Moda / Tendências

A moda passa, Chanel permanece

Com uma lucidez sem par, Coco Chanel compreendeu o ritmo e aspirações das mulheres do século XX. Mais de 50 anos após a sua morte, o Victoria & Albert Museum, em Londres, dedica-lhe uma exposição retrospetiva, mas cheia de intrigantes novidades.

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19 de setembro de 2023 Maria João Martins

"Coco Chanel ensinou-me uma autêntica disciplina alimentar, de pequena austríaca bem nutrida passei a ser uma parisiense, uma verdadeira mulher." A autora de tão humilde revelação foi uma das mais belas atrizes do cinema europeu. Romy Schneider - é dela que falamos - foi entregue aos cuidados de Mademoiselle pelo cineasta italiano Luchino Visconti, que, embora reconhecesse o potencial da jovem, não se dava por satisfeito. Querendo um perfil mais sofisticado para a protagonista do seu episódio de Bocaccio 70, Visconti arranjou-lhe o mais duro e, no entanto, o mais eficaz dos Pigmaliões de Paris.

Alexa Chung
Alexa Chung Foto: Chanel

Esta mulher dura conhecia, como poucos no meio em que se movia, o valor da disciplina. A 19 de agosto de 1883, quando nasceu em Saumur, França, Gabrielle, filha de Albert Chanel e Jeanne Devolle, não foi depositada em berço de ouro. O pai, caixeiro-viajante por ofício e mulherengo por natureza, pouco parava em casa e a mãe, doente de paixão e tuberculose, morreu jovem, quando Gabrielle tinha apenas 12 anos. Na mesma semana, Albert Chanel, incapaz de lidar com uma prole de cinco filhos, colocaria os dois rapazes a trabalhar numa quinta e as três filhas - Julia, Gabrielle e Antoinette - no convento das Irmãs da Congregação do Sagrado Coração de Maria, em Aubazine. Partiu para nunca mais voltar, naquele que, para a pequena Gabrielle, foi o primeiro grande desgosto de uma vida em que a glória e a tragédia nunca deixaram de coexistir. 

Georgia May Jagger
Georgia May Jagger Foto: Chanel

Uma revolução na moda feminina

Talvez por isso, mais de meio século após a sua morte, Chanel continue a ser evocada como um dos maiores mitos da História da Moda. Em Londres, o Victoria and Albert Museum inaugurou, no passado sábado, uma das maiores exposições de sempre dedicadas à vida e obra da criadora francesa. Fruto da colaboração com o Palais Galliera, em Paris, e com a própria maison Chanel, mas com várias novidades acrescentadas em território britânico, a exposição "Coco Chanel: Fashion Manifesto" (com curadoria de Oriole Cullen, pode ser vista até 25 de fevereiro) revisita a história da criadora e da sua marca através de centenas de peças de vestuário, acessórios e frascos de perfume. Como não podia deixar de ser, estão lá, para deleite do visitante, muitas peças históricas como o little black dress usado pela atriz Delphine Seyrig no filme O Ano Passado em Marienbad (em 1961) ou o tailleur de tweed cor-de-rosa feito por medida para a estrela de Hollywood, Lauren Bacall, onde não falta sequer um bolso secreto para a cigarreira. 

Jenna Coleman
Jenna Coleman Foto: Chanel

Dividida em dez núcleos, a exposição começa por evocar os primórdios da marca, através de uma blusa marinheira de 1916, que combina seda e jersey, o que era uma mistura desconcertante para a época. Recorde-se que tudo começara pouco antes com uma loja de chapéus confeccionados pela própria Chanel. 

Em 1912, uma das revistas de moda mais importante da época - Les Modes - publicou imagens dos chapéus de Chanel usados por duas das mais celebradas beldades de então: Gabrielle Dorziat e Geneviève Vix. Um ano depois, com o apoio de um dos grandes amores da sua vida, o empresário britânico Boy Capel, abriu uma loja na elegante Deauvillle, onde aos chapéus juntou blusas, casacos e roupa à marinheira, especialmente concebidos para uso na praia. 

Foi um sucesso retumbante, apesar do desencadear da Primeira Guerra Mundial, com o clima mental e as bolsas pouco propícios a caprichos de indumentária. Talvez por isso mesmo, a roupa formalmente simples e despojada criada pela jovem tenha chegado no momento mais oportuno. Luxuosa embora, não jogava no campeonato dos "caprichos" a que as heroínas de Marcel Proust se dedicavam com método. Chanel, pelo contrário, impôs uma elegância pelo avesso, que pôs termo às roupas de parada tão queridas às mulheres de 1900. 

Keira Knightley
Keira Knightley Foto: Chanel

Como escreveu o seu primeiro biógrafo, Paul Morand, Chanel, mais do que um arauto dos novos tempos que se anunciavam, pertencia "àquela guarda avançada de raparigas de saiotes e sapatos rasos que saem, confrontam os perigos da cidade, e triunfam, fazendo-o com o sólido apetite de vingança de que são filhas as revoluções."

O triunfo de Chanel ao longo dos loucos anos 20 passou também pelas colaborações com alguns dos mais vanguardistas artistas e performers da época, o que podemos ver na exposição de Londres. Lá estão, por exemplo, as criações que concebeu para os Ballets Russes de Sergei Daghilev, com quem também colaboraram Picasso e Jean Cocteau.

Mas o "império" Chanel não se fez só de roupa. No V&A Museum, também poderemos ver a importância icónica assumida pelos acessórios que concebeu, como a mala de senhora 2.55 ou os sapatos bicolor. Nestes como noutros casos (incluindo perfumes como o nº 5 ou nº 19, mas também luvas e joalharia), estamos diante de um olhar coordenado sobre a silhueta feminina. Um conceito que continha, em si mesmo, uma revolução.

Clémence Poésy
Clémence Poésy Foto: Chanel

Espia ao serviço do Reich alemão, mas não só...

A maior novidade é o facto desta exposição revelar documentos que associam Chanel à Resistência francesa durante a ocupação do país pelos alemães, na Segunda Guerra Mundial. Provada há muito a sua colaboração com os ocupantes (para além de ter tido uma relação amorosa com um oficial alemão, foi identificada como Agente F-7124 da Abwehr, os serviços secretos navais germânicos), conclui-se agora que a criadora também terá mantido contactos com os seus compatriotas que, ao invés, combatiam a ocupação. Como disse a curadora na apresentação da exposição: "Isto não iliba Chanel das suas responsabilidades como colaboracionista, mas acrescenta-lhe ainda mais complexidade e enigma."

Por todas estas razões, o pós Segunda Guerra Mundial não foi fácil para Chanel. Abandonou França, que não lhe perdoava a Guerra passada no Hotel Ritz e ter-se mantido à tona quando a maior parte dos seus pares tinham sido obrigados a fechar atividade. E mudou-se para a Suiça.

Como podemos ver na exposição, ousou regressar em 1954. A 5 fevereiro desse ano (data escolhida porque considerava 5 o seu número da sorte, o que já determinara o nome do seu perfume mais emblemático) fez-se a apresentação pública da coleção de come back. Os grandes espelhos do salão da Rue Cambon refletiam o desfile de manequins com cartões numerados (como se fazia na altura), que avançavam sem música, sob os olhares ansiosos dos espetadores.

Naomi Campbell
Naomi Campbell Foto: Chanel

No topo da mítica escadaria, a pequena figura de Chanel, impecavelmente vestida com um dos seus tailleurs, espiava as reações. Que não foram as melhores. Fosse porque a França ainda não lhe perdoara a ambiguidade dos anos da Guerra, fosse porque a moda mudara muito graças aos novos "papas" - Christian Dior, Givenchy, Balenciaga, Fath - a verdade é que a imprensa especializada teve para a nova coleção Chanel a gentileza dum pelotão de fuzilamento. O Le Combat escreveu mesmo, com uma ironia feroz: "Foi comovedor, julgar-nos-íamos em 1925."Em Londres, o Daily Express falava clara e cruelmente num "fiasco". A 18 de fevereiro, o Daily Herald's, pela pena de Marge Proops, sentenciava: "Que tristes são as tentativas de regresso, tão raramente bem sucedidas."

Mas a tenacidade de Chanel mantinha-se intacta. No final da década de 1950, a criadora estava novamente no topo, com uma carteira de clientes fiéis que incluía as mulheres mais imitadas da época: Diana Vreeland, Grace Kelly, Lauren Bacall, Ingrid Bergman, Elizabeth Taylor e Marlene Dietrich. As revistas de moda calaram os quase insultos proferidos anos antes e voltaram a pôr modelos Chanel nas suas capas. 

Simone Ashley
Simone Ashley Foto: Chanel

Quando morreu no seu apartamento no Ritz de Paris, em janeiro de 1971, voltara já à ribalta da Moda, deixando um legado que, ao longo de décadas, ultrapassa com brio as mudanças sócio-económicas, culturais e de gosto. Como ela própria sentenciara, numa das suas muitas boutades, "a moda passa, só o estilo permanece."

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