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The Handmaid’s Tale, a humanidade no extremo

A quarta temporada de The Handmaid’s Tale promete agarrar-nos ao écran em suspense: diálogos e estética irrepreensíveis, emoções presas na garganta e as grandes causas femininas.

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29 de abril de 2021 às 07:00 Patrícia Duarte

Um dia depois das televisões norte-americanas, The Handmaid’s Tale chega a Portugal em episódio triplo a 29 de abril, à NOS play, que também disponibiliza as três temporadas anteriores para quem quiser apanhar. Há muito boas séries para ver, é certo, esta é a sua era dourada, mas poucas são realmente arrebatadoras como esta onde estética e conteúdo nos suspendem a respiração na urgência do episódio seguinte.

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Imagine que os Estados Unidos se transformam numa República teocrática, Gillead, onde as mulheres férteis são barrigas de aluguer e propriedade de estéreis famílias de elite. Perdem a vida, a identidade, tornam-se servas de uma sociedade que não lhes pertence, mas que as põe no centro de uma engrenagem impiedosa e sem pontos de fuga. Nós seguimos a saga de June, a protagonista, (uma assombrosa Elisabeth Moss, que também realiza estes primeiros três episódios) e June representa não só aquelas mulheres, mas de uma certa forma todas. Nesta temporada, ela lidera forças rebeldes, por isso crescem os seus desafios e decisões difíceis, como se fosse um jogo de computador, mas o que a guia é a sobrevivência e a possibilidade de vingança. Um túnel de injustiças perpetradas por uma sociedade fechada, militarizada e implacável, blindada em valores conservadores, cegos, profundamente machistas, Gillead é uma visão dos infernos. Não fossem as pequenas luzes redentoras e os pequenos gestos de compaixão por onde entra a esperança. Mas, atenção, esta não é uma heroína qualquer: os seus superpoderes são humanos. The Handmaid’s Tale é um conto de profunda humanidade e de tudo o que podemos ser quando esta nos falta.

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Esta distopia foi imaginada pela brilhante Margaret Atwood, para A História de uma Serva, e se a escritora canadiana venceu o Booker Prize em 2019, The Handmaid’s Tale arrecadou 15 Emmys, dois Globos de Ouro e um BAFTA desde que estreou, em 2017.

O mais interessante não é assistir ao caminho tortuoso desta jovem apanhada numa louca e incompreensível teia de poder, mas o retrato figurado do feminino ao longo dos séculos e séculos da dita civilização que lhe subjaz. Esta é uma história das mulheres, do que as separa e do que as une – e daquilo em que uma sociedade patriarcal as tornou. Gillead condensa padrões generalistas e estereótipos onde está tudo o que é preciso falar. Quando perguntam à escritora canadiana de onde partiu a inspiração para Os Testamentos, a sequela do livro desta história (que saiu em Portugal, em 2020, pela Bertrand) Atwood responde que foram as perguntas que os leitores fizeram sobre o funcionamento interno desta Gillead e "o mundo em que vivemos."

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E é esta a razão primeira para The Handmaid’s Tale ser obrigatória. Está lá o culto da jovem mulher, por isso fértil, cujo valor se resume a estas circunstâncias, em quem toda a gente repara e desmanda, mas ninguém respeita. Está a esposa extremosa de família, impecável e silenciosa, que tudo ampara e sossega, jamais pondo em causa o seu homem, e vive obcecada pelas crianças que não pode ter, a sua única definição. A empregada solícita e servil, sem qualquer existência social, cinzenta como a farda que usa. O simbolismo da cor: se a esposa se veste de um classy e frio azul petróleo, a serva de um monástico traje em vermelho sangue, para que esteja sempre debaixo de olho. A serva é a mulher-anjo procriador da família ou a mulher-demónio prostituta de cabaret. Porque elas são deles e eles precisam. Estas três mulheres representam três pilares para onde estão fadadas todas as mulheres de Gillead. Os homens são sombras de fato negro e têm tarefas de homens: são dirigentes ou polícias ou motoristas, guardiões que têm as rédeas na mão e ditam as regras. Todos são controlados por eles e eles são manipulados por elas. Onde é que já vimos isto?

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No centro de tudo, as crianças que garantem o futuro da instituição, a razão desta hierarquia feminina e da sua competição velada. No seu centro, a adoração das crianças, o presépio, e a competição velada por elas, símbolo aspiracional de status. Crianças que depois são criadas de forma indistinta para servir um propósito social, onde tudo parece encaixar na engrenagem da família perfeita sustentada numa fachada. Em contraste, a verdade do amor maternal sobressai em June, que é antes de tudo uma mãe sacrificial. 

São curiosos dois grandes pormenores, que seriam dois lamentos da História se esta tivesse sido escrita por mulheres: a militarização do sistema e a distância entre as mulheres na sociedade patriarcal. Tudo obedece a rituais específicos e todos se vestem da mesma maneira, um exército acéfalo e sem identidade que marcha para qualquer coisa de insustentável. E a projeção e busca incessante por uma sociedade exemplar que justifica o policiamento e bestialidade em nome do poder omnipresente de um Deus justo e justiceiro criado à medida dos homens. E, por outro lado, no que as mulheres se tornam pela imposição dessa fórmula absoluta e disciplina arrogante, que poucas questionam e que se materializa nas mais pequenas atitudes. Sempre em comparação e competição veladas, em modo de sobrevivência, mas juntas no extremo de onde emerge uma força indestrutível, o sentido de grupo quando convocadas pela vida.

E no meio de todos estes clichés, que assim vistos até nos parecem remotos, está uma modernidade absoluta. Ao mesmo tempo, esta feroz Gillead inclui todas as raças, os casais são mistos e a homossexualidade é possível, ainda que sob as capas do costume. E desafia-se a monogamia: podemos amar duas pessoas por vivências completamente diferentes?

Depois as peripécias e jogos da ficção de thriller seguram-nos horas a fio nesta aventura exemplarmente gerida também pelos actores Joseph Fiennes, Yvonne Strahovski, Ann Dowd e Max Minghella, entre tantos outros. É tudo no osso, a crueldade e a liberdade lado a lado, os pequenos prazeres que se agigantam quando a vida nos confina, a resistência e a resiliência no sentido de missão; os maus que não são completamente maus e os bons que não são completamente bons – e como a ingenuidade pode ser uma salvação. O guarda-roupa impecável, a sonorização do suspense e a banda sonora a demarcar o que fica por dizer. O pormenor na contenção ou na raiva, a glória do sol e grandes planos de respiração, para ganhar fôlego à procura de um ponto de vista maior, aquele que deve ser o nosso enquanto espetador, à nossa maneira cúmplices, à nossa maneira agentes. Esta série é um piscar de olho, uma revolução interior e muitas muitas horas bem passadas. A produção já prometeu a quinta temporada.

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