria para distinguir umas das outras. Custa irmos até determinadas dores dentro de nós, mas só quando vais ao encontro das feridas é que tens oportunidade de as sarar."
Vencer tabus através da ArteOs filmes onde o talento de Carloto pode ser apreciado têm-se encadeado. Desde as imagens a preto e branco de Tabu (2012) que o cineasta Miguel Gomes nunca mais o deixou de fora de nenhum elenco. Filmou-o na trilogia de Mil e Uma Noites (2015) onde se refletia sobre os anos de troika em Portugal e em Os Diários de Otsoga (2021), filmado durante a pandemia. Gabriel Abrantes e Daniel Schmidt propuseram-lhe ser Diamantino(2019), um futebolista de corpo perfeito, sotaque inesquecível e cérebro angelical, a personagem queria sobretudo salvar refugiados do mar, via cães peludos enquanto marcava golos no campo. O filme surrealista valeu-lhe um Globo de Ouro da SIC na categoria de Melhor Ator de Cinema.
Quando de Espanha surgiu a proposta de voltar a fazer outro jogador de futebol para uma série vista por milhões de adolescentes, Elite (2022), da Netflix, percebeu que o desafio era diferente do de Diamantino. Em Elite é um jogador que não assume a sua sexualidade, a sua personagem diz uma frase que, entretanto, se tornou ummeme com milhões de partilhas nas redes sociais, define-se sexualmente: - "nem bi, nem tri, soy futebolista", o diálogo surgiu de uma improvisação entre Carloto e o jovem ídolo e ator espanhol Manu Rios, que interpreta o objeto da sua atração. "É fundamental ter este debate e redimensionar estes conflitos. Algo com o alcance desta série eu sabia que ia ser muito direto. Uma das razões que me levou a fazer isto foi perceber que ia tratar um tema que é tabu. Não há homossexuais no futebol? Contar estas histórias faz com que daqui a uns anos isto já não seja notícia."
Carloto cresceu numa família onde muito cedo conviveu com várias orientações, "isso nunca foi uma questão e só mais tarde comecei a perceber que em determinados sítios ou países não era assim. Eu acho que a Arte é um agente provocador e a mim entusiasma-me que possa realmente inspirar pessoas e neste caso, se calhar, até pode inspirar uma geração de futebolistas [a lidar com questões semelhantes], eles até podem pensar em como eu acabei a beijar o Manu Rios na boca." Carloto ri-se com a última frase, a beleza de Manu Rios é de facto estonteante. "Eu vou reparando que os miúdos que veem o Elite, vivem aquilo como nós vivíamos noutra altura a Tieta do Agreste (1989), falam daquilo e parece que estão a falar de um amigo... Isto pode entrar num imaginário. As realidades que nós criamos através dos filmes, do teatro, dos livros e até das entrevistas mudam a paisagem mental."
Aos poucos abandonamos o Miradouro para fotografar Carloto, o seu rosto será iluminado pela luz que nos introduz à noite. Sobre a sexualidade (a sua ou a das suas personagens), tem algo a acrescentar, "eu não me defino sexualmente, agora sou uma coisa, se calhar daqui a dois anos sou outra, definirem-me por isso é uma palhaçada."
No filme de terror You Won’t Be Alone (2022) que estreou no Festival de Sundance este ano, há um corpo de uma menina tomado por um feitiço capaz de tomar várias formas humanas, experimentando assim a vida de diferentes pontos de vista. A mesma rapariga entra no corpo de Carloto, há a beleza dessa descoberta, sente o mundo de outra maneira. Ele interpreta esta dualidade com uma sensibilidade inesquecível.
"Pensar globalmente e agir localmente", Carloto cita Carlos Carranca, um professor que teve na Escola de Teatro de Cascais, que usava a expressão do sociólogo alemão Ulrich Beck. E continua: "Há coisas que fazem diferença, eu prefiro concentrar-me nos pequenos gestos que posso fazer para ajudar alguém perto de mim. Muitas vezes as pessoas têm grandes causas e abraçam-nas de imediato esquecendo que têm a seu lado alguém próximo a sofrer."
Carloto está a ser fotografado e conta peripécias delirantes, entre anedotas e caretas a vida vibra nos poucos metros quadrados que conseguimos ocupar – estamos no último andar de um prédio, o espaço foi improvisado num telhado, noutro imóvel a poucos metros, está a piscina completamente vazia do luxuoso Hotel Verride. Um calor abrasador tomou conta de Lisboa, "Estarmos juntos sem pressa para ir a lado nenhum é o verdadeiro luxo", diz-nos. Alguém na nossa equipa de fotografia tem uma máquina de tatuagens, quando acabamos a sessão Carloto escolhe um desenho e assistimos ao momento em que tatua a sua pele. Uma recordação destas horas? Destes dias em que regressou de um filme? Da realidade que no fundo é só um pouco mais de ficção. Perto da meia-noite voltamos à sua mota, antes de se despedir diz-nos, "é tentador existir." A liberdade (e a procura) de Carloto está nesta frase.
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