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"É muito difícil para as mulheres falar sobre o arrependimento de ter filhos, sobre não gostarem dos filhos"

O que acontece a uma mãe que é levada ao limite, ao ser mãe pela primeira vez, de uma criança que parece ser malévola? Neste romance thriller, a autora Ashley Audrain explora o lado obscuro da maternidade.

Foto: Alex Moskalyk
15 de abril de 2021 às 07:00 Rita Silva Avelar

Ashley Audrain podia ser a mulher, numa sala, que diz aquilo que ninguém quer dizer e está (ou poderá estar) a pensar. A aluna que desafia a forma como o professor diz a matéria. A "ovelha negra" do grupo. A mulher que ousa falar sobre a maternidade de uma perspetiva menos romanceada, com um travo amargo, que ousa associar sentimentos negativos ao instinto maternal: mais, que ousa dizer que ele pode nunca existir para algumas mulheres. E ainda bem. Porque é cada vez melhor saber que não existem verdades absolutas sobre a maternidade, e que nem todas as mulheres a vivem de maneira igual. É sobre isso que trata o romance em jeito de thriller da autora, Instinto, editado pela Suma de Letras: o lado obscuro da maternidade.

É a história de uma mãe que não pode confiar no seu próprio instinto, e que não consegue estabelecer uma relação com a primeira filha, que parece ser uma criança malévola. Estará tudo na cabeça desta mãe, ou há um lado da maternidade que também desconhecemos? O que acontece quando uma mãe é levada ao limite? E às mulheres, quando ninguém ouve as suas angústias? As respostas chegam neste romance para ler de um fôlego só, e que promete gerar controvérsia até à última linha.

Maternidade e thriller psicológico parecem termos totalmente opostos, mas neste livro eles funcionam perfeitamente. Houve alguma história de vida que a tenha inspirado?

Penso que a inspiração para a história chegou quando me tornei mãe, pensei muito no primeiro ano da maternidade, especialmente sobre as expectativas sociais que as mulheres têm acerca de como se devem sentir ao tornar-se mães, e até de falarem de uma certa forma sobre o assunto. A realidade é, evidentemente, que muitas mulheres têm uma experiência de maternidade que não se enquadra nestas narrativas comuns. E, no entanto, não é frequente falarmos sobre isto - não somos muitas vezes convidadas a fazê-lo. O romance começou com uma coleção de cenas que exploravam estes sentimentos através da personagem de Blythe, que tem uma filha com quem não com não consegue estabelecer uma conexão, e um casamento que começa a ceder sob o peso disso. No início não pensei que isto fosse um thriller psicológico, mas acho que começou a tomar essa forma porque estava a explorar alguns dos medos que as mulheres têm sobre o que a maternidade pode ser para elas. Esse foco no medo associa-se com naturalidade ao suspense.

Quais continuam a ser os tabus da maternidade? As verdades não ditas?

Penso que é muito difícil para as mulheres falarem sobre o arrependimento de ter filhos, de não gostarem das suas vidas como mães, de não gostarem dos filhos. Esses sentimentos são a realidade para algumas mulheres, mas existe um enorme sentimento de vergonha associado a esse tipo de pensamento. É muito difícil para uma mulher admitir isto a qualquer pessoa. No romance, Blythe sente-se escrutinada pelo seu marido que quer que ela goste mais da maternidade. Ele quer que ela vingue como mãe e encontre alegria nas coisas que as mães devem fazer, mas ela luta para encontrar isso com a Violet [a filha]. Não há espaço para ela expressar isto - ela sabe que não é uma opção dizer como realmente se sente, ou o que realmente pensa sobre a sua filha, e isto contribui para um perigoso sentimento de isolamento.

O que é para si o instinto materno? Será este um dos sentimentos mais fortes que uma mulher pode experienciar na maternidade?

Penso que pode ser um dos sentimentos mais fortes que uma mulher pode experimentar, mas também penso que não é um instinto que devemos assumir que todas as mulheres têm. Fizemos uma ligação tão forte na sociedade entre ser mulher e ser mãe, que penso que algumas mulheres podem ser levadas a sentir-se inferiores - se a parte instintiva não lhes for tão fácil, ou se não a desejarem, como no caso de algumas personagens femininas deste romance. A própria Blythe quer ter esse instinto, mas não o encontra com a sua primeira filha, Violet. Ela tem um segundo filho, com a esperança de poder provar a si própria - e à sua família - que o "problema" não era ela, era a sua filha. E sim, ela encontra a ligação que procurava no seu segundo filho, o seu filho, embora isso não acabe bem para ela (sem dar nenhum spoiler).

Será urgente ter uma conversa sem rodeios sobre este lado menos romântico da maternidade, especialmente para aliviar a consciência das mães que sentem que não estão à altura do papel porque a sociedade está sempre a julgar?

Penso que é urgente. Ou pelo menos para mim, como escritora, pareceu-me urgente. É surpreendente que não tenhamos estabelecido mais espaço ou oportunidade para reconhecer e validar o lado mais obscuro da maternidade de uma forma significativa. Estamos a ser pais numa altura em que partilhamos tanto de nós próprios nas redes sociais, incluindo como mães, e embora possamos estar a abrir-nos mais num sentido, estamos também a tornar-nos mais vulneráveis ao julgamento e à vergonha do que nunca. Penso que isso coloca as mulheres numa situação difícil quando se trata da maternidade, em comparação com o que realmente sentem.

Quanto tempo demorou a escrever o livro? Tem um lugar especial onde escreve? Teve momentos de dúvida durante o processo de escrita?

Demorei cerca de três anos a trabalhar no romance até sentir que estava pronto para ser enviado aos editores. Comecei a escrever quando o meu filho tinha seis meses, e tive a minha filha cerca de dois anos mais tarde, pelo que houve períodos de tempo em que não consegui escrever muito. Mas estava sempre a pensar no romance, a ponderar as personagens, a pensar no enredo, a anotar ideias para cenas. Penso que isso ajudou a manter viva a energia criativa ao longo de alguns meses muito esgotantes. Antes da pandemia, gostava de escrever em cafés do meu bairro, mas este último ano mal saí da minha mesa de cozinha (embora me sinta afortunada pelo privilégio de poder trabalhar em segurança a partir de casa). Quando estava a escrever O Instinto, porque foi a minha primeira tentativa de um romance, não me deixei muitas vezes sonhar que um dia poderia haver leitores. Tentei concentrar-me apenas em escrever a história que queria escrever.

Foto:

Este romance mostra a forma como o nascimento de uma criança pode ser interceptado com a forma como as memórias da infância, esquecidas ou enterradas, regressam no momento da própria crise maternal. Era isto que pretendia com ele?

Interessante. Penso que é uma forma precisa de se ver o romance, sim, embora não tenha sido o que me propus inicialmente fazer. A ideia das multigerações e do passado matrilinear chegou um pouco mais tarde no processo de escrita deste livro. Eu estava a tentar compreender melhor Blythe, como mãe, e percebi que tinha de compreender primeiro a sua própria mãe. Como é que ela era? Como era a sua relação? Como é que Blythe teria aprendido a ser mãe, ou não? Foi assim que nasceu o carácter de Cecília [avó de Violet], e o passado tornou-se mais uma parte da vida atual de Blythe. Mas penso que a sua observação é correta, na medida em que as nossas experiências passadas e as nossas memórias - especialmente as traumáticas - por vezes regressam a nós num momento de crise.

Escrever um thriller foi desafiante?

Porque não me propus realmente a escrever um thriller, muitos dos elementos do thriller foram mais desenvolvidos durante as muitas revisões do romance. Passei muito tempo a colocar-me no enredo e a pensar na estrutura, uma vez que já tinha escrito cena após cena, explorando quem eram estas personagens e com o que estavam a debater-se. Não tenho a certeza se recomendaria essa abordagem, pois era bastante confusa, e exigia muita reescrita. Mas poderá haver algo a dizer sobre [como foi difícil] manter a personagem no centro da história, sempre, em vez de ela ser "arrastada" por todas as reviravoltas.

Acredita que é possível passar uma vida inteira sem conhecer verdadeiramente alguém? E tinha isso em mente enquanto imaginava a história de Blythe?

Acho o casamento (ou as relações a longo prazo) deveras interessante por essas mesmas razões. Penso que nunca se pode compreender completamente outra pessoa na sua totalidade - um amante, ou uma criança, é igual. E no entanto, assumimos estes compromissos uns com os outros e planeamos uma vida inteira juntos. É certamente possível convencer-se de que alguém que se ama é de uma certa forma, mesmo que não o seja. A paternidade pode criar uma mudança monumental na forma como nos vemos a nós próprios e na forma como vemos os nossos parceiros, e era isso que eu queria explorar com Blythe e Fox [o casal da história]. Ambos têm certas expectativas um do outro no casamento, com base no que precisam um do outro, e quando não conseguem satisfazer essas expectativas, isso muda a forma como se compreendem e se amam. Penso que muitas das relações passam por alguma versão dessa mudança.

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