Brenda Chapman: “Têm de existir mais histórias contadas para raparigas, não tem de ser sempre sobre a princesa”
Foi a primeira mulher a realizar um filme de animação num grande estúdio. Pertence-lhe também o lugar de primeira mulher a receber um Óscar de melhor filme de animação, por Brave - Indomável (2012). A americana Brenda Chapman é um nome incontornável quando se fala de mulheres líderes no cinema de animação, um exemplo de luta e resiliência numa indústria tradicionalmente masculina e na qual as portas ainda não se abriram realmente à diversidade de vozes femininas.

Brave - Indomável foi um feito. A primeira protagonista feminina da Pixar, Merida, é uma princesa que rompe com os cânones das princesas. É descabelada, não tem maquilhagem. É "realista", diz a sua criadora. A personagem foi inspirada na própria filha de Chapman, que trabalhou no filme seis anos até ter sido afastada da produção por "divergências criativas" e substituída por um homem, Mark Andrews, com quem, meses mais tarde, partilharia um Óscar. Em entrevista à Máxima, numa passagem por Portugal para o festival FEST - Novos Realizadores Novo Cinema, em Espinho, Brenda Chapman falou sobre esse episódio que a manteve afastada da indústria, do movimento #MeToo, do papel da mulher na animação hoje e dos desafios que persistem para contar histórias que vão além das princesas.
O nome Brenda Chapman vem ligado a muitas "primeiras vezes". O papel das mulheres na animação mudou muito desde que entrou na indústria?
Sim, mudou muito. Eu fui a única mulher durante muitos anos. Lentamente as coisas têm mudado. Há mais escolas e mais interesse em animação por parte de mulheres. A percentagem de quando estava no California Institute of the Arts saltou de 12% para uns 65%, algures por aí. Mas infelizmente a mudança não chegou ao mercado de trabalho de igual forma. Sim, há mais mulheres, mas nem por sombras [o número é] próximo dessa percentagem. Não percebo bem porquê nem o que se passa depois da escola. Não sei se os critérios sob os quais se olha para os portefólios mudaram muito. No que diz respeito a temas com protagonistas homens ou mulheres, humor versus histórias emotivas, e esse género de coisas. As coisas ainda precisam de mudar para que tenhamos mais mulheres no mercado de trabalho da animação.


A mudança já chegou às escolas, falta chegar aos filmes, de facto, é isso?
Precisamente. Acho que as histórias já estão a mudar, mas, e sou culpada disto, estava a tentar quebrar com o "molde da princesa" com "Brave", a tentar... As audiências adoram as princesas, então quis dar-lhes uma que fosse um pouco mais relacionável com uma miúda contemporânea, a Merida. Mas também sinto que têm de existir mais histórias que não se focam em princesas e nesse tipo de coisa. Devemos ver mais raparigas e histórias sobre as suas aspirações, sobre o que querem ser, o que querem fazer, quem elas são, no desporto, na ciência, em matemática. Há tantas histórias que podem ser contadas para raparigas, não tem de ser sempre sobre a princesa e os seus problemas na vida enquanto princesa. Precisamos de histórias de níveis diferentes, até de diferentes estratos sociais, financeiros. Há tantas histórias para contar.
Mencionou Brave (2012). Quando lá chegou já era pioneira na animação, já tinha realizado O Príncipe do Egipto (1998). Li numa entrevista que nunca se tinha sentido uma "mulher na animação", nem mesmo uma "mulher realizadora" até Brave.
Senti mais a responsabilidade com o que aconteceu com o Brave. Pelo facto de ter sido afastada do filme por razões pelas quais um homem não seria necessariamente retirado… [risos]. Continuo a achar que sou apenas uma realizadora, uma contadora de histórias, uma animadora, e não ponho o meu sexo no meio. Mas ao falar com outras jovens mulheres para as inspirar, sinto a responsabilidade de dar retorno, porque não sinto o apoio... Depois de algumas experiências, não senti que o apoio na indústria estivesse lá como eu achava que ia estar. Tive muita sorte de trabalhar com um grupo de homens na Disney, quando comecei, que me acolheram muito bem. Mas vejo hoje que isso é muito pouco comum. Era muito ingénua e achava que era assim que o mundo funcionava. Aconteceu que o grupo de homens que eram os meus mentores na Disney eram muito boas pessoas e queriam fazer boas histórias e eu era parte da equipa, um deles. Ajudaram-me, como ajudei outros jovens artistas, artistas homens também, que saíram da Cale Arts. Descobri com o avançar da minha carreira que não era assim que funcionava necessariamente em todo o lado.


Brave foi visto como uma vitória feminista, um exemplo de progresso no empoderamento feminino em Hollywood. O que aconteceu depois com o filme manchou essa esperança por uma mudança na indústria. Como olha para esse projeto hoje e para as repercussões que teve o seu afastamento do filme a meio? Se acontecesse hoje acha que o apoio que teria seria diferente?
Claro. O movimento #MeToo veio um pouco tarde para mim [risos]. Aprendi tanto, abri os olhos. Fez-me refletir muito, tive os meus dias sombrios... Chamo-lhe os meus anos sombrios, em que a esperança foi reduzida durante um bom tempo. Mas depois uma série de outras oportunidades começaram a aparecer...
Ganhou um Óscar.

Sim, isso de alguma forma trouxe alguma justiça, mas foi agridoce ao mesmo tempo, porque não assisti ao fim do filme com a minha equipa. Foi difícil. E não fui incluída em muitos dos aspetos de celebração desse momento, pela Pixar. Mas, depois disso, tive tantas outras oportunidades, que não aconteceram, não por ser mulher, mas por outras razões [pessoais]. Mas deixou-me mais alerta, mais desperta, com mais força e tenacidade. Retiramos muitas lições de vida das coisas que são difíceis.
Como é que esse episódio afetou a sua carreira, e a capacidade de escolher os projetos seguintes? O seu crédito depois de Brave foi apenas Come Away (2020), que nem sequer é um filme de animação.
Muitos, muitos anos depois [risos]. E mesmo esse… Acho que foi a combinação das dificuldades em Brave e Come Away, que também não foi fácil. Percebi que fui para um filme de live-action a saber menos do que provavelmente deveria, com a expectativa de que a equipa que estava à minha volta me ajudaria a chegar lá, a perceber as diferenças. Infelizmente não tive essa equipa, não foram grande ajuda, sobretudo no que toca aos produtores. As lições que fui aprendendo no caminho ajudaram-me a perceber o que fazer e o que não fazer, porque temos de ir em frente. Esse foi provavelmente o meu momento mais negro, no início da pandemia. Tive de tirar um tempo, como todo o mundo fez. Foi provavelmente um bom timing. Fiz muito trabalho pessoal e saí mais forte de tudo, creio. Sinto-me pronta para fazer mais se as oportunidades surgirem, e muitas estão a surgir e estou muito agradecida por isso.


O seu percurso, mas também as entrevistas e conferências que dá, tem inspirado muitas mulheres que desejam entrar no mundo do cinema e da animação em particular. Quais foram as suas inspirações, referências ou influências?
Cheguei aqui pelo desenho. A minha mãe foi uma enorme influência em mim. Ela foi uma artista que nunca teve a oportunidade de ser artista, foi sempre contida. Foi criada pelos avós, cresceu durante a Grande Depressão nos Estados Unidos, tinha uma educação de oitavo ano porque o seu avô tirou-a da escola. Achava que era uma perda de tempo educar uma mulher e que as mulheres não podiam ser artistas, esse tipo de coisas. Portanto, quando ela viu a minha habilidade e a minha paixão, que conseguia desenhar de tenra idade, encorajou-me. Eu vinha para casa todos os dias da escola e via desenhos animados na televisão. Bugs Bunny, Tex Avery, a Disney, claro, foram enormes influências na minha vida.
A Disney criou um legado com as princesas. Tinha uma favorita ou já era crítica dessa visão curta das personagens femininas?
[risos] Tinha, tinha. Sempre achei a Branca de Neve a coisa mais estúpida... Quer dizer, adorava ver os sete anões, mas nenhuma rapariga age daquela forma! Mas adorava a Cinderela, acredite ou não. Muitas vezes pensava: "porque é que eu gosto tanto da Cinderela?" Mas percebi, é que ela é resiliente, é uma jovem mulher que está presa numa situação horrível, em que é tratada de forma terrível na sua própria casa, e ainda assim consegue trabalhar e ser generosa com outras pessoas, tratar os animais com respeito, amor, e entusiasmo. Muitas pessoas na sua situação não teriam essa resiliência. Eu não sei se teria.

Alguma culpa feminista nessa adoração à Cinderela?
Sim, sim, sem dúvida [risos].
Vi que está a trabalhar num filme chamado The Cartoon Touch. O que mais pode dizer sobre ele? É uma animação?
The Cartoon Touch? Meu Deus, esse era um argumento que eu e o meu marido escrevemos... Nós escrevemo-lo para a FOX, antes de a Disney a ter comprado. O meu marido ia realizar esse filme e eu trabalharia com ele. Era um híbrido entre live-action e animação.


O que aconteceu?
A Disney comprou a FOX e o filme foi posto na prateleira. Não vai acontecer, com muita pena minha. Era um projeto muito divertido com praticamente todos os estilos de animação que é possível ter num filme. Era uma história tipo toque de midas em que tudo o que a personagem tocava se tornava em animação. E o mundo tornava-se insano porque cada objeto que era tocado desenhava-se no estilo do período de onde era originalmente.
Não pode avançar fora da Disney?

Não porque eles são donos do filme agora. É triste, mas não o podemos recuperar.
Em que está a trabalhar agora?
Estou a trabalhar numa história [de origem] chinesa que escrevi e desenvolvi. Fui contactada por uma mulher chinesa para pegar num antigo conto chinês e escrever um argumento. Esse projeto ficou para trás por motivos financeiros em 2018, mas é capaz de voltar. Chama-se True Heart, é sobre irmãs gémeas. Nenhuma delas é princesa [risos]. Também estou a trabalhar numa peça de teatro com uma colega de escrita, mas não posso ainda adiantar sobre o que é. Mas estou muito entusiasmada.
Nos Estados Unidos ou na Europa?
Começaria no Reino Unido. E estou também a escrever um memoir, e um romance para jovens adultos. Tenho algumas coisas a acontecer.
Nos últimos anos, a Disney tem apostado nas recriações live-action dos clássicos de animação. O que acha do assunto?
[risos] Alguns têm aspetos ótimos. Por exemplo, acho que a Halle Bailey fez um trabalho fantástico enquanto Ariel [em A Pequena Sereia, 2023]. Vi-a e achei que era excelente. Mas a maior parte [desses filmes] são bons tracejados de grandes desenhos. Qualquer pessoa que desenhe sabe o que isto quer dizer, que é: quando se tenta desenhar algo e não se consegue, faz-se um tracejado e tenta-se copiá-lo, mas nunca sai tão bem como o original. É isso que sinto com esse tipo de filmes.

Alguma vez consideraria fazer um? Um live-action de Brave, por exemplo.
Bem... Se me fosse dada a oportunidade consideraria, sim. Mas gosto daqueles que tentam fazer algo um bocadinho diferente. Acho que fizeram um bom trabalho com Mulan (2020). Foram um bocadinho mais longe e tentaram fazê-lo mais atualizado. Mas sim, se me oferecessem o Brave provavelmente fá-lo-ia. Mas não vão [risos]
Estamos em 2023 e ainda há poucas histórias de mulheres contadas por mulheres. O que falta para se chegar a uma igualdade de género atrás das câmaras, na realização?
Os estúdios precisam de dar mais oportunidades a jovens mulheres. Agora só querem experiência, experiência. Bem, os experientes são na grande maioria homens. A diversidade racial e social é necessária. Há pessoas novas a chegar e é preciso olhar para o trabalho delas. Ok, esta pessoa pode ser mais experiente e tê-lo feito mais vezes, mas precisamos de olhar para o talento e treiná-lo e ajudá-lo a ter essa experiência. Precisam de pensar mais à frente, não só no calor do momento. Mas o que acontece é que quando não se encontra uma mulher que o tenha feito antes, dá-se ao homem que já o fez.
Os estúdios de animação não correm riscos.
Sim, e não é só nas vozes, é nas histórias também. Querem fazer a mesma coisa uma e outra vez, porque para eles é uma coisa segura. Isto deu dinheiro da última vez, vai dar outra vez. Só que as pessoas estão a ficar fartas da histórias de super heróis, da Marvel. Está a tornar-se aborrecido. É difícil trazer ângulos novos da mesma história. O que precisam de fazer é olhar para material original e tentar algo novo. E sim, é arriscado, mas quando funciona, funciona mesmo. É isso que vai criar uma abertura a uma indústria diversa: trazer novas histórias.

Ver os bons resultados de bilheteira de Brave ou ver que Turning Red (2022), uma história sobre uma miúda e o seu período, ganhou um Óscar não são argumentos que podem ajudar a que estúdios tomem esses riscos?
[risos] Não, eles olham apenas para a bilheteira, só. Não querem saber se ganham prémios...Quer dizer, se a vitória nos Óscares lhes der mais dinheiro, ótimo, se não, então é inútil para eles. É triste, mas é o que está a acontecer agora nos Estados Unidos. As empresas de tecnologia tomaram conta da indústria de entretenimento e tornaram-na Wall Street, em última instância. Não é sobre história e criatividade ou o que vai apelar a audiências. Querem é saber do dinheiro. Isso parte-me o coração e limita a indústria do tipo de histórias que se fazem. É por isso também que o WGA [Writers Guild of America] está em greve. É uma das grandes razões.
A greve de argumentistas nos EUA já acontece desde o início de maio. Acha que terá um impacto?
[suspiro] Gostava de pensar que sim, mas é difícil. Ainda estamos em greve. É uma situação difícil.
Que história gostava de ver contada que ainda não viu?
Hmm, é difícil. Gostava de ver histórias inspiradoras de jovens mulheres. Algo que ainda não vi. Mas não sei o que é. Acho que as jovens hoje têm uma visão diferente da vida, com tudo o que existe, com a tecnologia, com tanta informação, muito mais do que alguma vez existiu. Adorava ver como o cérebro delas funciona.
Esta geração exige mais dos criadores de histórias?
Claro. São inundados de micro-histórias nas redes sociais. O cérebro funciona de forma diferente. Adorava saber o que podem trazer para a discussão no que toca a longas-metragens, ou mesmo em histórias curtas.
Portugal está a viver um momentum na animação, depois da nomeação aos Óscares da curta-metragem Ice Merchants (2022). Mantém um olhar sobre a animação europeia ou o mercado estadunidense é tão avassalador que é difícil só acompanhar o que acontece entre fronteiras?
É muito difícil acompanhar. Confesso que não meço o pulso do que vai acontecendo, fico embrenhada nas coisas que estou a fazer e não tenho tanto tempo para mergulhar de forma profunda no que se vai fazendo por cá.

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