Viajámos com a Vista Alegre, que se prepara para celebrar o bicentenário

Autêntica embaixadora de Portugal no mundo, a Vista Alegre associa tradição e modernidade. Prestes a completar 200 anos, não cessa de se expandir e até já tem um hotel com o seu nome.

Foto: Vista Alegre
13 de junho de 2023 às 07:00 Maria João Martins

Há muito que a Vista Alegre é uma referência de qualidade nas casas portuguesas: está no serviço bom que leva à mesa o almoço de Natal, na prenda de casamento cuidadosamente escolhida, na peça decorativa que passa de geração em geração com o simbolismo habitualmente reservado às joias. Assim é há quase dois séculos (que se completarão em 2024), mas tamanho lastro, que é, afinal, um património, não leva a marca a deslumbrar-se com o brilho do passado em detrimento da contemporaneidade. Hoje, o universo Vista Alegre, que abrange também a Atlantis e a Bordallo Pinheiro, já se expandiu da porcelana aos têxteis e há até um hotel de design inspirado na marca, o Montebelo Vista Alegre, situado em Ílhavo, melhor dizendo, no lugar também dito da fábrica de porcelana portuguesa. 

Foto: Vista Alegre
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Situado à beira da ria de Aveiro, a poucos minutos das praias da Costa Nova, este é o lugar em que a porcelana é rainha absoluta e dita as regras e os ritmos de quem nele vive. Aqui estão o hotel, a fábrica, o seu museu e o bairro construído para os trabalhadores ainda no século XIX, numa experiência social tão pioneira como visionária. Para conhecer melhor este universo recomenda-se uma visita atenta ao museu, onde se conta a história da marca desde a sua criação por José Ferreira Pinto Basto, no reinado de D. João VI, até à atualidade. Portugal ainda recuperava a custo do impacto das invasões francesas quando este empresário adquiriu, em 1812, a Quinta da Ermida, perto da vila de Ílhavo, e, em 1816 comprou, em hasta pública, a Capela da Nossa Senhora da Penha de França e terrenos envolventes. 

Foto: Vista Alegre

Em 1824, querendo dar um propósito económico ao lugar, apresentou uma petição ao rei D. João VI para "erigir para estabelecimento de todos os seus filhos, com igual interesse, uma grande fábrica de louça, porcelana, vidraria e processos químicos na sua quinta chamada de Vista-Alegre da Ermida". O que o rei concedeu, em alvará datado de 1 de julho de 1824. O homem sonha, a obra nasce. Em 1851, a Vista Alegre participava já na Exposição Universal organizada no Crystal Palace, em Londres, e em 1867 recebia reconhecimento internacional na exposição Universal de Paris.

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Em breve, boa parte da população do que é hoje o concelho de Ílhavo congregava-se em torno da fábrica de porcelana. Como nos explica a coordenadora do Museu da Vista Alegre, Filipa Quatorze, "o nosso arquivo está cheio de cartas de cidadãos a pedir para que os seus filhos fossem integrados nas escolas da empresa, a fim de aprenderem os vários ofícios envolvidos no fabrico da porcelana". Numa região em que a dureza da pesca era a atividade predominante, tornar-se operário da Vista Alegre era visto como um privilégio. Da aspiração nasceu naturalmente um sentimento de pertença, favorecido pelas condições proporcionadas aos trabalhadores. Ainda no século XIX nascia o bairro da Vista Alegre, que, para além de casas para funcionários, tinha creche, teatro, um clube desportivo, um corpo privativo de bombeiros, que ainda existe, e que é a corporação privada mais antiga do país. 

Foto: Vista Alegre

A par da inovação social, a Vista Alegre soube estar sempre na vanguarda estética da sua arte. Ainda no século XIX, fez escola Victor Rousseau, francês, contratado em Londres, que criou a escola de pintura na fábrica. Em breve, as peças da Vista Alegre estariam ao serviço da família real, como ainda hoje se pode ver nas coleções dos Palácios Nacionais. Lá, estão as baixelas, as peças personalizadas ou comemorativas. Uma tradição que a empresa prossegue, como podemos ver no museu. Também aqui poderemos ver como, ao longo da sua história quase duplamente centenária, a Vista Alegre soube sempre captar os melhores artistas nacionais para colaborarem consigo. O visitante pode encontrar peças únicas, de grande beleza, assinadas por nomes como Lima de Freitas, Raul Lino ou Manuel Cargaleiro.

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O museu permite ainda acompanhar a evolução do processo de fabrico e o modo como se foi investindo em condições de trabalho cada vez mais seguras e confortáveis. Logo à entrada podemos ver os alto fornos, em que até meados do século XX se cozia a porcelana, embora nos seja difícil imaginar as duras condições de vida a que estava sujeito quem tinha de trabalhar com estes mecanismos que chegavam a atingir os 1400 graus de temperatura, alimentados por madeira e carvão... Lá estão as vigias pelas quais os operários iam acompanhando a cozedura, que demorava dias, mas, como admite a coordenadora do museu, "havia habitualmente muitos imprevistos e acidentes..." 

Foto: Vista Alegre

Hoje com condições totalmente distintas deste cenário digno dum romance de Émile Zola, a Vista Alegre expande-se, agora também no segmento dos têxteis, numa coleção inspirada em motivos do acervo das decorações em porcelana. O resultado são carrés, pocket squares e twillys, em pura seda, com acabamentos e confeção manual. 

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De destacar ainda o hotel, que tem, na verdade, três tipos de alojamento ao dispor do cliente. Pequenas casas no bairro Vista Alegre, quartos no Palácio dos Mestres Pintores e ainda na ala nova e no Palácio dos Fundadores (parte da casa onde viveu a família Pinto Basto). Mesmo ao lado está um monumento nacional, de indispensável visita: Trata-se da Capela de Nossa Senhora da Penha de França, mandada construir no século XVII, e que constitui uma autêntica joia do estilo barroco. No interior, o realce vai para os azulejos setecentistas de Gabriel del Barco, os retábulos em mármore e talha dourada e a pintura da árvore genealógica de Jesus no teto. 

Foto: Vista Alegre

O universo Vista Alegre inclui ainda a Atlantis, especializada em fabrico de vidro e cristal de alta qualidade (hoje é o um dos maiores produtores mundiais deste setor) e outra empresa histórica mundialmente reconhecida: a Bordallo Pinheiro, com fábrica nas Caldas da Rainha. A sua origem remonta a 1884, quando Raphael Bordallo Pinheiro assumiu a responsabilidade pelos aspetos técnico-artísticos das chamadas Faianças das Caldas e seu irmão, Feliciano Bordallo Pinheiro, pelos aspetos organizativos e administrativos. Sem perder de vista esse legado determinante, a Bordallo Pinheiro investe hoje tanto na qualidade como na irreverência, o que explica boa parte do seu sucesso. Daí a aposta em linhas como as que representam frutos tropicais (kiwi, abacate, maracujá, anona, pitai, entre outros), sardinhas com os mais diversos perfis e muitas colaborações com artistas nacionais e estrangeiros (entre outros, Bela Silva, José Pedro Croft, Joana Vasconcelos, Vhils, e a mais recente, a brasileira Rosângela Rennó). Isto sem esquecer parcerias improváveis, como aquela que unem a marca à supermodelo alemã Claudia Schiffer que, depois de uma estreia auspiciosa com a coleção Cloudy Butterflies, prosseguirá em breve com novas peças. 

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Foto: Vista Alegre

Esta audácia ajuda a explicar como nos últimos anos a Bordallo Pinheiro passou de empresa tradicionalmente voltada para o consumo nacional para uma realidade em que as exportações representam cerca de 60% das vendas. Entre os seus principais mercados contam-se países tão diversos como a Suécia, Reino unido, França, Itália, Espanha, Brasil e Coreia do Sul. O irreverente Raphael, pai do Zé Povinho e de tantas figuras que são parte do nosso património coletivo, haveria de gostar.

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