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Beleza / Tendências

Debate. O que é que o nosso cabelo diz sobre nós?

Símbolo de poder, beleza e crenças religiosas, eco da nossa identidade pública e privada, desde sempre que o cabelo é tanto uma forma de expressão quanto de julgamento. Duas mulheres refletem sobre a sua relação com o seu.

Foto: DR
26 de janeiro de 2024 às 07:00 Patrícia Domingues e Matilde Wall

Matilde Wall, 23 anos

Sempre gostei muito de experimentar com o meu cabelo. Tal como com a roupa, maquilhagem e outras coisas relacionadas com a imagem, desde os meus 6/7 anos que faço cortes de cabelo diferentes - curtos, escadeados, franjas, tudo. Ir ao cabeleireiro para mim era uma experiência muito divertida porque nunca sabia como é que ia sair de lá. Gostava de tudo num salão, o ambiente, o entusiasmo dos cabeleireiros por vir com ideias novas, era uma experiência que acontecia todos os dias.

Há um momento em específico que, olhando agora para trás, talvez tenha marcado os anos que se seguiram. Tinha uns 12 anos e usava o cabelo curto, mas queria algo diferente. Fiz uma franja meio doida e quando cheguei à escola a primeira coisa que um dos miúdos da minha aula diz quando me vê foi "que horror, o que é que tu fizeste ao cabelo?". Olhou para mim e riu-se. Fiquei tão envergonhada que imediatamente me arrependi do meu cabelo. O facto desta pessoa - que era o mais giro da aula, o cool -, comentar e ser tão negativo afetou bastante a minha confiança. Murchei. Comecei a querer ser cool, parte do grupo. Talvez até quisesse que aqueles rapazes me achassem bonita. Então deixei crescer o cabelo, que era liso, fazia madeixas loiras, às vezes franjas para o lado... Em termos da minha personalidade, daquilo que usava e de como usava o meu cabelo, tudo agora tinha um segundo significado. O que importava não era só o que eu gostava, mas o que é que iria ser aceite pela tribo.  

Aos 16 anos mudei-me para Londres e comecei a estudar numa escola muito criativa, focada nas artes. De repente comecei a ser mais criativa outra vez. A Matilde de antes. A minha necessidade de experimentar começou a voltar. Comecei a usar peças diferentes, a fazer as unhas, a libertar-me. E aí decidi brincar com o cabelo, fiz um bob, pintei de preto, de loiro. Também comecei a reparar nas raparigas de cabelo rapado e comecei a gostar. Durante anos falei em querer rapar o cabelo, mas pensava que nunca na minha vida iria ter coragem de o fazer.

Seguiu-se a faculdade e a experimentação continuou. No entanto, tive uma relação com um rapaz que era um bocado controlador. Se eu estivesse a usar algo que ele não gostasse fazia questão de dizer. Lembro-me de começar a planear pintar o cabelo de azul e de ele ser completamente contra. Nessa altura já tinha um bocadinho mais de confiança em mim mesma e terminei essa relação. Lembro-me que uns dias depois ele pediu-me desculpa enviando um ramo de flores... azuis (risos).

Quando a Covid-19 apareceu voltei para Portugal e foi aí que pensei: "não, é agora vou fazer o que eu quero". Não estava mais com esta pessoa e senti-me liberta. Comecei por rapar o cabelo dos lados. É difícil, temos apego ao cabelo, mas fartei-me rápido e um mês depois rapei o cabelo todo em casa, máquina zero. Sinceramente foi uma coisa anticlimática... Hoje em dia quando me veem de cabelo rapado muita gente diz "ai quero tanto rapar" e eu respondo "se queres faz, porque o que quer que estejas à espera que vá acontecer, não vai". Realmente, não é tão revolucionário como pensam...  A questão que mais ouço, na verdade, é "ah mas eu não sei se vou ficar bem" ou "tenho uma forma de cabeça estranha", o que para mim simboliza exatamente a razão pela qual não devemos fazer nada ao cabelo se estamos preocupados com o que as pessoas vão pensar... O que é que é uma cabeça bonita? Isso não existe e as pessoas estão a refletir todas as suas expectativas de beleza no simples facto de rapar ou não rapar o cabelo e a pôr uma pressão.

No final do dia o que importa é o que tu transmites por dentro o que tu és, como te sentes em relação a ti.  Muito de nós depositamos o nosso valor na nossa aparência e isso foi uma coisa da qual, ao rapar o cabelo, me quis libertar. Sempre gostei de fazer coisas contra a opinião dos outros. Rapar o cabelo não foi tanto sobre ser livre ou sentir-me linda, foi mesmo um fuck you. Um fuck you àquele miúdo que criticou o meu cabelo, um fuck you aos meus pais que sempre gostaram do meu cabelo e se orgulharam da minha beleza, um fuck you ao sistema. A minha beleza não devia ser a coisa que me guia, ou a coisa que me define, e é mesmo difícil como mulher não carregares a tua beleza contigo. O peso, a maquilhagem, o cabelo eram coisas das quais me estava a tentar soltar porque não queria que a minha vida girasse em torno disso. Queria poder sair de casa talvez sem maquilhagem, sem estar ‘bem vestida’ e sem ter o cabelo arranjado e não me sentir como se faltasse alguma coisa. E hoje, com ou sem cabelo, não falta.

Foto: DR

Patrícia Domingues, 35 anos

Há quanto tempo não mudo o meu cabelo? Para ser sincera, não sei. Desde que me lembro de me ter tornado adulta que o meu cabelo se mantém mais ou menos intacto: comprido, ligeiramente escadeado, cor natural. Quer isto dizer que sou uma pessoa 100% avessa a mudanças? Nem um pouco e o meu perfil do Linkedin pode comprová-lo. Eu prefiro ser uma metamorfose ambulante, mas não preciso que o meu corte de cabelo fale das minhas convicções por mim.  Serei assim tão segura em relação a tudo o resto que envolve a minha imagem? Nem um pouco, mas acredito que o meu cabelo está aqui para, tal e qual trança da Rapunzel, me ajudar a subir até ao topo (o que para mim significa encontrar algum equilíbrio). Tal como a maioria, mal cheguei a uma fase em que era eu a controlar a minha aparência (adeus bob e franjas completamente desalinhadas cortadas pela minha mãe) uma das primeiras mudanças que fiz foi no meu cabelo. Eu já pintei o cabelo de várias cores, escadeei a um ponto que deixaria os anos 2000 orgulhosos, fiz franja, cortei pelas orelhas, and so on. Na mesma altura, experimentei todos os tipos de maquilhagem, fiz nail arts e gelinho, comprei soutiens almofadados e brinquei aos crescidos através do meu meio preferido: a roupa. Tal como com os cortes de cabelo, nem tudo me assentou bem – o sentimento de necessidade de pertença prevalecia face a tudo o resto e a modelagem da insegurança é, sem dúvida, a mais desconfortável de todas. À medida que ia acumulando pilhas de roupa que gritavam ‘isto é o que é trendy agora’ ia-me perdendo de quem era, do que gostava, da imagem que queria efetivamente passar. Ao mesmo tempo, isto foi tudo o que precisei para encontrar-me: afinal, só sabemos que aquela não é a fórmula se a experimentarmos. A maturidade, os encontrões contra a parede, uma boa dose de terapia e uma imersão pela história da Moda foram-me trazendo as pistas para perceber como me poderia expressar num universo em que tudo vem em excesso.

Pelo meio, o meu cabelo foi assumindo a sua forma atual. À medida que me fui despindo dos artifícios que achava que precisava para ocupar um lugar entre os fixes, também o meu cabelo se foi naturalizando. Na minha gaveta, os encaracoladores repousam em paz (é claro que houve uma altura em que o que eu queria mesmo era que o meu cabelo não fosse liso) e a experimentação passou para outros campos da vida. De vez em quando, principalmente quando vou ao cabeleireiro "só cortar as pontas", ainda me questiono se aquilo que ‘preciso’ no momento não seria um corte statement – se uma micro franja não me iria trazer aquela dose extra de coolness que iria mudar completamente a minha vida. Se sou ‘uma básica’ por manter sempre o mesmo visual. Se a minha escolha está alienada pelos padrões de beleza de uma sociedade machista que, por acaso, privilegia o meu tipo de cabelo. Mas logo a seguir oiço algum comentário sobre "ai, estás com o cabelo demasiado comprido" ou "as mulheres mais velhas só ficam bem com cabelo curto" e sinto um nó na barriga que depois racionalmente me esclarece que, o que quer que nós façamos, nunca vamos ser suficientes aos olhos dos outros. Nunca vamos agradar a todos. Vai sempre haver alguém intitulado o suficiente para achar que tem o direito a opinar sobre a nossa aparência enquanto mulheres (e, muitas vezes, sem surpresa, esse alguém é uma mulher).

Logo também me olho ao espelho e me reconheço como a mulher do cabelo assim: um cabelo sobre o qual não tenho de fazer absolutamente nada. Com todas as pressões que temos no dia-a-dia, com todas as cedências e adaptações e transformações e máscaras, gosto que o meu cabelo represente menos uma chatice e que, ao contrário da maquilhagem ou do peso, não ocupe lugar na tabela de preocupações. Enquanto ainda me debato com a possibilidade de sair de casa sem um pouco de blush ou máscara de pestanas, o meu cabelo é um lugar mais ou menos seguro. Não sou menos aguerrida dos valores feministas porque uso corretor de olheiras, ponho botox, gosto de fazer o jantar para o meu namorado ou uso o cabelo comprido. A minha aparência diz tanto sobre mim quanto nada. Há um quadro pendurado à entrada/saída da minha casa que diz "vento no cabelo". Quando saio à rua com o uniforme que escolho nesse dia para enfrentar todas as desvantagens de ser mulher nesta sociedade gosto de imaginar que sim, haverá algumas rajadas, mas os meus longos fios de cabelo estarão ali a dançar ao sabor do vento comigo.

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