Joël Dicker: “A ideia de que todos devemos pensar o mesmo e ter as mesmas opiniões é uma ideia fascista.”
O mestre do "plot twist" e grande sucesso mundial do thriller literário esteve em Lisboa, na abertura da Feira do Livro, para apresentar o seu novo romance: "Um Animal Selvagem". Aproveitámos a visita do autor para uma conversa franca sobre literatura, rotinas e métodos de trabalho e até sobre o perigo dos telemóveis.

Joël Dicker, um suíço com 39 anos, foi atirado para o estrelato literário há 12, com o romance A Verdade Sobre o Caso Harry Quebert – um êxito imediato, publicado em 33 países, que vendeu mais de quatro milhões de exemplares e venceu o Grande Prémio de Romance da Academia Francesa, o Prémio Goncourt des Lycéens e o Prémio Lire para melhor romance em língua francesa. Foi ainda adaptado para série televisiva, realizado por Jean-Jacques Annaud e com Patrick Dempsey no papel principal. À conversa com a Máxima, Dicker há-de recordar a experiência de se tornar autor de um dia para o outro como "ser enfiado na máquina de lavar roupa". Dizer que o sucesso súbito o apanhou de surpresa é um eufemismo. E, no entanto, Joël sempre soube que a escrita ia fazer parte da sua vida e sonhava com capas de livros com o seu nome.Em Portugal, o seu mais recente livro – Um Animal Selvagem – foi apresentado no dia de abertura da Feira do Livro de Lisboa, pelo escritor João Tordo que, apesar de não ter vindo de Genebra, como Dicker, chegou atrasado – nada que tenha posto em risco o entusiasmo dos fãs. Ainda as cadeiras estavam a ser postas no sítio e já havia uma longa fila de leitores com o livro recém-comprado nas mãos, a sua maioria, mulheres. Algumas comentavam com as outras que nem queriam acreditar quando ficaram a saber que Joël Dicker vinha à Feira do Livro. No mundo editorial, é comum comentar-se que nenhum autor vinga sem conquistar o público feminino e Dicker, com os seus olhos azuis, sorriso fácil e temperamento afável e tranquilo, sem dúvida que o conquistou.
Sobre Um Animal Selvagem, João Tordo explica que é o primeiro livro do autor que não revolve em torno de um assassinato. "São as personagens e os seus segredos que o tornam uma delícia. Tem um tiquetaque muito particular, que lhe é conferido por um assalto a uma joalharia. E há dois casais em que o marido de uma está apaixonado pela mulher do outro e as duas mulheres são amigas, e ele é contratado para descobrir quem é o homem que a anda a perseguir, que é ele próprio!" Vamos cortar por aqui antes que a animação de João Tordo deixe escapar algum spoiler.

Joël Dicker escreveu o seu primeiro livro, O Tigre, que é um livro de contos, em 2005 e, desde então, publicou sete romances e confidenciou, durante a apresentação, que o oitavo já está escrito. Todos os seus livros estão publicados em Portugal, pela Alfaguara.

Era uma daquelas crianças que anda sempre com um livro na mão? Sempre pelos cantos a ler?

Nem por isso. Mas há uma frase em que acredito piamente: "Toda a gente gosta de ler, mas nem toda a gente sabe disso." Quando era criança, adorava que me contassem histórias e continuo a adorar. Às vezes entro numa livraria ou numa biblioteca e se está lá alguém com um livro, a contar uma história às crianças, paro sempre para ouvir. Isto para dizer que o que eu adoro na literatura é essa componente de transmissão, de partilha. Há algo que acontece entre a pessoa que escreveu a história e a pessoa que está a lê-la. Por um lado, a leitura é um ato solitário, por outro, é algo que aproxima as pessoas e que as leva a partilhar. E isso é algo que me agrada muito.
Sempre quis ser escritor?
Sempre soube que ia escrever e que escreveria sempre. Tive sempre diários, tirava notas, apontava ideias. Portanto, sempre soube que a escrita ia fazer parte da minha vida. A partir de determinada altura, comecei a sonhar em tornar-me um autor, mas não tinha a certeza se ia conseguir. Nem toda a gente consegue publicar o seu trabalho. E nem sequer estou a falar de conseguir viver de escrever livros – isso é muito mais difícil! Mas estava sempre a imaginar capas de livros com o meu nome. Era um sonho, sem dúvida.

Quais são as suas referências literárias? O que é que gosta de ler?
Antes de responder a isso há uma coisa sobre a qual quero falar e que me preocupa muito. Viajo muito para falar dos meus livros, passo muito tempo em comboios e aviões, e vejo que as pessoas lêem cada vez menos. Por exemplo, hoje vim de Genebra para Lisboa, num voo que demora cerca de duas horas e meia, e a senhora que estava sentada ao meu lado começou a jogar Candy Crush no telemóvel assim que o avião descolou e só parou quando aterrámos. E não é a única. Por todo o lado, vemos as pessoas agarradas aos telemóveis. E não é que estejam a ver um filme, não ficou tudo subitamente obcecado com cinema, tudo a ver Truffaut ou Michael Mann. Estou a dizer isto porque acho que é importante que incentivemos as pessoas a ler, sobretudo os mais jovens.
Dito isto, podia dar-lhe uma lista de livros muito intelectuais de que gosto muito e que considero estimulantes, mas quero falar primeiro de livros que incentivam as crianças a ler. Livros como os do Roald Dahl, como os de Dick King-Smith, como a Charlotte’s Web de E. B. White. São livros fantásticos que fizeram de mim um leitor ávido. Depois, por volta dos 15, comecei a ler Ken Follett e adorei. Foi uma nova era para mim porque foi quando comecei a ler livros grossos sem conseguir parar. Claro que se lesse esses livros agora, não teriam o mesmo efeito. Mas o que importa é o efeito que tiveram então. Mais tarde, descobri Kafka. Depois, por volta dos 20, Dostoievski, que foi outro grande salto. Recentemente, li uma trilogia fantástica: 1793, 1794 e 1795, que estou a ver ali [aponta para o expositor da Suma de Letras, outra chancela da Penguin Random House], de um autor sueco [Niklas Natt Och Dag], que adorei. E agora estou a ler o último do Gabriel García Márquez, que foi publicado agora… Não me lembro do nome…

Ah, sim, sei perfeitamente! García Márquez é um dos meus autores preferidos. Mas também não me lembro do nome… Acho que é qualquer coisa em agosto [Vemo-nos em Agosto]...
Será? Acho que a edição francesa é capaz de ter um nome diferente… Não importa. Estou a adorar. É fantástico. Adoro o autor, mas quando vi que o livro ia sair pensei, "Meh… Um livro póstumo… Não sei se vai prestar..." Foi uma parvoíce minha, claro. Houve toda uma questão porque García Márquez não queria que este livro fosse publicado, e os herdeiros decidiram publicá-lo. Na minha opinião enquanto autor, e com todo o respeito pelo García Márquez, mas se não queres que um livro seja publicado, queima-o. Tens de te certificar que ninguém consegue deitar-lhe as mãos porque, o que quer que deixes cá, mesmo que seja uma lista de compras, vai ser publicado.
Li algures que não gosta de se definir como autor de romances policiais. Como é que define a sua escrita?

Como literatura. E com isto não quero dizer que há um género superior e que os policiais são um género inferior. De vez em quando, recebo cartas ou mensagens de leitores, fãs de policiais, que me dizem "Li o teu livro X, gostei muito, mas não é um policial." E estão certos. Nos meus livros, a história não se desenrola em torno do crime ou da investigação. É uma parte importante. É uma espécie de estrada que se segue para chegar ao fim do livro. E é a estrada que eu apanho para regressar ao cerne da história, quando sinto que fui demasiado longe. Mas, na maioria dos meus livros, tal como neste que acaba de sair [Um Animal Selvagem], podemos tirar a parte do crime e o livro continua mais ou menos o mesmo. Num policial, se tirares o homicídio ou a investigação, o livro colapsa.
Também li algures que o Joël tem uma memória prodigiosa. Deve ser muito útil para um escritor, não?
Cada vez menos, por causa do telemóvel. É verdade. E é uma loucura. Quando era miúdo sabia dezenas de números de telefone de cor. Agora sei o da minha mulher, o meu e é tudo. O que comecei a fazer para combater isso foi usar um dicionário, daqueles a sério, em papel. Agora, quando estou no escritório – e sou extremamente disciplinado com isto – e preciso de procurar o significado de uma palavra ou confirmar como se escreve, nunca pergunto ao Google. Pego no dicionário, passo as folhas, vejo dezenas de palavras, porque é preciso passar por muitas até encontrarmos a palavra que procuramos. Acho que isso me tem feito bem. Claro que se precisar de procurar uma palavra aqui, no meio da Feira do Livro, vou ao telemóvel, mas quando estou a trabalhar, nunca.


É interessante porque o telemóvel é um vício mesmo para quem tem essa noção. Por vezes, sento-me a ler um livro, que é algo que quero muito fazer e que gostaria de fazer com mais frequência, e ao fim de cinco ou dez minutos já estou a esticar a mão para o telemóvel. Às vezes dou por isso e penso "O que raio estou eu a fazer?!"
Sou igual. É horrível. Estou a falar tanto no telemóvel precisamente porque sinto este problema na pele. Não é porque sou melhor que os outros, mas porque faço exatamente o mesmo. Outra atitude que tomei a esse propósito foi não entrar com o telemóvel no quarto, o que já me deu muito tempo a ganhar. Porque uma pessoa vai para a cama, leva o telemóvel, faz scroll, lê umas coisas soltas e, quando dá por isso, passaram 45 minutos. Como?! Desde que cortei com o telemóvel à hora de ir para a cama, leio muito mais. Ou vejo um filme.
Já passaram mais de 10 anos desde o seu primeiro grande sucesso: o livro A Verdade Sobre o Caso Harry Quebert. Naquela altura, disse que sentia que tinha perdido o controlo sobre a sua vida. Ainda se sente assim agora? Depois de mais uns quantos sucessos literários?
É engraçado ouvir isso. Já se passaram 12 anos. Por um lado, parece muito tempo, por outro, parece que foi ontem. Lembro-me vividamente de tudo. As viagens, conhecer cidades, regressar a essas cidades, pessoas que conheci, jornalistas, leitores. Mas depois, quando penso em tudo o que aconteceu desde então, parece que foi há 50 anos. E é engraçado porque não sei se cheguei a perder o controlo da minha vida, mas é possível que o tenha dito. E é possível que me tenha sentido assim. Esse momento, há 12 anos, foi, certamente, como ser enfiado numa máquina de lavar roupa. Especialmente porque me tornei autor de um dia para o outro.
E isso apanhou-o de surpresa?
Sim, sem dúvida! O meu primeiro romance, Os Últimos Dias dos Nossos Pais, tinha acabado de ser lançado em França – sou suíço, mas França é o grande mercado literário para mim. Acabei de escrever esse livro em 2009 e foi publicado em 2012, demorei dois anos e meio a encontrar um editor. Portanto, nesse tempo comecei a escrever outro livro: A Verdade Sobre o Caso Harry Quebert. Quando o primeiro livro foi editado, não foi, de todo, um sucesso. É capaz de ter vendido umas 100 cópias. Ao mesmo tempo que isto está a acontecer, o meu editor lê o manuscrito do Harry Quebert e diz-me: "Isto é fantástico! Temos de o publicar já!" E eu achei que ele estava doido. Como é que acabamos de lançar um livro que vende 100 cópias e vamos já a correr lançar outro que vai ser um sucesso?! Achei que era completamente impossível. E andámos ali a batalhar durante uns meses, ele que sim, eu que não. Até que chegámos a um acordo. Eu estava a trabalhar, mas o meu contrato ia terminar no verão e como não estava a conseguir arranjar outro trabalho, o meu editor disse-me: "Publicamos o Harry Quebert em setembro. Tiras um mês ou dois para me ajudares a divulgar o livro e depois logo se vê." E eu concordei, convencido de que estava a lidar com um velho maluco, mas como não tinha nada melhor para fazer...
O que é certo é que estes dois livros foram publicados com seis meses de diferença, o Harry Quebert sai em setembro de 2012 e foi um enorme sucesso. Comecei a receber convites para feiras de livros e festivais literários e aceitei compromissos até junho do ano seguinte, sempre a achar que isto ia morrer depressa. Achei que o mais provável era que nunca mais me voltasse a acontecer algo assim e teria seis meses de algo incrível que se passou na minha vida e que iria sempre recordar. Mas depois os convites continuaram a chegar e depois as traduções e cada vez mais viagens. Foi uma loucura. Lembro-me de se passarem semanas sem que eu conseguisse ir a casa. Às vezes acordava num hotel sem saber bem em que país estava. Mas foi muito bom.
O Joël é o tipo de escritor que se senta para escrever um livro com o enredo já todo definido? Ou vai inventando à medida que avança?
Nunca tenho enredo. Para mim, o enredo é algo que me tira o prazer de descobrir o que vai acontecer. E isso é algo muito importante para mim. E é a razão pela qual, tirando uma ou outra excepção, nunca releio um livro – já conheço a história, já sei o que vai acontecer. Também nunca revejo filmes. O que eu gosto é de não saber. Por isso, para mim faz todo o sentido escrever a história sem saber onde é que ela vai parar.
Mas quando se senta à frente do computador tem já alguma ideia, não?
Quando começo não tenho mesmo nada. Tudo o que quero é contar uma história. Que história? Não sei. Tenho sempre algumas coisas em mente. Tenho as minhas notas. Sento-me, leio os meus apontamentos. "Isto é capaz de ser bom… Não, nada disto presta… Espera, isto talvez não seja mau…" Vou tentando coisas diferentes. É um processo que pode demorar meses. Mas eu gosto. Gosto muito deste momento da página em branco, em que tudo é possível. E depois uma ideia leva a outra ideia… Tento juntar as duas… Resulta. Não resulta. É uma coisa que vai crescendo, que se vai movimentando e, um dia, e eu não sei explicar como nem porquê, aparece o início da história. Talvez tenha qualquer coisa de instinto ou de intuição, mas é isso, está aqui o início da história e esta é a primeira corda que eu vou começar a puxar.
E onde é que vai buscar inspiração? Coleciona histórias de crimes nos jornais?
De todo. Aliás, acho que as notícias e a realidade são péssimo material para um romance, a menos que seja um romance baseado em factos verídicos. Tirando isso, não funciona porque a realidade consegue ser tão louca, extraordinária e aleatória que, transformada em ficção, não é credível. Por isso, regra geral, a literatura, mesmo os livros policiais, têm de ser mais razoáveis que a realidade.
Como é a sua rotina de escrita? Tem pequenos rituais? Superstições?
Tento começar o mais cedo possível. Gosto de trabalhar nas primeiras horas da manhã. E adoro estar sozinho, por isso tenho um escritório fora de casa. Posso trabalhar em casa, mas só se tiver a certeza que vou estar sozinho e que ninguém vai aparecer para me interromper. Depois, ponho os meus headphones e entro numa bolha. Preciso de ouvir música e preciso de fechar a porta. É curioso, mesmo que esteja em casa e que saiba que vou estar o dia todo sozinho e que não está lá mais ninguém, preciso de fechar a porta.
E escreve todos os dias?
Sim, sim.

Chamam-lhe o mestre do plot twist [reviravolta inesperada na trama de uma história]. É preciso ter um tipo especial de mente para conseguir fazer isso? Como é que funciona?
Acho que é preciso deixar todas as portas abertas. E deixar que a história te surpreenda. É por isso que não gosto de ter planos. Se tiveres um plano, não te vais surpreender. Ter um enredo definido é um pouco como seguir o caminho no Google Maps – já sabes onde e por onde vais. Gosto de me perder.
E o Joël costuma surpreender-se com o caminho que a história leva?
Quase sempre, sim. O twist acontece quando o leitor diz "o quê?!" E para isso acontecer ao leitor, teve de me acontecer a mim primeiro. É uma sensação que adoro.
O seu livro A Verdade Sobre o Caso Harry Quebert foi transformado em série. Foi um processo difícil para si? Há autores que detestam…
Não, gostei bastante. E gostei porque estou muito consciente de que é uma adaptação. Não é a verdade sobre o livro. Não é a forma como os leitores têm de ver determinada personagem ou local. O livro é uma coisa, a série é outra. E, na verdade, fiquei muito feliz por ter podido entrar na cabeça de um dos meus leitores – o realizador [Jean-Jacques Annaud] – e perceber o que ele viu ao ler o livro. Esperar que o livro seja igual à série é o mesmo que entrar num restaurante, pedir peixe e dizer ao empregado "bem, espero mesmo que isto saiba a vaca". É impossível.
O que é que me pode contar sobre este seu novo livro, Um Animal Selvagem?
É o mesmo, mas diferente. Os leitores vão estar num mundo diferente, numa história diferente, não vão ter a sensação de já terem lido algo semelhante ou de o livro estar a seguir algum tipo de fórmula. Mas, ao mesmo tempo, a atmosfera vai ser familiar. Vão reconhecer a forma como encaminho a história, como os levo pela mão. E isto é algo desafiante. Vejo os leitores a regressarem, livro após livro, e quero crescer com eles. Quero dar-lhes aquilo de que gostam, mas não quero que se fartem. É um pouco como ir a um restaurante: não quero estar sempre a mudar o menu, mas também não quero estar sempre a dar-lhes a mesma coisa. É uma mudança que me obriga a evoluir. Gosto disso.
No início do livro, há uma nota que diz: "Os factos: No dia 2 de julho de 2022, em Genebra, um espetacular assalto à mão armada deu que falar. Este livro conta a história desse roubo." É verdade?
[risos] Não. Isto é um romance. É ficção. Mas adoro este jogo – quando leio um livro e fico "espera, isto é uma história real?" E a razão pela qual, por vezes, temos esta dúvida é porque, enquanto leitores, vamos construindo a história, passo por passo, com diversas camadas. E, a determinada altura, começa a parecer-nos real.
No atual ambiente cultural, alguns autores dizem ter medo de ser cancelados devido a algo que digam ou escrevam. Sente essa pressão quando escreve os seus livros?
Não. Se tiver de ser cancelado, serei cancelado. O cancelamento é a nova grande doença dos tempos conturbados em que vivemos, em que certas pessoas acham que há apenas uma verdade e só podemos pensar de uma determinada forma. Eu acredito em diversidade e acredito que a nossa sociedade é uma democracia porque todos nós podemos pensar coisas diferentes e respeitarmo-nos mutuamente. A ideia de que todos devemos pensar o mesmo e ter as mesmas opiniões é uma ideia fascista.
